Apesar de (ainda) pouco conhecida na cena literária nacional, Lídia Borges não é uma estreante nas lides da escrita, tendo já uma significativa obra publicada. Em 2007, recebeu das mãos da escritora Matilde Rosa Araújo o segundo prémio do Concurso Nacional com o nome da escritora pelo conto “O Homem que roubava sonhos”; em 2001, estreia-se na poesia com No Espanto das Mãos, o Verbo (Lua de Marfim). Em 2013, com Sementes Daqui (poética edições), vence o prémio literário Maria Ondina Braga/Poesia e publica O Mistério dos Sonhos Roubados (contos infantis, com ilustrações de Manuela Rocha). Em 2015 publica Baile de Cítaras (poesia), regressando à escrita para crianças, em 2017, com Coisas Boas de Contar (rimas) e Aqui há Gato! (ilustrações de Sílvia Mota Lopes), obra que hoje integra o Plano Nacional de Leitura.
Garças é o título do novo livro de poesia de Lídia Borges onde se confirma a maturidade poética anunciada em Baile de Cítaras. Título simples, despojado, fortemente visual, reenviando o leitor para a imagem da garça, ave representada ao longo dos séculos como um símbolo de beleza, em particular nas gravuras japonesas e chinesas, chegando mesmo a confundir-se, em certos momentos da história da arte ocidental, com a fénix mitológica, talvez pela ideia de longevidade ou de retorno que a ela se associaram como ave migratória.
Para Lídia Borges, a garça é um símbolo paradoxal, ave que encanta pela elegância, mas ao mesmo tempo se alimenta do lodo do fundo dos lagos. Ela é o branco, fusão de todas as cores, uma certa ideia de pureza ou de unidade. A palavra poética, reinventada, ganhando asas e elevando-se acima da fealdade quotidiana, da lama suja dos dias: “Eu te reinvento, ó palavra/ garça com nostalgia do branco/eu te chamo”. (…)/ E espero que o dom da claridade/nasça dos lodos misteriosos/ no lago onde o Sol/em plena bebedeira,/se fez mergulhar” (p.13).
A palavra poética é assim Kosmos emergindo do Kaos, invocação de um mundo original e “divino” anterior aos deuses e ao verbo, anterior à razão e ao pensamento tal como estes se foram construindo no mundo ocidental. Seguindo a lição de Sophia, poeta com a qual a escrita de Lídia Borges mantém um intenso diálogo, reinventar a palavra significa (re)criar pela palavra esse momento primordial de deslumbramento perante a nudez pura das coisas e dos seres, dos corpos da natureza e do homem, de encanto perante a “physis”. O que faz do poeta, não tanto um “fingidor”, como pretendia Pessoa, mas antes um “escutador”, como afirma Sophia em “Arte Poética IV” (Búzio de Cós e outros poemas). Um escutador atento ao real e às vozes das coisas, aos seus silêncios e rumores, aos seus in-ditos e mistérios. Atento às vozes do tempo e da memória, da tradição poética.
“Que poema, de entre todos os poemas,/ página em branco?” (Coral), interroga-se a voz poética de Sophia, perante a brancura da página em branco, asa possível de todos os voos, interrogação onde ecoa tanto o livro por vir de Mallarmé como, e talvez sobretudo, a alvura do amanhecer do mundo. Ora é esta aurora de todos os sentidos que só o branco da página ou o silêncio podem dizer que encontramos na epígrafe de Garças: “O poema escolhe o lugar/por onde romper. /Só ele sabe onde é menos densa a geada.// Assim a Vida, esta cerimónia/demasiado alva, demasiado pura” (p.5). Esta imagem de brancura e de pureza, associadas ao romper da palavra inicial, surge espelhada em vários outros versos da primeira parte de Garças: “Branco,/ o âmago da palavra por principiar/o nascer do sol/em tuas mãos/muito mais que a alba”(p.10).
A voz poética expressa desta forma um desejo de renomeação do mundo, de fazer coincidir o nome e as coisas: “Primeiro, /sabia até as cores do canto dos pássaros./ Não acreditas?/ Era fácil saber as cores do canto dos pássaros/no tempo em que não existia diferença/na fala das espécies, à face da terra./Ouvia as conversas das heras,/seguia o rasto do caracol no muro/e adivinhava os segredos da solidão/impressos nas marcas deixadas nas pedras./Tudo era possível/porque o nome das coisas/eram o que eu chamava às coisas./ As palavras estavam em fase de delírio inicial/e desconheciam tudo sobre metamorfoses” (p.11).
Ecoa neste desejo de renomeação do mundo o gesto de desnomeação levado a cabo pela escritora americana Ursula Le Guin no conto “She Unnames Them” (We are the Stories we Tell), no qual uma figura feminina, habitante do Jardim do Éden, decide desnomear todos os seres à sua volta, libertando-os do espartilho e dos preconceitos impostos pela nomeação de outrem. Ou ainda o gesto de um poeta como Manoel de Barros, poeta que Lídia Borges igualmente convoca, a sua busca da despalavra e da agramática que permitem ao homem um regresso à pureza inicial, tornar-se coisa entre as coisas, ou como prefere dizer o poeta, devir “coisal”. Para o poeta do Pantanal, “minhocas arejam a terra: poetas, a linguagem”: caracóis, lesmas, minhocas e sapos, as árvores e as suas raízes de terra são a linguagem do chão que na poesia de Manoel de Barros ganha voz, um idioma rente à respiração do mundo. Se a linguagem do chão se pressente na poesia de Lídia Borges, esta configura-se sobretudo como linguagem do ar e da luz, idioma de cores: fala de brincos de rainha e de hidrângeas, de cerejas e de limões, de nuvens e de vento, de sol e de mar, de voos de garças e de estorninhos.
Para Lídia Borges, as palavras convencionais, “os alfarrábios sumptuosos, imponentes/com a mania das arrumações, seriações, significações/sentidos, aceções, tudo convertido/às convenções convencionadas. /Iam matando a poesia.”(p.12)
A linguagem quotidiana, a lógica discursiva impõe “arrumações”, uma gramática e uma sintaxe, relações de hierarquia e de poder entre as coisas e os seres. Pertence a uma ordem do mundo bem distinta do Kosmos grego, da unidade entre a “physis” e o homem que no tempo se perdeu e só na e pela palavra poética pode ser invocada ou reinventada. Para Lídia Borges (como para Sophia), renomear não constitui um regresso a esse mundo “divino” perdido, mas antes uma (provisória) recriação ou reinvenção pela palavra. Do mesmo modo que não é a noção de representação ou de verosimilhança que estão aqui em causa, centrais para a arte ocidental, mas antes uma questão de ontologia, do ser original das coisas.
Renomear, recriar a palavra branca e alada, significa, em última instância, um reencontro com o Sublime, um vislumbre do Belo em que desde sempre os homens pressentiram o rosto do divino. Um sublime que, como censuram os críticos desta voz poética, pertence a um mundo em extinção ou já desaparecido: “O Sublime é do mundo de ontem —disseram. /Deixe de sublimar o seu abominável Sublime./ O mundo de agora está farto/ de pássaros e de voos azuis.// O mundo de agora não tem verde que chegue para tantas árvores,/não tem água para tantos rios/nem rios para tanto mar.” (p.55). “Aconselho-a a recuar, a consultar o arquivo,/letra R—Rilke/Está lá tudo. Não se mace mais/com poemas elegíacos,/com azuis acetinados” (p.56)
Uma das marcas da singularidade desta voz é justamente o modo como ela busca afirmar a sua identidade poética na permanente tensão entre a tradição lírica revisitada e um desejo transgressor de modernidade. O modo como ela se situa no incerto limiar entre uma concepção modernista da poesia como construção e intensificação da linguagem e uma concepção da poesia como “regresso ao real” e ao referente, entre a atenção ao real e a recusa dos “poetas da experiência” que ganharam relevo a partir dos anos 90 do século XX. Esses “poetas desencantados”, cultores do Maldito, poetas da palavra sem asas e sem beleza, dessacralizada, de onde se ausentou todo e qualquer reflexo “divino”; “poetas que/mais por exibição que por devoção/ aspiram ao Maldito” preferindo a linguagem da abjecção e do grotesco, poetas para quem as palavras são “melros mortos presos/nos dentes afiados do gato” (p.72).
Marca de água desta voz poética é ainda o modo como ela se constrói em oposição ou em diálogo com um “tu” que a interpela, provoca, exaspera, seu negativo e seu cúmplice ou leitor, presença de um quotidiano desencantado, de um real não resgatado pela palavra reinventada. Mas também a convocação de um olhar feminino sobre as coisas, o apelo que faz à memória e, em particular, ao tempo da infância. Um olhar contido, objectivo, sem nostalgia, que não deixa de evocar o olhar de Cesário na leitura modernista de Pessoa: “Na cesta sobre o naperon/as cerejas ruborizam./Dir-me-ás que nada há de singular/numa cesta de cerejas a não ser /a sedutora espera de uma boca./E porque te tão claro te é o que vês,/não falarei/de umas mãos pequeninas que chegam do fundo da memória/para dedilhar brincos de rainha”(p.17). Convocação do olhar e da memória que passa igualmente pela memória literária ou cultural da autora, pelo diálogo intermedial ou intertextual que os poemas mantêm, entre outros, com a pintura de Dalí e as ilustrações da própria autora, com a música de Verdi e os filmes da Walt Disney, com poetas como Rilke e Juan Ramon Jiménez, como Ruy Belo, Eugénio, Cesário, Caeiro ou Fiama (“Estou assim a verde-cinza/e nem Caeiro nem Sophia nem Fiama/são chama que me aqueça o instante.” p.29), para além de Sophia ou de Manoel de Barros.
Garças é um livro em três andamentos, seguindo os momentos do dia, do amanhecer ao anoitecer, andamentos que desenham, musical e cromaticamente, o distender das asas da garça, o voo da palavra e o olhar sobre o “chão” de lama. Sobre o lodo que os tempos de crise deixaram sobre a cidade. Tempos de desolação, em que os senhores dos números fizeram migrar a palavra poética, reduzindo-a à inutilidade do artifício, substituindo-a por uma retórica vazia, desumana, sem sonho ou emoção: “Chegaram-me uns certos rumores:/ dizem que a lua vai ser privatizada. /Agora vai ficar muito mais caro o luar” (p. 62).
E contudo, é “uma fatia de lua ainda morna/algumas notas de violino ou de piano” (p.80) que esta voz poética pede a um “tu”, no final do livro. A natureza ou a arte como lugar do humano. Memória e resistência a um mundo sem deuses, sem sonho e sem beleza.
Na esteira de Sophia, a poesia de Lídia Borges procura uma íntima relação entre o estético, o ético e o político, busca a inteireza do homem que, para a poeta de “O Nome das Coisas”, só na poesia pode existir: “É a poesia que torna inteiro o meu estar na terra. E porque é a mais funda implicação do homem no real, a poesia é necessariamente política e fundamento da política. (…) Assim como busca a relação verdadeira do homem com a árvore ou com o rio, o poeta busca a relação verdadeira com os outros homens. (…) E porque busca a inteireza, a poesia é por sua natureza desalienação, princípio de desalienação, desalienação primordial. Liberdade primordial. Justiça primordial.” (Poesia e Revolução).
Desalienação consciente de que antes das palavras está o mundo e o nosso olhar sobre ele, as imagens que construímos e nos confrontam, como sublinha John Berger, com o modo de ver do outro.