Idade Média. Afinal, as mulheres também iluminavam manuscritos

Idade Média. Afinal, as mulheres também iluminavam manuscritos


As imagens de um grupo de monjes dedicados ao laborioso trabalho de iluminar um manuscrito têm que ser repensadas – uma análise a um esqueleto desenterrado num cemitério de um mosteiro na Alemanha revelou que também as mulheres se dedicaram a este trabalho


A cena colou no imaginário coletivo, para muitos culpa de “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, para outros tantos pela adaptação homónima à grande tela de Jean-Jacques Annaud, em 1987: um grupo de monges, curvado sobre um estirador, decorando pacientemente manuscritos medievais.

Continua a ser ponto assente que nos tempos da Idade Média, na Europa, o trabalho de passar para o pergaminho a sabedoria do mundo coube quase na totalidade às ordens religiosas. Mas até agora pensava-se que o labor tinha sido efetuado unicamente por homens. Este mês, um estudo publicado na “Science Advances” provou que a História continua a ser reescrita e que havia mulheres que teriam desempenhado a mesma função.

Uma equipa de investigadores do Max Planck Institute for the Science of Human History da Universidade de York descobriu vestígios de lápis-lazúli na placa dentária do esqueleto de uma mulher enterrada num pequeno mosteiro situado na zona de Dalheim, no centro da Alemanha. Segundo os investigadores, a descoberta indicia que esta mulher teria sido, muito provavelmente, uma das pintoras das iluminuras que acompanhavam os manuscritos religiosos. A mulher terá morrido entre os 45 e os 60 anos por volta do ano 1100, e os seus restos mortais não apresentavam quaisquer sinais de trauma ou infeção. A equipa do Max Planck acredita que, por ter segurado os pincéis (ou penas) com os preciosos pigmentos de lápis-lazúli durante o seu trabalho, estes terão calcificado nos cálculos da sua placa dentária ao longo da sua vida. “Foi uma completa surpresa – à medida que os cálculos se foram dissolvendo, libertaram centenas de pequenas partículas azuis”, diz Anita Radini, coautora do artigo, da Universidade de York. “Examinámos muitos cenários de como poderia ter o mineral ficado embebido nos seus dentes”, explica Radini. “Baseados na forma como estavam distribuídos na sua boca, concluímos que o mais plausível era que ela estivesse a pintar com o pigmento e que, pelo meio, levasse o pincel à boca”.

As posteriores análises às tais partículas confirmaram que se tratava de lápis–lazúli, um material nobre e cuja utilização, a par do ouro e da prata, estava reservada aos manuscritos mais preciosos. “O uso deste material só era confiado aos escribas e pintores de excecional qualidade”, sublinha Alison Beach, uma historiadora ligada ao projeto da Universidade de Ohio.

Esta é uma descoberta sem precedentes. Durante a Idade Média, a Alemanha foi um dos mais ativos centros de produção livreira, mas poder balizar o contributo no feminino deste trabalho é “particularmente difícil”. “Como sinal de humildade, muitos escribas e pintores medievais não assinavam os seus trabalhos, uma prática que apelava especialmente às mulheres. A baixíssima visibilidade do seu trabalho na produção dos manuscritos levou a que muitos académicos modernos assumissem que as mulheres tiveram um papel quase irrelevante neste capítulo”, nota o comunicado, que dá conta da publicação do artigo, enviado ao i.

“Esta é a evidência de uma mulher que não só pintava como pintava com um pigmento muito raro e caro”, nota Christina Warinner do Max Plack, a autora principal do artigo científico. “A história desta mulher poderia ter ficado escondida para sempre se não tivéssemos usado estas técnicas [entre outras, os investigadores usaram uma tecnologia chamada Espectroscopia micro-Raman]. Faz-me pensar em quantas mais artistas poderíamos encontrar, se procurássemos, nos cemitérios medievais.

O mosteiro onde se situava o cemitério já não existe desde o século XIV. Primeiro, o espaço sofreu um incêndio e, depois, vestígios foram sendo apagados pelas sucessivas batalhas desse século. Há muito poucos registos sobre a ordem que ali habitou. Terá sido fundado por um grupo de monjas no início do século x e os investigadores acreditam que tenha albergado umas 14 religiosas. Não é possível aferir se esta misteriosa pintora seria uma delas, mas tudo indica que sim. E, ao pintar com um pigmento destes, é também testemunho das tricas comerciais intensas que já se viviam nestes tempos. “Ela estava ligada a uma vasta rede comercial que se estendia das minas do Afeganistão à sua pequena comunidade na Alemanha medieval, através das metrópoles do Egito islâmico e da Constantinopla bizantina (…). O precioso pigmento viajou milhares de quilómetros através das caravanas e navios mercantes para servir à ambição criativa desta artista”, remata o historiador e coautor Michael McCormick, da Universidade de Harvard.