Eva Arond, Lolita Goldstein, Fred Manasse, Pedro Kalb, Ginette Horowitz, Sylvain Bromberger, Henny Porter. Dos sete sobreviventes do Holocausto que, entre viagens que o levaram até à Argentina e aos Estados Unidos, Nicholas Oulman entrevistou para “Debaixo do Céu”, apenas quatro continuam vivos agora que, depois de ter estreado no último IndieLisboa, o filme chega às salas. Um documentário montado entre duas narrativas – a das imagens de arquivo e a do registo sonoro dos depoimentos desses sobreviventes. Só no final lhes conheceremos o rosto. Até lá, não é isso que importa. Nem isso nem o tempo, ou o espaço. Aqui ou na Alemanha, aqui ou na Síria em guerra, nos Estados Unidos, no Brasil ou na Hungria: o céu será sempre o mesmo para todos.
Sobre o Holocausto já foram feitos todos os filmes. Quando partiu para “Debaixo do Céu” sentiu que havia qualquer coisa que estava por contar?
Na pesquisa familiar que fiz para o “Com Que Voz” [documentário de 2009 sobre Alain Oulman, o pai do realizador] sobre as minhas tias, o meu pai, etc., apercebi-me de que Portugal tinha sido uma porta de escape para milhares de judeus durante o Holocausto. Até aí não tinha exatamente consciência da importância que o país tinha tido nesse período, nem da criação de campos de residência fixa.
Esses campos consistiam em quê exatamente? Qual era o objetivo?
Eram campos que Salazar criou com receio de que um influxo de refugiados demasiado descontrolado criasse movimentos sociais que pudessem destabilizar a sociedade portuguesa. Porque eram pessoas que vinham de países mais civilizados, entre aspas, mais modernos: havia as senhoras de saia curta, que fumavam, que iam ao café, esse tipo de coisas e, segundo aquilo que me foi explicado, Salazar decidiu criar esses campos de residência fixa pelos quais os refugiados eram imediatamente distribuídos quando chegavam. O que estava inicialmente previsto era que as pessoas estivessem limitadas a um perímetro de circulação à volta desses campos, que só pudessem deslocar-se com uma autorização especial.
Mas neste filme depressa percebemos que não foi exatamente isso que aconteceu.
Não, até porque muitos deles vieram para Lisboa, mas ainda houve vários campos. Na Figueira da Foz, Caldas da Rainha, etc. Eram encaminhados para lá e até terem a papelada necessária para seguirem caminho. Eu não fazia ideia disso. E isso, com o facto de a minha família ter ajudado refugiados que tinham passado por Lisboa, porque sou de ascendência judaica, acabou por ser o ponto de partida para este filme. Percebi que havia matéria para fazer um filme sobre a importância de Portugal na ajuda aos refugiados durante a II Guerra.
Uma “matéria” que deixará de existir em breve também. Talvez daqui a dez anos este filme não pudesse já ter sido feito da forma que o fez.
Desde que o filme foi feito, já morreram três das pessoas que entrevistei. O facto de os sobreviventes serem todos crianças [na época] muda logo a perspetiva. Uma criança tem um tipo de olhar e uma memória daquilo que a marcou que não é o que tem um pai que está a tentar salvar a família, por exemplo.
Vemos isso de forma muito clara na história de um dos sobreviventes que acreditou até aos 70 anos que assistiu a um fogo de artifício durante a viagem de comboio em que escapou, com o irmão mais velho. Na verdade, o comboio estava a ser bombardeado.
Sim. Todas essas histórias fizeram com que o filme mudasse de rumo. A minha ideia inicial era encontrar pessoas que tivessem passado por Portugal antes de emigrarem para os Estados Unidos ou a América do Sul, e muito rapidamente apercebemo-nos de que as pessoas que ainda estavam vivas eram as crianças.
A narrativa é construída com imagens de arquivo (vídeos e fotografias) sobre o registo sonoro dos relatos dos sete sobreviventes que entrevistou. Conhecemos-lhes os rostos apenas nos créditos finais, até porque raramente os arquivos a que recorreu são pessoais. Porquê?
Uma vez que tínhamos a pesquisa e as entrevistas todas feitas, o desafio foi conseguir construir um filme. Tratando-se de pessoas que fugiram, que saíram de casa sem nada, não havia praticamente arquivos pessoais dessas pessoas, e fazer um filme de cabeças falantes seria enveredar por um registo muito clássico.
E televisivo também.
E já houve muitos filmes desses feitos com orçamentos como deve ser. Achei que tinha que me desmarcar disso e fazer algo menos visto.
Esse recurso a imagens de arquivo genéricas que de alguma forma acabam por tocar as histórias que ouvimos relatadas acrescenta uma nova camada ao filme, que se apresenta em duas narrativas paralelas – essa das imagens, que poderia ser quase num filme mudo, e o registo áudio dos relatos dos sobreviventes – que se sobrepõem.
Depois das entrevistas, fez-se uma montagem sonora do filme, com a escolha das pessoas que iriam ficar. Depois teve que se encontrar com as imagens de arquivo uma linguagem cinematográfica que se adaptasse às histórias que estavam a ser contadas mas que não fosse também demasiado ilustrativa. Interessava-me que o que fosse mostrado fossem coisas do dia a dia, as coisas banais, que à primeira vista poderiam não ter assim um grande impacto: uma miúda que gostava de ir nadar e de repente não vai porque dizem que não pode; uma criança que vai ao parque e que de repente não se pode sentar num banco. Estas pequenas coisas acabam por ser marcantes na vida de uma criança. Além disso, o facto de serem crianças e de estarem sempre dependentes daquilo que os pais fizessem tornava-os, de certa maneira, agentes passivos.
Com exceção para a pequena história do rapaz que não queria apanhar o barco de Lisboa para os EUA. Portugal foi o primeiro lugar em que teve paz.
Sim, porque nasceu em 1935, quando as Leis de Nuremberga foram implementadas, tanto que diz: “Nunca fui alemão, não queriam que fosse alemão, porque era judeu.” À medida que fui fazendo o filme fui percebendo que, apesar de isto ter acontecido há 70 anos, há muita coisa que é relevante nos dias de hoje.
Isso leva-nos até àquelas cenas iniciais, quando uma das entrevistadas diz que quando Hitler chegou ao poder o seu pai, que tinha vindo a Lisboa, decidiu que já não voltaria à Alemanha. Mas que muitas pessoas não se aperceberam logo do que estava para vir.
Sim. Ou aquelas imagens de Berlim destruída, que parecem as imagens da Síria destruída. Os refugiados, famílias e crianças, a pé, com sacos, uma pessoa liga a televisão e vê essas imagens nas notícias novamente. Também a chegada de Hitler ao poder, com aqueles discursos populistas e xenófobos, que vemos um bocadinho no Trump, no Bolsonaro, no Viktor Orbán. É um bocado assustador. Em vez de aprendermos com o passado, parece que estamos a voltar para trás. É a memória curta. Se não se mantiver isto à tona, as pessoas esquecem-se. O comodismo perante o que não nos afeta é tão grande… mas aí é que está: vivemos todos debaixo do mesmo céu. E o que acontece ali acaba por, mais cedo ou mais tarde, ter repercussões aqui. É importante não esquecer, manter esta memória viva.
Sobre a memória, é impressionante quando nesse início ela diz que tinha 16 anos naquele ano de 1933.
Essa senhora, a Lolita Goldstein, tinha 98 anos quando a entrevistei.
A descrições que fazem da realidade que encontraram quando chegaram a Portugal pode ser um bocadinho perturbadora aos nossos olhos. Uma delas descreve um país “livre”, outro, que passou por um dos tais campos, na Figueira da Foz, recorda o momento em que percebeu porque é que o bibliotecário da cidade queria tanto aprender francês com ele: para poder contar-lhe como o regime era terrível.
As pessoas vinham de uma Europa em guerra, tinham acabado de atravessar Espanha, acabada de sair da guerra civil, e chegavam a Portugal e encontravam luz, comida, o fim da perseguição, o Sol a brilhar. Para eles, era como se fosse o paraíso. Uma salvação. E eu foquei-me apenas nas suas memórias.
Em vários momentos surgem relatos de episódios em que se cruzaram com nazis que viram como seres humanos iguais a eles. Porque deu tanta importância nesses momentos?
Porque as coisas não são pretas nem brancas. Há o bem e o mal, tudo bem, mas há pelo meio uma área muito cinzenta. Quando uma delas está no avião e diz que está com um senhor com a insígnia nazi e que ele não a tratou como se fosse de uma sub-raça, ou quando no fim a Lolita diz que só se sentiu à vontade para voltar à Alemanha para dizer adeus quando o chanceler admitiu, em Israel, que os alemães tiveram culpa…
Que Hitler nunca teria chegado tão longe nas atrocidades que cometeu sem o apoio popular.
Isso é verdade também. É aquela lógica de massas que vemos por exemplo naqueles meetings do Trump lá nos estados que o suportaram… é como se as pessoas perdessem qualquer capacidade de raciocínio, como se perdessem a capacidade de distinguir o bem do mal.