Pedro Pita Barros: “É possível consenso. Infelizmente, a expectativa é que a tática política em ano de eleições acaba por o inviabilizar”
Com que expetativa encara o debate? É possível um consenso entre os partidos? É possível consenso. Os grandes objetivos do sistema de saúde parecem-me largamente partilhados: proteção da saúde, equidade no acesso, equidade no financiamento, eficiência de decisões. A esperança é que consigam encontrar esse consenso nos valores. Infelizmente, a expetativa é que a tática politica em ano de eleições acabe por inviabilizar esses consensos alargados.
A revisão da lei terá algum efeito prático? Uma revisão da lei que reafirme princípios e objetivos, e não feche instrumentos para os alcançar, não terá efeito prático imediato. No imediato, só restrições, proibições e impedimentos terão efeito (provavelmente negativo) nos objetivos do sistema de saúde. O efeito prático a prazo será uma orientação das intervenções de política de saúde para alcançar esses objetivos.
Escreveu ontem no seu blogue que está cada vez mais inclinado a pensar que devia haver uma lei de bases e outra sobre organização e gestão do SNS. Pode dar exemplo de questões em que os dois planos se confundem?
A meu ver, são duas discussões em separado porque existem normalmente vários caminhos para atingir objetivos. O exemplo mais claro neste momento é na discussão sobre as parcerias público-privadas nos hospitais. Veja-se o objetivo, que julgo consensual, de haver um adequado acesso de todos os cidadãos a cuidados hospitalares adequados. Nas PPP, o hospital é do SNS: não há qualquer diferença, em termos de acesso para o cidadão, em ser gerido por entidades privadas ou públicas. Insistir em que não possa haver PPP não tem então a ver com esse objetivo de acesso. Dizer que é objetivo do sistema de saúde ser apenas gerido por entidades públicas não é razoável nem possível. Basta pensar nos medicamentos para perceber que haverá sempre fornecedores privados. As PPP são um instrumento que será bom ou mau consoante as circunstâncias.
Há suficiente informação sobre os prós e contras das propostas, no fundo, um SNS tendencialmente autossuficiente ou aproveitar-se a capacidade dos outros setores? As propostas são sobretudo de regras, uma vez que numa lei de bases não fará sentido ter montantes ou metas quantificadas para tempos de espera. Pensando em regras, creio que há suficiente conhecimento para se conseguir discutir os prós e contras. Aliás, olhando para a proposta de revisão da lei de bases da comissão liderada por Maria de Belém Roseira, há uma opção clara por olhar para princípios e ver o que esses princípios implicam depois em termos de direitos e de deveres. O SNS ser autossuficiente é uma questão de boa gestão ou organização, mas não é um princípio geral do sistema de saúde. Não faz sentido dizer que o SNS tem de ser autossuficiente na inovação em novos medicamentos (não tem a capacidade de obter inovação concorrente com a que é feita a nível internacional). Mas faz sentido que use a capacidade instalada. No recurso ao privado, voltamos a uma questão de gestão: qual é a forma mais eficiente de ter o serviço pretendido prestado à população? As condições e contexto de prestação do serviço deverão levar a uma resposta caso a caso.
Seria importante haver um teto de financiamento definido para o SNS? Será provavelmente errado defini-lo. Imaginemos que se defina um teto de financiamento com base no PIB (como por vezes tem sido proposto). Significa que em períodos de recessão se iria reduzir a despesa em saúde quando, nesses momentos, surgem necessidades de apoio à população. Da mesma forma, aumentar 20% os salários de todos os profissionais de saúde no SNS aumenta a despesa mas não aumenta a capacidade assistencial do SNS. Focar na despesa como objetivo não é, geralmente, boa ideia.
Esta semana, Manuela Moura Guedes disse que discutir a Lei de Bases da Saúde é como discutir o sexo dos anjos perante as dificuldades do SNS. É um mau timing para rever a lei?
Não havia nada na antiga lei que impedisse os partidos políticos de cumprir o que têm sido os seus programas eleitorais na área da saúde. A motivação para a revisão da lei veio, tanto quanto me é possível identificar, de tentar impedir a utilização de “instrumentos” na gestão do SNS. A proposta da comissão liderada por Maria de Belém fez uma atualização de linguagem, de princípios e de conceitos que me parece consensual nos valores e flexível nos instrumentos. Por isso, mais do que o timing, considero como má a motivação inicial, mas inteligente a forma como a proposta da comissão respondeu ao desafio. Não deixa de ser verdade que quer com a lei antiga quer com uma lei nova, há desafios que terão de ter resposta.
Quais lhe parecem ser os principais? No curto prazo, encontrar a paz social com os trabalhadores do SNS; no curto e médio prazo, recuperar a manutenção e renovação de equipamentos e melhorar a gestão no SNS, incluindo encontrar regras de financiamento que assegurem que os objetivos são atingidos o melhor possível dadas as limitações de recursos (financeiras e de recursos humanos) que existam; no médio e longo prazo, preparar o SNS para os novos serviços e novas formas de funcionamento (e relacionamento) com os cidadãos que decorrerá da evolução demográfica e de doença da população.
O que foi dito
“Há áreas em que seria fácil e rápido internalizar serviços e cuidados no SNS, por exemplo as análises clínicas. Há suficiente capacidade instalada no SNS para isso. Noutras áreas será preciso mais tempo mas, em duas legislaturas, uma política consistente e coerente com esse objetivo conseguiria internalizar quase tudo o que o SNS entregou aos privados”
João Semedo
jornal i, janeiro de 2018
“As opções que têm sido feitas de, em vez de reforçar o SNS, contratualizar com privados estão a aumentar as assimetrias no território no acesso à saúde (…) Em muitos locais do país, quando falha o SNS, não há nenhuma outra oferta”
Catarina Martins
Junho de 2018
“Percebo a bondade de quem, por inclinação política, defende que o serviço de saúde seja todo público. Têm é de arranjar dinheiro para o pagar e ainda não arranjaram ”
José Fragata
SOL, dezembro de 2018
“O que achamos é que o reforço dos serviços públicos é o melhor caminho e que o setor privado e o setor social existem, têm uma função importante, mas isso de forma alguma deve ser o aspeto central”
Marta Temido
Dezembro de 2018
“A ministra considerou que o nosso projeto condicionava muito a ação do governo. Num Estado de direito, os executivos estão condicionados a respeitar a Constituição. O nosso projeto fazia uma interpretação integrada da Constituição”
Maria de Belém Roseira
Observador, dezembro de 2018
“O SNS é fundamental, é um pilar do sistema de saúde, mas não é o único. Em nome dos bons resultados, da qualidade e da eficiência, porque nos centramos nos doentes, não fechamos a porta a outros prestadores”
Isabel Galriça Neto
Observador, janeiro de 2019
“O que é importante é que os portugueses tenham os seus problemas resolvidos. Não é se é público ou privado. (…) Deve haver uma competição saudável entre os três [setores]. A população escolhe a que hospital quer ir”
Luís Filipe Pereira
Eco, dezembro de 2018
“Se há uma política pública chamada SNS, tem de ser o melhor possível. Temos de pensar a alternativa: o Estado financiar um mercado onde as pessoas escolhem onde podem ir. Quem é que julga que é atendido primeiro?”
Constantino Sakellarides
SOL, dezembro de 2018
“A Lei de Bases não vai ser o alfa nem o ómega para a resolução dos problemas do SNS. É preciso que os portugueses reclamem que o problema essencial do SNS é a falta de investimento em infraestruturas e equipamentos e no edifício das profissões”
Adalberto Campos Fernandes
Lusa, dezembro de 2018
“É preciso desenhar fronteiras nítidas entre os vários setores: o público, o privado e o social. E é bom que os médicos se dediquem em exclusivo a cada um”
Francisco George
SOL, janeiro de 2019
“O SNS não pode continuar a ser drenado pelo setor privado, até não ser mais do que um serviço residual. [Os princípios do SNS] não podem ser pervertidos. Nem com o recurso a um sistema de seguros-saúde, nem com copagamentos, nem com as PPP”
Manuel Alegre
Público, janeiro de 2019
“O SNS está a ser sangrado pelos interesses privados. Hoje, quatro em cada dez euros do orçamento do SNS vai para privados. São 4 mil milhões que todos os anos saem do SNS para pagar ‘fornecimentos e serviços externos’”
Moisés Ferreira
Público, janeiro de 2019
“Não encontramos alternativa à melhoria da prestação de cuidados de saúde que não seja reforçar o SNS. Propomos que o Estado seja o financiador, o prestador e o regulador, e não um Estado que se demite…”
Jerónimo de Sousa
Janeiro de 2019
“Não me parece que fosse essencial mudar a lei de bases em vigor. O diploma serviu para quase 40 anos de SNS, com êxitos reconhecidos que só não foram maiores porque o financiamento foi sempre escasso”
Fernando Leal da Costa
Observador, janeiro de 2019