Há uma cartilha que enuncia que ser de esquerda é estar contra os exercícios de autoridade e contra as instituições que impliquem qualquer uso de força para assegurar o cumprimento da lei ou a observância de objetivos estratégicos cometidos ao Estado como comunidade de destinos que integra um povo, um território e uma identidade soberana. É assim que emergem profusas tentativas de desgraduar a autoridade no desempenho de funções e no cumprimento das leis da República, sempre num registo maniqueísta em que os maus são as forças de segurança, os militares e outros depositários de funções do Estado. É uma alegre e irresponsável promoção do caos e da reafirmação de estigmas que em nada contribui para os equilíbrios sociais necessários, enquadrados no respeito pelas regras do Estado de direito democrático. Trata-se da mesma deriva que quer à força que Portugal se assuma como racista, que reescreva a sua história e que se imponha uma certa higienização do politicamente correto, sem pingo de respeito pelas esferas de liberdade dos outros e pelos seus legítimos direitos à diferença.
Nunca fiz e nunca farei parte dessa esquerda e não me rotulam menos de esquerda por não aceitar fazer parte desse folclore, alheado da relevância social e económica da segurança como pressuposto do funcionamento da economia e da geração de receitas para as funções sociais do Estado.
Ao invés de muitos que aditivam a irresponsabilidade vigente, já tive oportunidade de trabalhar com as forças de segurança e com comunidades de territórios com manifestas situações de deficiente alojamento das famílias, de débil integração social e de uma certa gangrena de exclusão, de incivilidades e de marginalidade. Os territórios como os do Bairro da Jamaica são repositórios de erros de alojamento, de ausência de ação sustentada do Estado orientada para a geração de oportunidades de afirmação individual e comunitária e de um enorme acervo de preconceitos, estigmas e incompreensões. São territórios em que há de tudo, em que o pior que pode ser feito é achar que alguma coisa se resolve com inação e tempo, sem um esforço de estabelecimento de compromissos mínimos de confiança nos relacionamentos e sem a geração de oportunidades de afirmação positiva. Mas o pior mesmo é quando, a pretexto de uma alegada injustiça, sempre com diversas versões, se instrumentalizam situações ou se sublinham estigmas que, no mínimo, penalizam aqueles que nesses territórios optaram por trabalhar, cumprir as convenções sociais e integrar-se numa sociedade democrática e plural como a nossa.
Muitos dos que agora falam, à esquerda e à direita, são os mesmos que se calaram quando o governo PSD/CDS destruiu o Contrato Local de Segurança de Loures que, com o contributo inestimável do município de então (PS), da PSP e de mais de 50 parceiros, cimentou confiança entre as comunidades, criou oportunidades de afirmação positiva dos cidadãos e das várias comunidades e reduziu a criminalidade nos territórios de intervenção (Apelação, Camarate e Sacavém). Apesar da descontinuidade, houve quem tivesse mudado de vida, sublinhou-se que a diferença entre a integração e a marginalidade é muito ténue, mas sobretudo provou-se que é possível intervir, com reforço da integração e respeito pelas regras da sociedade.
O que não é aceitável é que uma certa esquerda que teve outras prioridades ao longo destes últimos anos, após 2015, venha agora sublinhar realidades que não foram a sua opção política e ainda venham tentar fragilizar o difícil exercício de funções do Estado pelas forças de segurança. Ou queremos ter em Portugal derivas como as que existem em França, em que há territórios onde o Estado não pode cumprir e fazer cumprir a lei porque as forças de segurança não podem entrar nesses bairros? Acham mesmo que a desordem, o caos e o enfraquecimento da autoridade do Estado é compatível com as condições sociais e económicas que geram recursos para as receitas fiscais e para os crescimentos económicos registados, que sustentam muitas das opções políticas dos últimos anos? Certamente achariam exóticos os pedidos das forças de segurança para que os acessos aos telhados de alguns edifícios nesses territórios fossem bloqueados para evitar a chuva de pedras, garrafas e paus quando era necessário intervir ou simplesmente patrulhar, mas aconteciam chuvas de “meteoritos” e os pedidos existiram mesmo. Em democracia, não é aceitável que possam existir territórios à margem da lei, como não são admissíveis comportamentos que se julguem acima ou à margem da lei.
Não sei o que verdadeiramente se passou no Bairro da Jamaica mas, de vidas noutras encarnações cívicas e políticas no Governo Civil de Lisboa, imagino. Sei aquilo a que assisti na Avenida da Liberdade, o caos instalado e as forças de segurança com alguma inibição para intervirem perante a evidente violação da legalidade, por receio do populismo da mediatização dos filmes parciais e das grilhetas de um poder político comprometido com uma certa visão anárquica da sociedade propalada pelos parceiros da solução governativa.
O que aconteceu foi grave, reforçou os estigmas, ampliou irresponsabilidades e nada resolveu. Quem vive no bairro está, ao fim de décadas, a ser realojado, provavelmente com a mesma ausência de estratégias para a integração de outros realojamentos. As forças de seguranças continuarão a debater-se com graves problemas operacionais, humanos e materiais, cada vez mais sem perceção de confiança por parte do poder político para o desempenho das missões. Como costuma dizer um amigo, invocando Antero de Quental, “a tolerância não é permissividade, nem o rigor é intransigência”.
Confundir a árvore com a floresta dá nisto: os estigmatizados ficam com mais estigmas, os fragilizados ficam mais frágeis. A quem convém esta degradação? Nem ao voto… muito menos às pessoas.
Notas finais
Mau caminho. Os fins justificam os meios. Desculpabilizar a criminalidade, no cibercrime como na observância de elementares regras de sociabilidade, é o primeiro passo para a selvajaria.
Mau Maria. Pode ter as razões de circunstância que quiserem, mas o aumento da mortalidade infantil em 2017 é um retrocesso civilizacional que reflete o estado do SNS e da sociedade portuguesa.
Mau demais. Estava escrito nas estrelas que as contas passadas da Caixa eram o mais plasmado exercício de irresponsabilidade a débito do contribuinte; agora está titulado.
Escreve à quinta-feira