Michel Legrand. O compositor feito estrela de cinema

Michel Legrand. O compositor feito estrela de cinema


Músico, compositor e pianista de jazz, Michel Legrand gravou uma centena de discos e compôs perto de 200 bandas sonoras para televisão e cinema que o levaram até Hollywood


Vencedor de três Óscares, compositor de canções como “The Windmills of Your Mind”, “I Will Wait For You”, “You Must Believe in Spring”, “What Are You Doing the Rest of Your Life” ou de um sem-fim de bandas sonoras, de entre as quais se destacará, sempre, “Les Parapluies de Cherbourg”, de Jacques Demy. Com uma carreira que, além da composição de canções e de bandas sonoras para cinema, se estendeu ao jazz e à condução de orquestras e que, se for para se medir em números, não se poderá ficar pela menção a três Óscares e a 13 nomeações.

Por exemplo, o de Melhor Música Original, em 1968, pelo tema que compôs para “O Grande Mestre do Crime”, de Norman Jewison, com Steve McQueen e Faye Dunaway – “The Windmills of Your Wind”. Foram, de resto, mais de 150 bandas sonoras para cinema, mais algumas dezenas para televisão, que o levaram aos Emmys ainda, e uma centena de discos gravados, ao longo de uma carreira na música que se estendeu por toda a segunda metade do séc. xx, até praticamente à sua morte. Neste sábado, em Paris, aos 86 anos, ao lado da mulher, a atriz Macha Méril, avançou o seu agente à AFP.

“Com o seu sentido de ritmo e a sua paixão absoluta pela vida, alterou o significado da música nos filmes”, lê-se no comunicado, citado pela imprensa internacional. Pouco depois, a Cinemateca Francesa assinalava nas redes sociais a morte do compositor, recuperando uma citação sua – “Acabei por adquirir a crença de que a morte não é o fim. A vida continua depois” – para homenagear a “imensa carreira” de compositor que Legrand construiu “ao lado de Demy, Varda, Godard, Rappeneau, Mulligan mais aussi Montand, Streisand, Sinatra, Aznavour, Davis”.

Nascido em Paris em fevereiro de 1932, filho do maestro e compositor Raymond Legrand e de Marcelle Ter-Mikaëlian, de origem arménia e irmã de um maestro também, Jacques Hélian, Michel Legrand estudou piano e partitura no Conservatório de Paris a partir dos dez anos, juntamente com a irmã mais velha, Christiane Legrand, cantora de jazz e atriz. A paixão pelo jazz nasceu quando estudava ainda no conservatório, em 1947, quando assistiu a um concerto de Dizzy Gillespie, com quem viria a colaborar anos mais tarde, quando em 1952 compôs os arranjos para a orquestra de cordas que acompanharia o trompetista numa digressão pela Europa.

No jazz, que ocupou uma parte importante da sua carreira, colaborou ao longo dos anos com uma série de músicos como Miles Davis, John Coltrane, Bill Evans ou Herbie Mann. Foram também vários os músicos que regravaram músicas da sua autoria, como “What Are You Doing the Rest of Your Life”, “Watch What Happens” e “The Summer Knows”.

De Demy a Orson Welles “Cantar é uma forma natural de expressão”, dizia numa entrevista recuperada pela Criterion Collection, disponível no YouTube. Na última entrevista concedida ao jornal francês “Le Figaro”, agora recuperada, reagia à homenagem que Damien Chazelle disse prestar-lhe com “La La Land”, a ele e a Jacques Demy, por “Les Parapluies de Cherbourg” (1957): “Sim, o Damien Chazelle ligou-me um dia em que estava de passagem por Paris. Disse-me: ‘Quero mostrar-lhe um filme que vou fazer com referências ao seu trabalho com Jacques Demy. Vi o ‘Les Parapluies de Cherbourg’ 23 vezes seguidas e isso mudou a minha vida.’ Isto comoveu-me”, dizia ao “Figaro”. “O seu filme [La La Land] é uma maravilha. Um mise en scène soberbo.”

“Les Parapluies de Cherbourg”, com o qual fez história nos Óscares ao ser nomeado, em simultâneo, nas categorias de Melhor Banda Sonora Original, Melhor Música e Melhor Adaptação Musical, foi apenas um entre os dez filmes que assinalaram a recorrente colaboração com o realizador francês Jacques Demy, que começou com “Lola”, em 1961. Seria essa, a par da de 70, a sua década mais prolífica na criação de bandas sonoras para cinema, às quais viriam a juntar-se algumas para televisão.

A Jacques Demy juntaram-se realizadores como Marcel Carné, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Chris Marker, Jacques Deray – e outros como Sydney Pollack e Orson Welles, com quem colaborou em 1974, ao compor para o seu “F for Fake”. Foi quase 30 anos depois que chegou mais um pedido para uma nova banda sonora, para aquele que é tido por muitos como o maior nome do cinema de todos os tempos.

Seria a última que viria a compor essa a que Veneza assistiu no final do último verão, na estreia de “The Other Side of the Wind”, uma espécie de derradeiro filme de Orson Welles. Terminado agora por Oja Kodar para ser distribuído pela Netflix, onde está disponível desde novembro passado, “The Other Side of the Wind” foi o filme que, há 40 anos, o realizador de “Citizen Kane” começou a rodar com o objetivo de com ele fazer o seu regresso a Hollywood, mas que vários percalços durante a produção deixaram incompleto à data da morte do realizador, em 1985. A história imaginada por Welles é a de um realizador de Hollywood que dá uma festa para exibir o seu último filme, inacabado. O já clássico filme dentro do filme, que no dia da morte de um dos clássicos das bandas sonoras não só do cinema francês, também de Hollywood, fará olhar para este outro lado: para a música dentro dele.