Cultura de fronteira. Bem-vindos a Nepantla

Cultura de fronteira. Bem-vindos a Nepantla


A fronteira não impede que uma cultura comum se estabeleça dos dois lados da delimitação geográfica artificial. Nesse lugar entre lugares, Nepantla, as influências do norte e do sul misturam-se ao ponto de transformarem a estreita e sinuosa linha, do golfo do México ao Pacífico, num país diferente, o país da fronteira.


Terra de 7,5 milhões de pessoas, o território da fronteira entre os Estados Unidos e o México é muitas vezes considerado uma terceira nação, feita do entrecruzar da cultura dos dois lados, estendendo-se ao longo de uma estreita franja de terra que vai do golfo do México ao Pacífico. Como escreveu Alexandre Gutzmer, no texto que acompanha o ensaio fotográfico do nova-iorquino Stefan Falke sobre os artistas da região, “quando penso em fronteiras, nenhuma parece tão rica, tanto em simbolismo cultural como em implicações políticas, como a fronteira entre o México e os EUA”.

“Cidades pecadoras de fronteira com más reputações. Cordilheiras indomáveis, ursos, leões e lobos. Índios. Uma fronteira perigosa. Os habitantes falam com pronúncia vaqueira, ouvem música country, dançam o two-step, preferem chapéus de cowboy, cintos com grandes fivelas e pickups”, escrevia em 2001 Luis Alberto Urrea, num dos grandes livros sobre a fronteira, “The Devil’s Highway: A True Story”.

Daniel Watman, poeta de fronteira e ativista, costumava organizar encontros de poesia nos dois lados da fronteira em Playas de Tijuana. Costumava é como quem diz, ainda o faz, só que agora transformaram-se quase em happenings de resistência. Com uma segunda linha de vedação, toda a poesia se torna política, lida com megafone e interpretada em linguagem gestual para que possa superar a barreira e insistir na partilha.

O seu projeto “Border Encuentro” levava, em meados dos anos 2000, ao Friendship Park em Playa Tijuana, junto à Porta da Esperança, aulas de salsa, de ioga, de língua gestual. Agora, Watman quer transformar o Parque de la Amistad (no seu nome em espanhol), inaugurado pela então primeira-dama dos EUA Pat Nixon em 1971, num Jardim Binacional. Para isso, criou no ano passado uma petição para dar vida a esse “lugar aberto para estabelecer amizades através da fronteira”.

Como refere Paula Flores, de 29 anos, nascida em Tijuana, uma das 42 artistas representadas na exposição “Estando aqui contigo/Being Here With You”, em exibição no Museu de Arte Contemporânea San Diego até 3 de fevereiro: “Não somos dois lugares separados, somos uma região.”

San Diego e Tijuana são cidades gémeas, como outras ao longo da linha de demarcação entre os dois países, onde a fronteira tem sido historicamente sítio de passagem mais que barreira intransponível. “As pessoas não percebem como dependemos uns dos outros e como estas duas comunidades estão realmente interligadas”, acrescenta Paula Flores, citada no site Loma Beat.

É a resistência, hoje, mas a próxima geração de segurança reforçada e muros altos virá com esse sentimento de pertença a esse mundo de passagem? Do lado mexicano, alguém escreveu na vedação “aqui es donde rebotan los sueños”, que é como quem diz, em espanhol, é ali, naquela fronteira, que os sonhos ressaltam e atingem em cheio quem os sonha – e mesmo à vista do eldorado. E há quem lembre as palavras de Pat Nixon como se não tivessem passado 47 anos, mas séculos: “Espero que a vedação não esteja aqui por muito tempo.”

Nos anos 1960, incentivado por todos os movimentos cívicos nos EUA, pela luta dos negros, surgia também o Chicano Movement ou El Movimiento, que visava o empoderamento da comunidade méxico-americana, com lutas pela restauração dos direitos de propriedade da terra, melhorias na educação, direito ao voto. Isto levou a uma recuperação da herança mexicana, ao orgulho nas raízes que tinha sido preterido pelo desejo dos braceros (trabalhadores que chegaram aos EUA nos programas de contratação de mão-de-obra estrangeira dos anos 1940 e 1950) de garantirem a integração dos filhos no país de acolhimento.

O movimento chicano levou ao desenvolvimento da arte de fronteira na região de San Diego, uma arte que assumia a existência de uma nação chicana no sudoeste dos Estados Unidos e que depois, a partir dos anos 1970, passou a focar-
-se nas violações dos direitos humanos e na desigualdade económica. Continua a ser uma arte política, orgulhosa e afirmativa, a arte da terceira nação.

Tentar dividir uma cultura com um muro é como imaginar uma cerca de arame farpado no cérebro e esperar que os sonhos não escapem. A língua, a música, a comida, as pessoas movem-se, e não é uma vedação física que as impedirá. Daí que a fronteira se torne também um desafio à resistência e que a resiliência se transforme em característica fundamental dessa cultura.

“Welcome to Tijuana, tequila, sexo y marijuana.” Em 2014, a NPR, a rádio pública dos EUA, dedicou uma série de programas à cultura de fronteira, tendo a música como companhia essencial. Steve Inskeep, o viajante radiofónico, garantia que, ironicamente, a canção de Manu Chao, francês, filho de um antigo republicano espanhol foragido para França depois da vitória de Franco, se tinha transformado num hino improvável para uma geração de jovens crescidos na fronteira, num ambiente de duas culturas. Mesmo tocando em todos os estereótipos da cidade fronteiriça, Manu Chao foi capaz de tocar corações.

Parece que há esperança de que a cultura resista no clima securitário das próximas gerações. Como explica a fotógrafa Raechel Running, cujo trabalho se centra nas pessoas de ambos os lados da fronteira, “a arte é uma ponte”. As suas fotos refletem esse “corrido visual” do “realismo mágico de Nepantla, lugar e povo entre os mundos da fronteira”. Nepantla é o conceito chicano para a ideia de “estar no meio”, entre uma coisa e outra, sem ser necessariamente uma coisa e sem pertencer realmente à outra.