Venezuela. Há falta de alimentos e medicamentos e muita insegurança

Venezuela. Há falta de alimentos e medicamentos e muita insegurança


A grave crise que se vive na Venezuela já fez muitos portugueses  regressarem a Portugal. Os que ainda resistem relatam ao i que se vivem “tempos muito difíceis”: a inflação tornou os preços dos produtos “inacessíveis” e aumentou a criminalidade 


Uma das maiores comunidades portuguesas no estrangeiro reside na Venezuela e a mais recente crise de duplo poder no país não lhe tem passado ao lado.  Nas ruas venezuelanas, a noite de quarta para quinta-feira foi de protestos, com tiroteios e confrontos. Mas os problemas já começaram há muito tempo: a falta de produtos, como alimentos e medicamentos, causada pela inflação, e a criminalidade nas ruas têm marcado os dias de quem vive na Venezuela.

Apesar das dificuldades de rede telefónica, o i conseguiu entrar em contacto com três pessoas que conhecem por dentro a comunidade portuguesa e a situação que se vive no país. 

“Vivem-se tempos muito difíceis”

David Alcaria, presidente do Centro Português da Venezuela, confirma que um grande número de portugueses já deixou a Venezuela e regressou a Portugal, principalmente à Madeira – de onde muitos são originários. Mas o imigrante garante que muitos ainda têm esperança de que as coisas melhorem para poderem retomar as suas vidas em território venezuelano, onde deixaram “casas, carros e negócios”.

É por isso, explica, que vários portugueses imigrantes na Venezuela participaram nas marchas e concentrações contra o governo de Nicolas Máduro. Agora, esperam que, com a iniciativa de Juan Guaidó, possa haver uma melhoria das condições de vida.

Sobre o dia a dia nas cidades venezuelanas, David Alcaria afirma que se vivem tempos “muito difíceis”. O comércio está  “gravemente deteriorado”: muitos negócios foram à falência por causa da inflação e os que sobreviveram, além de estarem fechados na maior parte do tempo, muitas vezes têm falta de produtos. “Há falta de muitos alimentos e medicamentos e quando se encontram são muito caros”, descreveu.

O salário mínimo atual na Venezuela está nas 18 mil libras. E, como conta David Alcaria, só uma caixa de 24 ovos custa 12 mil libras. “Ou seja, com o salário mínimo dá para comprar uma caixa de ovos e um bocado de carne para o mês todo. É praticamente impossível viver numa situação precária destas”, alerta.

A insegurança é outros dos problemas que a crise na Venezuela trouxe. “Uma crise económica como esta faz aumentar em muito a criminalidade. Há sequestros, roubos e assaltos constantemente”, relata.

“Houve bastante violência, pilhagens, tudo”

Com uma voz calma, Jaime Moreira, presidente da Federação Americana de Lusodescendentes, garantiu ao i que até ontem à tarde não tinha “qualquer informação de que alguma pessoa da comunidade lusodescendente tenha tido alguma complicação”. E, caso a situação venha a piorar, revelou que a comunidade, além de estar a ser acompanhada pelo governo português, embaixador e cônsules, tem formas de  comunicar, passando avisos, conselhos e, porventura, alertas. Por agora, os portugueses preferem resguardar-se em casa à espera que a violência nas ruas passe. “Houve bastante violência, pilhagens, tudo”, disse Moreira sobre o que se passou na noite de quarta para quinta-feira. 

“A comunidade tem planos por nós, como dirigentes associativos, estarmos todos interligados uns com os outros e estamos sempre a par das eventualidades que possam acontecer”, disse, explicando que tal se deve à situação “volátil” que o país vive nos últimos anos, que por estes dias se aprofundou: “Podemos estar aqui a falar e em qualquer momento pode disparar uma situação irregular, e ninguém pode prever uma coisa dessas”. É tão volátil que Moreira não descarta a eventualidade de uma intervenção militar estrangeira no país: “Penso que tudo está em cima da mesa”. 

A vida também não tem sorrido a quem tenta resistir e permanecer no país. A hiperinflação teve consequências nos salários, o que causou graves carências económicas. “As condições são muito complicadas, tanto é assim que nos últimos tempos tem-se visto uma grande quantidade de portugueses e lusodescendentes a regressar a Portugal”, afirma, ressalvando que a “falta de medicação, de alimentos, de um ordenado mínimo decente para poder sobreviver” estão entre as principais razões do êxodo.

Segundo estimativas de Moreira, antes de 2013, viviam na Venezuela 1,5 milhões de portugueses e lusodescentes. Agora, são pouco mais de 500 mil.

“O governo português tem de ter prudência”

Luís Jorge dos Santos, Conselheiro das Comunidades Portuguesas na Venezuela, não tem gostado de ouvir os discursos feitos pelos governantes portugueses. Para o imigrante, o executivo de António Costa tem de ter “mais prudência”. “Na Venezuela, há muitos portugueses que têm interesses, bens e negócios neste país e não podemos deixar que aconteça aqui o que aconteceu em Angola. E mesmo o Estado português e várias empresas portuguesas têm aqui interesses económicos”, explicou ao i.

O Conselheiro das Comunidades Portuguesas afirma que o governo português devia ter aguardado “mais uns dias para ver como as coisas se resolvem” e só depois ter assumido uma posição. “Acho que dizer agora se estão de um lado ou de outro é irresponsável”, justificou.

O português referia-se, por exemplo, ao discurso feito pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, que disse esperar que Nicolas Maduro “compreenda que o seu tempo acabou”.

Por agora, Luís Jorge dos Santos afirmou que a comunidade portuguesa que vive na Venezuela está “calma, tranquila” e expectante para saber qual será o futuro do país. Na quarta-feira, o presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, declarou-se presidente da Venezuela, mas o Conselheiro das Comunidades Portuguesas estranha que o venezuelano não tenha feito “mais nenhuma aparição pública”. E, por isso, “resta esperar para ver o que acontecerá nas próximas horas e nos próximos dias”.

Apesar de muitos portugueses já terem abandonado a Venezuela, Luís Jorge dos Santos garante que muitos outros “não querem sair”. “Têm cá os negócios construídos durante uma vida inteira. E, neste momento, se quiserem vender o que têm aqui, isso não vale nada, porque a inflação desvalorizou todos os bens materiais”, sublinhou.

A inflação é uma das grandes preocupações da comunidade portuguesa. Segundo Luís Jorge dos Santos, cerca de 90% dos portugueses que vivem na Venezuela têm negócios relacionados com o comércio ou a indústria, que, com a inflação, se tornaram “insustentáveis”. “Aqui as empresas param em dezembro – em Portugal é em agosto, mas aqui é no mês de dezembro. E vários negócios optaram por não retomar a atividade em janeiro, por causa da inflação. Não tinham produtos para vender”, relatou.