Guerra no coração de Paris. Paramédicos dão o corpo às bolas de borracha da polícia

Guerra no coração de Paris. Paramédicos dão o corpo às bolas de borracha da polícia


Entre petardos e projéteis a serem atirados, manifestantes paramédicos avançam para ajudar quem ficou ferido na Praça da República, em Paris, França, no “Ato XII” do protesto dos coletes amarelos


Um manifestante dirige-se às fileiras dos polícias e acusa-os de violência gratuita, pede-lhes para pararem com o “massacre” e, como resposta, é baleado num olho com uma bola de borracha, disparada pela arma não-letal LBD-40. Não atirou pedras nem garrafas, apenas mostrava a sua indignação. Cai ao chão e os manifestantes à sua volta vão em seu socorro, arrastando-o para outro lugar. Ouvem-se berros a pedir a ajuda dos paramédicos que têm participado no protesto. Ao chegarem, um cordão de segurança de coletes amarelos é instantaneamente formado. Após uns primeiros cuidados de socorro, o ferido é transportado pelos bombeiros para fora da Praça da República, em Paris, França, onde os confrontos se dão. E pouco depois volta tudo à nova normalidade, isto é, aos confrontos, seja naquele local ou noutro da não tão grande praça. 

Gino Castelot, de 39 anos e socorrista de profissão, foi um dos “manifestantes paramédicos” a correr ao encontro do ferido. Equipado com material médico e identificado como tal, tenta mostrar-se tranquilo. Quando os coletes amarelos estão a fugir da polícia, ele e os seus colegas correm na direção contrária para ajudar alguém caído. Gino sabe que corre riscos porque três amigos seus, também paramédicos, ficaram feridos nas últimas semanas. Um deles, uma jovem, levou com uma bola de borracha nas costas. “Foi na semana passada, mas hoje está cá outra vez. Tem de ser”, conta ao i. Castelot começou a ser socorrista nas manifestações no terceiro sábado de confrontos, depois de ter visto a gravidade dos ferimentos e a força da repressão nas televisões. Na sua mochila, ostenta, com orgulho, uma fita amarela a dizer isso mesmo, que está cá desde o III Ato dos coletes amarelos. Tornou-se conhecido dos manifestantes, mesmo que poucos saibam quem é e o que faz da vida.

Não foi o único a ter aderido aos protestos como paramédico motivado pelas imagens que viu. “Faço isto porque vi muitos ferimentos de guerra nos vídeos e queria saber se era verdade, e era. Decidi agir e continuar a ajudar as pessoas, porque fui soldado no exército francês”, diz Thomas, de 33 anos. Esteve dez anos nas forças armadas francesas, trabalhando hoje numa agência de viagens. Foi inclusive destacado para o Afeganistão, onde chegou à conclusão de que a vida militar não era mais para si: “Percebi que o nosso exército é como se fosse mercenário, que trabalha em prol das grandes empresas”. As críticas às multinacionais e à banca é transversal ao movimento dos coletes amarelos. 

Os manifestantes paramédicos, com cruzes vermelhas bem visíveis e vestidos de branco, mantêm-se à margem dos confrontos, encostados aos prédios e lojas, sempre muito próximos dos combates. Não atiram pedras nem garrafas e veem as granadas a cair, os petardos a explodir e, não poucas vezes, chegam a estar no meio dos confrontos quando vão socorrer alguém, ora levando com bolas de borracha ora com pedras e garrafas de vidro. Ficam no fogo cruzado. Não tivessem máscaras de gás, capacetes e coletes militares e podiam ser apanhados na resposta policial ao protesto. 

Sabendo que estão protegidos, chegam inclusive a usar os seus corpos como escudos humanos para resguardar quem estão a socorrer. Uma rapariga não consegue ver por causa do gás lacrimogéneo e os paramédicos estão a pôr-lhe gotas nos olhos quando, subitamente, a polícia e os manifestantes entram em confronto a pouco mais de três metros. Atiram-se projéteis de um lado para o outro, ouvem-se provocações. Os paramédicos, um grupo de cinco, dão um abraço de urso à jovem, protegendo-a, com um deles a levar com uma garrafa de vidro nos pés. Depois, continuando a usar os seus corpos como escudos, retiram-na do local para a continuarem a socorrer. A mentalidade dos paramédicos é a de estarem numa guerra. 

“Aquilo lá [Praça da República] é guerra, é como um massacre”, avisara Gino, enquanto se equipava na Praça da Bastilha antes da marcha andar em direção à Praça da República. “Os manifestantes vão até à Praça da República e depois ficam lá encurralados. A polícia dispara e há muitos feridos”, continuou o paramédico, explicando que a polícia encerra as saídas da Praça com carrinhas e dezenas de agentes e, depois, avança aqui e ali contra os manifestantes, com estes a ripostarem e a provocarem.

Ao lado de Gino, mais manifestantes paramédicos se equipam, rindo e contando histórias – tentam descontrair antes da tensão aumentar no “Ato XII” do protesto dos coletes amarelos em Paris. Andam em grupos de cinco e de dez e cada um tem uma área a cobrir na Praça da República, ainda que não de forma muito rígida. Todos têm auriculares e walkie-talkies para comunicarem entre si. E, ao longo dos confrontos, usam-nos várias vezes, ora avisando de que a polícia está a pressionar deste ou daquele lado ora pedindo ajuda a outras equipas. Em cada grupo há um que usa, presa à sua mochila, uma grande bandeira a ostentar uma cruz médica. 

Os ferimentos a que têm de dar resposta são vários. Os mais comuns são os causados pelo gás lacrimogéneo, com os manifestantes a não conseguirem abrir os olhos e a cuspirem-se, numa tentativa de tirar o ardor da boca – enquanto dizem injúrias à polícia. Uma equipa de paramédicos anda de um lado para o outro no centro da praça a espalhar água com limão nos olhos de quem veem que está em apuros. “Queres? Estás bem?”, perguntam e perguntam, borrifando de seguida quem lhes diz que sim. Há também aqueles pequenos ferimentos de quem corre: cortes de quedas, tornozelos torcidos.

E, por fim, há os mais graves, muito mais graves. “Vejo entre 10 a 15 lesões graves por manifestação. Se for um homem forte apanhar com uma bola de borracha no peito, ficará bem, mas se forem jovens ou mulheres podem quase matar”, explica Thomas, que veio pela primeira vez a uma manifestação de coletes amarelos em Paris. Nas semanas anteriores, dedicou-se às da sua cidade natal, Reims. “Há muitos feridos que nem estavam na primeira fila dos protestos. Uma rapariga em Nantes levou com uma bola de borracha simplesmente por estar em pé num banco sem fazer nada. Hoje vi um manifestante levar com uma na boca por ter dito ao polícia: ‘vai-te lixar’”. Ficou com o maxilar partido”, contou já na Praça da República. O próprio jornalista do i ouviu o silvo de duas bolas de borracha passarem-lhe rente à cabeça enquanto observava os confrontos encostado a uma árvore: a polícia parece disparar indiscriminadamente contra a multidão em movimento, reduzindo a precisão dos disparos. 

Os outros ferimentos registados vão desde marcas de bastonadas na cabeça ao efeito canhões de água disparados a curta distância – o i viu um manifestante ficar quase inconsciente no chão depois de levar com um jato de água na cabeça a curta distância.  

“Temos dois tipos de polícia: os uniformizados e os que não o estão. Estes últimos são os da Brigada Anti-Criminalidade (BAC), que trabalham principalmente nos subúrbios pobres. Aqui estão sempre a disparar e a disparar – e apontam à cabeça”, explica o paramédico de Reims. “São uns filhos da p***. Batem quando a malta está no chão”, diz, revoltado, Nelson Sousa, lusodescendente de 22 anos e mecânico de profissão. 

O ódio à polícia entre os manifestantes tem aumentado de sábado para sábado, com palavras de ordem como “Toda a gente odeia a polícia” e “Assassinos!” a serem recorrentemente gritadas. Quando estes polícias são apanhados isolados, a multidão avança, raivosa, para lhes bater. A resposta são os disparos das espingardas LBD-40.

A polícia francesa tem estado sob fogo por causa do número de feridos registados entre os manifestantes – mais de dois mil, entre os quais mais de 80 hospitalizados e com lesões para o resto da vida (pelo menos quatro pessoas perderam olhos), a que se juntam pelo menos 1200 feridos entre a polícia. No final da semana passada, a central sindical UGT e a Liga Francesa para os Direitos Humanos pediram ao Conselho de Estado francês, o órgão judicial consultivo mais elevado em França, que banisse os lançadores de bolas defensivas (LBD-40), a arma responsável pela grande maioria das lesões graves, mas o pedido foi recusado.

“O governo diz que não há qualquer problema de violência policial, mas esta tem subido nos últimos anos, mesmo antes dos coletes. Mas com os coletes atingiu níveis muito elevado”, garante Lionel, engenheiro de 36 anos que usa uma bandeja na cabeça em solidariedade com as vítimas das semanas anteriores. A violência voltará no próximo sábado e os manifestantes paramédicos também voltarão às ruas. Fá-lo-ão até os protestos acabarem, garantem.