A imagem icónica com que passou à posteridade – de pé, junto de uma bicicleta, em pleno, sorridente, espontâneo, resoluto manguito – poderia servir de iluminador prefácio a uma obra que soube manter-se ao recato dos concursos literários e das menções (des)honrosas, e agora reunida num único volume que a Tinta-da-China acaba de publicar. Não é ao acaso, nem aos cuidados de uma crítica tão irregular quanto a musa que o secretariou, que Assis Pacheco deve a relativa fama de que hoje goza no nosso meio literário – como poeta que soube manter-se a prudente distância da tradição do lirismo elevado, lançando uma suspeição sobre os grandes temas, trocados por uma representação do mundo aparentemente trivial. Mas também como jornalista versátil com provas dadas em reportagens, colunas regulares, entrevistas capazes de transpor a cerca que demarcava o jornalismo dito sério daquele terreno onde o humorista era quem mais ordenava.
Completaria hoje 82 anos, não tivessem disparado “aquelas taxas de que se morre”. E logo à entrada da livraria Buchholz, como se Dona Ironia, companheira de uma vida saboreada, primeiro na Coimbra dos doutores que o enfadavam até à náusea, depois nessa Lisboa que gostava de calcorrear para extrair do quotidiano materiais preciosos, quisesse mostrar que a figura que dá o braço é a mesma que retira o tapete. Penalizou família e roda de amigos, mas também os que o seguiam nos jornais e lhe liam os livros que primeiro fazia circular, quase clandestinamente, em edições de autor de minúscula tiragem e a própria livraria, pois Assis Pacheco era um leitor omnívoro.
O receio de ficar às escuras ficou registado num poema de “Respiração Assistida” (2003, edição póstuma) que corrigira pela última vez dias antes dessa última visita à Buchholz: “Eu vi? ouvi a morte? / e por instantes / era ela – luz negra – / tentando cegar-me." A saúde começou a falhar-lhe cedo. Já nos finais da década de 70, numa rubrica dominical que manteve aos microfones da RDP, “Crónica da Manhã”, Assis Pacheco não escondia do auditório, de quem tantas vezes se aproxima em registo coloquial e dialogante, alguns problemas: “Amigos meus que me aturais, para quem já não tenho muitos segredos, nem sequer os do miocárdio, desculpai-me esta divagação no terceiro quartel do século XX…».
Já a arte de esconder a técnica era uma constante do autor de Variações em Sousa. Mas muito embora a dominasse, encaixaria sem dificuldade naquele grupo de poetas que Alberto Caeiro lamentou não saberem florir, tomando o trabalho poético como um labor limae. Não montava, no entanto, banca, sequer nas imediações da história da literatura.
Viveu com um pé na Primavera outro no Outono. Uma atitude jovial perante a vida, tão capaz de celebrar a Nini, a inclemente rapariga que lhe deu uma tampa, como da irreverência saudável de um manguito, convivia com uma visão melancólica originada numa camoniana experiência da alegria: fugaz, espaçada, envenenada, pronta a entregar-nos rosas e malmequeres brancos, “violetas precoces”, num ramalhete que nos devolve uma escala cromática de sensações e sentimentos regularmente passados pelo crivo da (auto)ironia.
Todos os poetas relevantes nos dão, de um modo ou de outro, a sua visão do mundo. Mas se lermos a poesia de Fernando Assis Pacheco ficaremos a saber o que pensa sobre uma infinidade de coisas, das mais complexas às mais triviais: o amor e a guerra, a academia coimbrã e o fado (“o faaado é uma chumbada.”), as tendências poéticas do seu tempo, os comentadores do dia. Se umas vezes assume as suas opiniões com uma razoável veemência irónica, como acontece em Desversos, outras, elas encobrem-se numa aparente neutralidade descritiva, além de que nem sempre é fácil decidirmos se se trata da opinião do autor ou se a devemos antes atribuir a “um tal de Fernando Assis Pacheco”, essa espécie de personagem de si próprio que circula nos seus poemas.
Efemérides como a que hoje se assinala mereceram a Assis Pacheco a qualificação coloquial de “muito chatas”: “não tendo nós o dom da ressurreição – explicava – caímos não obstante num discurso tão próximo do evangélico que soa a falso.” Em todo o caso, pode-se sempre subverter a máxima pombalina que dá título ao seu primeiro livro de poemas, Cuidar dos Vivos (1963), dispensando as ronceiras rememorações de claustro. Nunca o regime de restrição sentimental a que parece obedecer a sua poesia. Parece.
Há poetas de respeitável nome de quem se pode dizer que entregaram à posteridade uma obra essencial, que ergueram um monumento perene (dirão os mais literatos – e mais confiantes), ou que ocupam na história da literatura o lugar próprio de uma personalidade singular, revelando uma visão do mundo fundamental patati patatá … – acrescentaria talvez o autor de A Profissão Dominante. E há a auto-irónica figura de Assis Pacheco, que passou a vida a dar cabo da própria ideia de autor-com-obra-feita, ora sovando o autor, um “refinado bruto”, capaz de mandar “Minerva e a Porta apanharem / onde o macaco mete com vossa licença as nozes”, narrador sem qualidades que bem poderia, como ironicamente admite numa entrevista, ter-se dedicado à literatura espanhola ou à culinária aplicada, ora sovando a obra, constituída por “vãos poemas”, “versos ribaldeiros” que integram um “universo poético escasso, pobre de referências. A família, a amizade, os acontecimentos do quotidiano, a iminência da morte, tudo distorcido pelo óculo da ironia”, mais não podendo deixar aos filhos como herança, além de uma garrafeira considerável, “uma rude & tosca escritura”.
Avessa ao instituído, ao solene, ao canónico (e aos odores da naftalina), à cartilha académica que saudavelmente desrespeitava, a poesia de Assis Pacheco, tendencialmente prosaica, orienta-se por um programa pronto a sabotar o oficial e os formatos agigantados, monumental incluído: passo por alto a sua recatada vida editorial, para destacar, por ex., “um Baco de Aldeia”. A verdade é que a auto-derrisão vai constituindo nós de significação muito pessoal, configuradores de um universo próprio e articulado. E mesmo na sua expressão fragmentária (“Ainda falta ó gaita o primeiro verso / legível desta narração partida em cacos”), sentimo-lo preso a obsessões e a núcleos temáticos que vão progressivamente criando o sentido de uma ideia de obra.
Fernando Assis Pacheco, bem mais próximo dos homens que dos deuses, descria das virtualidades da poesia, como fica claro logo num poema do livro de estreia, “Eu Tinha Grandes Naus”, marcado pelo minimalismo retórico e pelo efeito esmagador da banalidade quotidiana: “Os poetas lamentam-se de mais. / Gastam-se por vezes num choro muito fino, / quase impraticável. Querem ser ouvidos, / e vá de escreverem tal e tal desgraça. / Mas estão desempregados? perderam a mãe? / a chuva entra pelas solas com buracos? / ou vão mover o mundo, as azenhas do mundo?”
Se, por infelicidade, oferecessem um panteão à poesia de Fernando Assis Pacheco, o único que lhe conviria seria o dos grandes pícaros, como Fernão Mendes Pinto, erguido em destacada epígrafe em A Musa Irregular, ao lado do dos anti-heróis. Nunca o dos terramotos e dos grandes cataclismos, uma imagem que percorre a sua obra poética e contra a qual se parece precaver, expulsando entulho, eliminado cascalho, “liricalha lusa” – o que não serve, atravanca, pesa e derruba.
Atenta ao pequeno espectáculo do mundo – folhas secas ao vento, a geada na relva, brisas e furores amenos, a força vertical de uma árvore… – esta poesia foi construída em regime fronteiriço (confina com o romanesco, o registo diarístico), num terreno de sólidos alicerces culturais, cujos ecos por vezes nos chegam em bem realizadas contrafacções irónicas: a “noiva minha gentil”, “sôbolas rodas que giram”, “Nausicaah!”. Passa ao largo da literatura-literatura, mas, ainda assim, mostra-se capaz de abanar as suas paredes e corroer os fundamentos do género lírico. Coisa pouca.