Silêncio na Gare. Um último diálogo marado escutado por Rui Caeiro

Silêncio na Gare. Um último diálogo marado escutado por Rui Caeiro


Texto inédito do poeta, tradutor e editor que morreu na terça-feira, aos 75 anos, e que foi hoje a enterrar. É o relato de um diálogo que escutou há coisa de três anos, enquanto esperava o comboio que liga Oeiras a Lisboa. Alvo de inúmeras revisões, estava em pousio, e deveria ter sido publicado nas próximas…


A esta hora da manhã, algures entre as 7 e as 8, há já bastante gente na gare à espera do para-em-todas para o Cais do Sodré.  Homens de pé, ensonados, cansados, nervosos, muitos a fumarem. Mulheres sentadas nos poucos bancos da estação, de olhar fixo, um tanto perdido, uma ou outra aproveita para fazer renda. Tudo em silêncio, como se não estivesse ali ninguém. É todas as manhãs o mesmo, já não estranho, quem quer chegar a horas ao local de trabalho tem de passar por isto.

A gare do outro lado, a dos comboios para Cascais, está por enquanto deserta. Mais um início de dia tão monótono como igual aos demais, é o que devo ter pensado sem receio de me enganar.

Na gare em frente surge entretanto do nada um personagem inesperado. Um homem novo e de boa aparência, talvez ainda não tenha quarenta, vestindo casaco, sem gravata, anda de um lado para o outro em estado de grande agitação (não parece ser embriaguez) e de forma rude começa a invectivar quem tem pela frente: nós.

– Foda-se!, merda!, caralho! Eu quero que todos vocês se fodam! E a minha vida também não vale nada!

Mas o homem não desiste. Ele ainda não disse ao que vinha. Será talvez agora.

– Ofereço aos senhores o próximo espectáculo, estão todos convidados. Será um desfecho. Está quase a passar o rápido para Cascais. Esperem um pouco e olhem bem com atenção o que se vai seguir.

E o que logo após sucede é uma nova surpresa.

Como impulsionada por uma mola, uma mulher que estava sentada num dos bancos da estação ergue-se e dirige-se com ar decidido para a beira da gare. Quem está à frente afasta-se para a deixar passar. É uma mulher do povo, e não sendo embora de muito baixa estatura, ela é anã. Há um porte nobre no seu andar decidido, na cabeça volumosa ligeiramente erguida. E à beira da linha ela detém-se e atira ao tresloucado que tem pela frente:

– Não seja parvo!

A voz é forte e bem colocada.

Como que hipnotizado, o tresloucado não reage, olha-a fixamente.

– O senhor não vai matar-se coisa nenhuma!

– Ai não? E porquê, não me diz?

– Porque ninguém se mata assim, por causa de uma noite mal passada, ou mal dormida, ou uns copos a mais. Por isso esteja quieto.

Começa a ouvir-se, vindo do lado de Paço d’Arcos, o ruído de aproximação do rápido.

Ninguém se manifesta, mas é perceptível que a tensão que paira no ar chegou ao rubro.  O ruído intensifica-se, torna-se ensurdecedor. São muitas carruagens, o comboio leva o seu tempo a passar.

Após o que, constata-se, quer ela quer ele continuam imóveis, no exacto lugar, na exacta posição em que estavam antes. Um diante do outro.

E continuam a olhar-se. Ela com a atenção e frontalidade de antes, ele, dir-se-ia, com uma espécie de curiosidade, ou respeito, talvez também ternura, sei lá. E é ele quem primeiro se lhe dirige.  Num inesperado tom suave:

– Se a senhora soubesse o que tem sido a minha vida…

E a anã, de imediato:

– E a minha vida, como é que o senhor acha que tem sido?

 

O diálogo fica por aqui.  O silêncio volta de novo a ambas as gares. Afinal nada mesmo se passara.

Uma anã qualquer a salvar a vida a um gajo que também não se sabe quem fosse – olha lá a grande coisa.

 

Rui Caeiro

Dezembro de 2018