29 de janeiro de 1939. O sr. Cerqueira e a sua incontrolável atração por navios

29 de janeiro de 1939. O sr. Cerqueira e a sua incontrolável atração por navios


Natural de Marco de Canaveses, Manuel andou anos a viajar entre Lisboa e Nova Iorque, muitas das vezes clandestinamente. Tinha um sonho de América mas sem tostões nos bolsos. Puseram-lhe um carimbo: “Indesejável!”


Manuel Cerqueira, 30 anos, natural da freguesia do Couto, Marco de Canaveses, tinha uma incontrolável atração por navios. Moço casado, aparentemente tranquilo, vivia por dentro uma inquietação marítima de fazer inveja a qualquer Bartolomeu Dias. Não quis o destino que fosse marinheiro. Nem mero embarcadiço. Ah! E tinha, fervilhante, um sonho de Américas.

Em julho de 1936 estava em Nova Iorque. Vendera umas courelas deixadas por um tio generoso na hora da morte e pusera-se ao caminho. O dinheiro era pouco, a terra não valia grande coisa, entrou com o peito enfunado num empreendimento que o bolso não seria nunca capaz de sustentar. Nova Iorque passou de devaneio a pesadelo. Afinal, não é com descarada impunidade que se passeia pela Quinta Avenida sem um cêntimo para gastar. A solução foi o paquete Rex. Sim, Cerqueira recusava-se com determinação a percorrer a existência por vielas mal amanhadas. Gostava do luxo. Encantava-se pelo espalhafato.

O SS Rex, pertencente à Italian Line, tinha todos os atributos para atrair aqueles que queriam atravessar o Atlântico num salão de festas. Havia quem o alcunhasse de Riviera Flutuante. Decorado num estilo art déco, exibia uma piscina com ondas artificiais e rodeada de chapéus de sol com ademanes de praia do Adriático. Fora construído para percorrer a linha Génova-Nova Iorque, mas logo na viagem inicial, em agosto de 1931, problemas mecânicos prenderam-no a Gibraltar durante semanas. Um fracasso, sem dúvida. Mas, ainda assim, recompôs-se. E não tardou a ser um dos navios mais requisitados pela alta burguesia e pela antiga aristocracia italiana, que fugia a sete pés do regime de Mussolini.

Apanhado! Manuel Cerqueira, cansado de ser pelintra na Cidade que Nunca Dorme, resolveu que era preciso ir tentar alienar mais umas courelas lá na sua Marco de Canaveses natal antes de voltar a procurar a sorte na América. Embarcou no Rex. A escala em Lisboa não foi das mais agradáveis. Os passageiros clandestinos nunca foram muito bem-vistos, nem no tempo dos corsários, outras flores que não eram de se cheirar. E a sua clandestinidade teve muito pouco de clandestina porque havia nele essa total incapacidade de ser essencialmente discreto. Foi entregue à polícia mal desembarcou em Portugal. Seria posto em liberdade uma semana mais tarde. Mas não lhe serviu de lição.

Aforrado com mais uma notas, ainda que escassas, voltou ao Rex. Decididamente, tornara-se uma mania. Mas desta vez tinha o bilhete na mão. E outra vez com Nova Iorque no pensamento. Era um rapaz de ideias fixas. Só que os americanos não estavam para o aturar. O registo da sua permanência anterior valeu-lhe um carimbo no passaporte: “Indesejável!” Mandaram-no recambiado para a Europa. No regresso do Rex, pois então.

Manuel era Cerqueira de apelido, mas tinha ebulição como nome do meio. Passou um ano entre Marco de Canaveses e Lisboa, biscate aqui, biscate ali, sem emprego certo ou trabalho seguro, a sonhar com Manhattan e com a Estátua da Liberdade. Na verdade, deixara de ser casado. E também não era solteiro. Era solto. E solto quis viver até ao fim dos seus dias.

Em 1938, a Europa explodia numa guerra sem quartel e Cerqueira estava-se positivamente nas tintas para a Europa e para a guerra. A sua obsessão eram os Estados Unidos. Convenceu-se de que a fortuna continuava lá, à sua espera, de braços tão abertos como as amantes que tomava pelas vadiagens lisboetas. E que, estando à sua espera, não tinha de se esforçar por ela. Ou melhor: ter, até tinha. Mas o esforço esgotava-se no momento de embarcar.

O Rex já não era alternativa. Ele e o Conde de Saboia, espécie de irmão gémeo, refugiavam-se nas águas do Atlântico, utilizados com frequência para o transporte de tropas até ao norte de África. O seu fim seria triste, afundado ao largo de Capodistria por 59 cargas de explosivos largadas pelo esquadrão 272 da Royal Air Force Beaufighters. Mas calma, isso foi só em 1944.

Entretanto, sem Rex, Cerqueira optou por se infiltrar às escondidas no navio de carga Examiner. Foi apanhado com a boca na botija no momento da descarga. Afirmou que se alimentara à custa de pacotes de bolachas que faziam parte da mercadoria. Não tinha documentos. Com os níveis de paciência no limite, as autoridades portuárias nova-iorquinas enfiaram-no à pressa na primeira alternativa: o Excelso, sob bandeira romena, que o largou em Constança, junto ao mar Negro. Nem aí o quiseram. O cônsul português em Bucareste intercedeu. Ao fim de quatro meses, Manuel Cerqueira recebeu os papéis necessários para demandar Lisboa. Veio de barco, claro. No Baloeran. Sempre um degrau mais abaixo na escala da qualidade marítima. Chegou em 29 de janeiro de 1939.

Cerqueira não se importava. Confessou mais tarde que tirou grande prazer de todas essas viagens, ainda que não se tivesse conseguido manter em lado algum. Era um passageiro bem-disposto que aceitava com bonomia o que quer que lhe exigissem. 

Já os donos do Excelso não tinham sentido de humor. Apresentaram uma queixa às autoridades portuguesas, exigindo uma indemnização pelos gastos tidos com Cerqueira. Acrescentaram, inclusive, que ele era dono de um insaciável apetite. Debalde. Ficaram, como se costuma dizer, a ver navios.