A virulência quotidiana do falatório político causa-me impaciência, rubidez e titilações no alto da ideia. Nesta era da transparência em que é politicamente correcto pôr tudo indecorosamente ao léu, os caminhos do poder estão cada vez mais juncados de minas e armadilhas – que todo o político que se preza deve saber evitar se quiser ser perfeito. Por isso, na minha incessante busca da perfeição – sobretudo com o generoso propósito de ajudar a Pátria e a República –, decidi há tempos elaborar um receituário popular para políticos. Confesso que comecei por recorrer à obra de Maquiavel, mas depressa me disseram que não é politicamente correcto citá-lo. Nem por isso desanimei. E socorri-me de expressões populares portuguesas (*). E o certo é que, tudo bem visto e ponderado, a solução que encontrei foi tão simples quanto a de Colombo para pôr o famoso ovo de pé, ou seja: a sabedoria popular vai dar exactamente ao mesmo que Maquiavel.
Antes do mais, um político tem de saber o terreno que pisa, conhecer os cantos à casa, ver do que a casa gasta, chamar os bois pelos nomes e descobrir onde está o gato. Não se lhe exige sabedoria a potes, mas tem de topar de que lado lhe chove, saber as linhas com que se cose, mexer nos cordelinhos, perceber mais a dormir do que os outros acordados, conseguir levar a água ao seu moinho e vender bem o seu peixe. Também deve saber como elas lhe mordem, e como lhe doem, sempre que lhe sair um tiro pela culatra. Um político tem de ser, em suma, astuto, calejado, ladino, matreiro e velhaco – se não quiser ouvir um dia um paspalho qualquer a dizer: “Afinal, ele sabe tanto disto como eu de lagares de azeite!”
Um político que se preza não pode ser cabeça-de-alho-chocho nem de-burro nem de-abóbora nem de-atum – para não ser forçado a andar de cabeça baixa sempre que bater com ela numa parede ou der com os burrinhos na água. Também não pode ser um cabeça-de--vento ou de-pau ou de-avelã, não deve ter cabeça dura nem andar de cabeça no ar – se não quiser passar a vida com a cabeça à razão de juros. Nunca pode aceitar ser cabeça-de-turco nem admitir que outros lhe ponham a cabeça em água. E só deve aceitar ser um cabeça--de-motim se o adversário for um cabeça-de-alfinete. De resto, até pode ter uma enorme cabeçorra ou ser um grande cabeçudo, desde que não ande de espinhela caída e mantenha sempre a cabeça fria.
Antes de botar espiche e dizer ao que vem, o político deve ter o cuidado de saber em que param as modas, ver com os próprios olhos, e com olhos de ver, se não quiser ver Braga por um canudo e ver a vida a andar para trás. Também não é recomendável que se ponha a ver mosquitos na outra banda, porque ainda acaba a ver mosquitos por cordas ou a ver estrelas ao meio-dia. O político não pode vir de carrinho, tem de vir com pezinhos de lã. E não deve vir de orelhas murchas, tem de vir com ela fisgada. Não pode chegar tarde e a más horas, tem de vir a talho de foice. Não pode vir ao engano, tem de vir mesmo a calhar. Além disso, deve saber topar a parada, descalçar a bota e ser vivo como um pardal. Não pode viver nas nuvens nem tomar a nuvem por Juno. Pode tomar a peito, mas nunca ao pé da letra. Deve saber virar de bordo, mas nunca girar como um cata-vento – não vá o céu cair-lhe em cima ou virar-se o feitiço contra o feiticeiro. Um político sem defeito de fabrico não pode ser quebra-ossos, mas tem de saber quebrar o galho. Pode derramar afectos, mas sempre com pêlos no coração.
Um político pode arribar dum burgo, das berças ou da parvónia, mas deve começar por visitar as capelinhas todas – se não quiser que o mandem plantar batatas ou apanhar bonés. Sempre que desbobinar em público, deve ser cauteloso: pode mandar bocas, mas não deve mandar nada às malvas nem ninguém àquela parte – a menos que queira que o mandem para o maneta. O político não pode desbragar-se, deve ter maneiras. Não viverá de casa e pucarinho nem andará na desbunda. Sabe que a ordem é rica e os frades são poucos, mas não pode levar a ironia longe demais. Não deve viver como um rei nem à grande e à francesa. Mas também não pode viver de expedientes nem ao deus-dará. É claro que não deve sair a cavalo nem à espora, porque sair da casca ou sair da linha lhe pode sair muito caro no tão crepitante, mediático e coscuvilhante mundo em que vive. Deve estar ciente de que o político perfeito é o que logra sair do poder com elegância – na ponta dos pés, e não a pontapé. Se não o conseguir, poderá tentar sair à francesa e ver se não sai com o rabo entre as pernas.
O político perfeito deita o barro à parede, mas não arma ao pingarelho para não levar um bigode. Passa o tempo a aparar o jogo para não apanhar um chimbalau. Também não gosta de armar pé–de-vento nem de armar banzé para não levar no toutiço. Terá, por vezes, de dar uma no cravo e outra na ferradura, mas não deverá dar facadas no matrimónio se não tiver destreza bastante para dissimulá-las. Nem sempre deverá cortar a direito, mas poderá entreter-se a cortar na casaca. O político perfeito anda a passo de boi se for um “homem de Estado”, mas tem de cuidar que não lhe apertem os calos. O político perfeito é o que sabe jogar na retranca e estar sempre a pau, não vá o Diabo tecê-las… O político perfeito é um chato!
(*) “Dicionário de Expressões Populares Portuguesas”, de Guilherme Augusto Simões
Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990