Existe a ideia de que, à medida que as sociedades ficam mais complexas, a legislação que regula o seu funcionamento deve ser igualmente densa e abundante. No entanto, essa densificação legislativa iludiu-nos com o pressuposto de que maior quantidade corresponde a melhor qualidade.
No caso do urbanismo e ordenamento do território, por exemplo, tendemos a pensar que a existência de um maior número de leis, planos e regulamentos produz melhores cidades. Infelizmente, não só não é esse o caso como o contrário pode estar mais próximo da verdade; quando Tácito, historiador romano do séc. I, afirmava que “quanto mais corrupto o governo, maior o número de leis”, existia nesta advertência o pressuposto de que o excesso e a complexidade das leis poderiam funcionar como uma teia – um artifício eficiente para capturar e imobilizar os insetos mais pequenos, mas ineficaz para conter os insetos maiores e poderosos.
No licenciamento urbanístico, as semelhanças são evidentes: os grandes empreendimentos e investimentos têm normalmente carta branca (os PIN – Projetos de Interesse Nacional, são disso o exemplo), enquanto os pequenos licenciamentos particulares encontram frequentemente muralhas de regras e objeções que testam a paciência de qualquer cidadão. A instabilidade e a incerteza jurídica que regem o urbanismo estão ainda patentes nas sucessivas alterações de que foram alvo os seus principais regimes de licenciamento: o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial e o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação sofreram 11 e 19 alterações desde que foram estabelecidos através do decreto-lei n.o 380/99 e decreto-lei n.o 555/99, respetivamente.
Como prova de que essa teia tem prejudicado a interpretação clara das leis e regulamentos, basta recorrer à base de dados dos contratos públicos que a administração pública celebra com entidades privadas (www.base.gov.pt) para verificar com espanto e indignação a incapacidade que o próprio Estado tem para interpretar as leis que ele mesmo cria: de 2009 a 2018, só em assessorias, apoios e pareceres jurídicos, o Estado português pagou cerca de 90,8 milhões de euros. Sem qualquer surpresa se verifica que não só o número de contratos celebrados tem vindo a aumentar (142 contratos em 2008 para 318 em 2018) como o próprio valor desses contratos não para de subir (5,1 milhões em 2008 para 15 milhões em 2018). Sendo difícil aferir qual a percentagem respeitante a assessoria, apoio e pareceres jurídicos em matérias urbanísticas, a premissa essencial do problema mantém-se: não dispondo de recursos humanos que possam interpretar e aplicar as leis com conhecimento e parcimónia, o Estado recorre a juristas e advogados que desenvolvem a sua atividade no setor privado – com todo o prejuízo económico e todas as questões de conflitualidade de interesses que essas situações configuram – para resolver problemas que ele próprio cria ao aprovar leis que estão para além da compreensão dos seus agentes.
Quando o Estado português celebrou, em 1961, o contrato de construção da Ponte sobre o Tejo com a U. S. Steel, a legislação que previa essa construção era simples, clara e rigorosa, vindo a consubstanciar-se numa obra pública exemplar em termos de financiamento. Quando, em 2001, o Tribunal de Contas emitiu o relatório de Auditoria ao Acordo Global celebrado entre o Estado e a Lusoponte referente à construção da Ponte Vasco da Gama, a conclusão foi outra: elevada oneração do erário público. Porque será?