Fyre Festival. O estranho charme dos vilões 2.0

Fyre Festival. O estranho charme dos vilões 2.0


Dois documentários lançados quase em simultâneo revelam o antes e o depois do festival que prometia reunir numa ilha os putos ricos de todo o mundo com as modelos e influencers. Afinal, acabou por ser um fiasco monumental, permitindo autopsiar uma cultura que vive de vender ilusões


É comum hoje um certo fascínio por um nova estirpe de sonhadores que não precisam de pousar a cabeça, fechar os olhos ou estar a dormir para arrancar do ambiente de estufa dos seus sonhos uma qualquer vingança face à mediocridade a que as tantas regras e leis nos condenam quando andamos despertos. Há alguns entre nós que, ficando um pouco aquém da loucura, deliram a seu bel-prazer e conseguem muitas vezes empurrar os outros para a redoma das suas criações oníricas. Numa época em que, a todo o momento, nos acirra a cultura do empreendedorismo, a conversa de que é preciso ser proativo, farejar mais cedo as oportunidades, se preciso passar a perna aos outros, talvez as redes sociais não tenham produzido nos últimos anos outro momento mais gratificante, tanto no que toca à galhofa quanto à necessidade de descompressão, como as reações à catástrofe do Fyre Festival, um festival de música que fora publicitado como o mais exclusivo e luxuoso evento do género e que cativou as atenções de milhões de pessoas, através de uma ardilosa campanha promovida nas redes sociais, recorrendo ao poder de alguns dos principais influencers, os omnipresentes semideuses da atual cultura cibernética.

Concebido originalmente como um extravagante golpe de marketing para promover uma nova app destinada a agenciar bandas e artistas musicais, o festival que deveria ter ocorrido, em 2017, numa paradisíaca ilha das Baamas onde, segundo reza a lenda, Pablo Escobar terá gozado à fartazana nos dias em que era o maior traficante do mundo, acabou por levar a um fiasco estrondoso, contra o opulento pano de fundo das expetativas criadas, ao prometer juntar naquele ponto isolado do Pacífico celebridades e modelos, recriando o Éden ao som das bandas mais badaladas do momento (o cartaz, como é da praxe, só seria anunciado mais tarde). Esta foi a premissa, difundida através do Instagram de algumas das personalidades com mais seguidores e a quem foram pagas avultadas somas (Kendal Jenner terá sido a mais bem paga, recebendo 250 mil dólares) para, no mesmo dia e à mesma hora, publicarem um enigmático quadrado laranja, com ligação para um vídeo promocional filmado alguns meses antes na tal ilha. Com o apelo das melhores campanhas de perfume, era protagonizado por um pequeno contingente de algumas das principais modelos da atualidade – entre elas Emily Ratajkowski, Bella Hadid e Hailey Baldwin -, que apareciam em iates e a nadar com porquinhos selvagens nas águas cintilantes, elevando o natural deslumbramento da ilha àquele ponto em que o sonho, mergulhando ou não, acaba molhado.

Foi o tipo de golpe orquestrado de forma a que ninguém pudesse ficar-lhe indiferente e conseguiu um sucesso retumbante, tendo esgotado em poucos dias os bilhetes disponíveis (e estamos a falar de preços a rondar as várias dezenas de milhares de dólares) para o festival que nenhum puto rico em busca de uma oportunidade para andar na gandaia com a aristocracia 2.0 se arriscaria a perder.

Nunca até então se tinha visto o equivalente a os Himalaias parirem um ratito com peladas. Talvez a melhor descrição daquilo que se passou, já não na tal ilha mas num mal-amanhado recinto de uma outra, a alguns quilómetros de distância, tenha sido feita por Dave Hanratty no site “Joe”, dizendo que, ao invés de um festival que seria a vergonha de todos os outros, alguns milhares de jovens ricos e influencers deram por si num cenário digno de “O Senhor das Moscas”, protagonizando o mais espetacular dos desastres modernos no que toca a uma “matriosca de ambições frustradas”. Em vez de luxuosas tendas ou casas de praia, do fabuloso catering, o que havia eram tendas daquelas que acolhem vítimas em zonas afetadas por catástrofes naturais, e, porque choveu na véspera, os colchões estavam encharcados, as bandas cancelaram à última hora, e, porque isto coincidiu com uma concorrida regata, todos os hotéis estavam lotados. Durante horas imperou um ambiente de salve-se quem puder. Naquele ponto isolado do mundo, de pouco valia aos defraudados festivaleiros o serem ricos; simplesmente, não tinham meio de sair da ilha.

E se, dois anos depois, recordamos esse acontecimento (que poderia ter sido congeminado como uma bestial partida pregada por um artista da estirpe de Banksy, conseguindo assim realizar nos nossos dias o equivalente da Capela Sistina), a razão é terem sido lançados dois documentários sobre o Fyre Festival quase em simultâneo. “Fyre: The Greatest Party That Never Happened” foi lançado pela Netflix, e a Hulu, através da HBO, lançou “Fyre Fraud”. Não vamos aqui fazer uma comparação entre os dois, até porque não tivemos a possibilidade de ver o segundo, mas apenas vincar o quanto aquele que vimos se apresenta como uma reflexão central sobre a atual cultura em que estamos imersos e em que todos os dias surgem novas abertas no que toca a engrupir a malta, encontrar ângulos para explorar o desejo dessas massas que anualmente se mostram disponíveis para largar belas maquias, não tanto para se divertirem quanto pelo receio de ficarem de fora de uma festa na qual os seus pares garantem que irão estar presentes. 

Por trás e no centro da tão pomposa iniciativa estava Billy McFarland, um puto nascido em 1991 e que tinha conseguido criar à sua volta o mito de que seria um desses visionários que em breve seria capaz de multiplicar os biliões dos investidores que apostassem nele. Tendo como parceiro de negócios na empreitada da tal app o rapper Ja Rule, tinha já antes criado um cartão de crédito negro e metálico que, além da paleta, supostamente dava acesso a uma série de eventos exclusivos num social club para a elite, bem como prioridade e descontos numa série de eventos muito requisitados. Chamava-se Magnises e, como o documentário da Netflix demonstra, a coisa nunca cumpriu as promessas, e quem quer que se desse ao trabalho de averiguar teria há muito percebido que McFarland tinha atrás de si um rastro de reclamações de clientes bem mais do que descontentes – absolutamente lixados.

O que o documentário com direção e argumento de Chris Smith tão bem desvela é a forma como, hoje, vivemos num estado de suspensão que ocorreu a par do fenómeno da financeirização da economia, permitindo que a lógica da especulação triunfasse em todos os aspetos da vida em sociedade. É assim que damos por nós a ouvir as risadas de Guy Debord, constatando como as suas profecias estão hoje a realizar-se de uma forma que chega a ser de tal modo obscena que é a realidade que parece provocar e humilhar os nossos sonhos, desafiando-os a elevarem a parada, a serem muito mais imaginativos. Se, no livro “A Sociedade do Espetáculo”, Debord alertava para o momento em que o espetáculo não seria mais um conjunto de imagens, mas a própria tessitura da relação social entre as pessoas, mediatizada por imagens, o Fyre Festival é a prova de que a constante campanha de vendas a que o público das redes sociais é submetido permitiu criar uma vastíssima e tão ingénua audiência que consome numa ânsia de não ficar para trás, não ser excluído. Nisto, vários dos axiomas de Debord tornam-se irrecusáveis. Neste contexto, o primeiro que nos ocorre é aquele que nos diz que “os espetadores não encontram o que desejam, eles desejam o que encontram”.

Na sequência de uma série de casos envolvendo habilidosos intrujões, nos EUA foi declarada aberta a época dos intrujões 2.0, dos vigaristas que se fazem valer da credulidade de uma era em que, como notava Jia Tolentino na “New Yorker”, as mitologias criadas à volta das oportunidades de lucro e reinvenção registam uma espetacular ascensão. É quando se tenta criar um ambiente propício a todo o género de negociatas que os trafulhas, mais e menos audaciosos, pressentem que a temporada de caça está aberta. Assim, vemos desenhar-se na opinião pública um espetro que vai desde o safardana que consegue conquistar o favor popular, seja sob a capa de Robin dos Bosques, roubando os ricos, mesmo sem distribuir os proventos pelos pobres, seja triunfando à portuguesa, como o rei dos chicos-espertos. E depois há aqueles que caem do outro lado e, depois de exaltados como visionários, provam ser apenas exemplos de sacanas gananciosos, como um certo ministro socialista que recentemente, e depois de alegadamente fazer milhões, foi bater com os ossos, ainda que preventivamente, numa cela prisional.

“Os vigaristas tendem a prosperar em tempos de transição”, diz-nos Tolentino, citando o livro de Maria Konnikova, no livro “The Confidence Game” (2016). Segundo a autora, os vigaristas nunca se sentem mais à-vontade do que em ambientes em que podem explorar a sensação de mal-estar que sentimos quando nos parece que o mundo, como o conhecemos, está prestes a mudar. E Tolentino adianta que, nos nossos dias, temos a sensação de que esse mal-estar pode vir a tornar-se crónico: “Todo o globo está a aquecer, as pressões do mercado estão a acelerar, a tecnologia está a avançar a um ritmo que provoca vertigens…” E remata: “Nalgum ponto entre a Grande Recessão, que começou em 2008, e a terrível eleição de 2016 [que levou um patego para a Casa Branca], a fraude parece ter-se tornado a lógica dominante da vida americana.” E quem diz vida americana diz, com uma redução à escala, da videirunha à portuguesa.