A mentira não é nenhum mito urbano


A maioria absoluta já foi um mito urbano, mas a realidade resultante da relação entre António Costa e Rui Rio transformou-a numa possibilidade incontornável. Tudo o que seja menos será poucochinho


Há uma voragem de degradação que parece disseminar-se no plano nacional e internacional, colocando aos cidadãos e às comunidades acrescidas responsabilidades na filtragem, na avaliação e na exigência em relação às projeções da realidade e à verdadeira realidade.

Se os protagonistas insistem e persistem em percorrer caminhos que sabem não corresponder a nenhum nexo de ligação com os factos e com a realidade, então só nos resta enveredarmos pela radicalização do filtro, do rigor, da assertividade da avaliação e da exigência.

Há degradação quando um Presidente da República Portuguesa, no mínimo, deixa perpassar a ideia de que intervém no levantamento de hostes do PSD, reunindo-se em menos de 24 horas com o desafiado e o desafiante.

Há degradação quando se assiste, no plano nacional, à proliferação de incertezas e inseguranças, sem mínimos de senso, do muro de Trump que colocou a administração norte-americana em letargia ao chumbo da proposta de Brexit negociada durante meses com a União Europeia.

Há degradação quando os protagonistas políticos e os média elaboram narrativas descabidas para desgraduar resultados menos conseguidos, alimentar objetivos políticos ou simplesmente tentar enganar o pagode.

Perante estes esforços de efabulação negativa, afirmativa ou distrativa, importa começar a penalizar verdadeiramente a mentira. O que custa falar verdade, explicar o que não correu bem ou qual o sentido de algumas das opções políticas?

Imagine um protagonista político que, como presidente de câmara, recebeu milhões de um governo da direita para a gestão autárquica por via dos terrenos do aeroporto e da frente ribeirinha, que numa questão central alinhou com esse governo na estratégia de extinção e fusão de freguesias e que manteve um articulado diálogo político com outro presidente de câmara municipal que, chegado ao poder interno no seu partido, das primeiras coisas que faz é dar a mão a um processo de descentralização de competências, sem o respetivo envelope financeiro. É claro que não precisa de imaginar: o protagonista é real, chama-se António Costa e tem como ninguém um histórico de compromissos com a direita ou, se for conveniente, com a esquerda, como se comprova pela atual solução governativa.

Imagine que, numa desesperada tentativa de sustentar mais um episódio de vale-tudo na política portuguesa, ensaiavam uma comparação de realidades que, sendo similares nas motivações de assalto ao poder, apresentam pressupostos bem diversos. Não é comparável a realidade do PSD atual com a do PS em 2014. Rui Rio, ao contrário de António José Seguro, não ganhou duas eleições, não está a liderar as sondagens e muito menos tem um quadro de limitação política imposto por um compromisso resultante do plano de ajustamento económico negociado com a troika por ilustres militantes do PS, alguns atuais membros da solução governativa vigente. Se o que conta é a objetividade dos resultados, a conclusão só pode ser esta. É certo que há convergência nas motivações e na atitude dos respetivos grupos parlamentares mas, ainda assim, Seguro nunca teve uma lógica de hostilização dos parlamentares e das estruturas que Rui Rio prosseguiu, procurando posicionar-se acima de tudo isso, com a criação de estruturas e plataformas paralelas. O curioso é que Rui Rio não hesitou, por convicção ou por distração, em contribuir para a geração de um ambiente político e mediático em relação ao anterior líder do PS que agora o penaliza e gera mais uma vantagem para a atual liderança do PS.

Este bumerangue político do vale-tudo vem sublinhar a exigência em relação aos resultados de tamanho exercício. Nas legislativas de 2015 exigia-se uma vitória, obteve-se um poucochinho segundo lugar, rapidamente diluído numa maioria parlamentar de esquerda para repor realidades anteriores e gerir o horizonte do dia de amanhã. O atual quadro político, de implosão da principal alternativa política ao PS, depois de uma governação que contou quase sempre com uma conjuntura internacional favorável e uma sustentada anuência nacional em relação ao essencial, impõe a exigência da obtenção de uma maioria absoluta. Ninguém terá contado com uma conjuntura política tão favorável para a maioria absoluta. A ausência de alternativa, o envolvimento da esquerda e um Presidente da República que não hostilizou é um quadro único em várias décadas de democracia. O que Sócrates conseguiu por degradação da governação anterior, Costa terá de obter por desinflação da intensidade política nacional. A maioria absoluta já foi um mito urbano, mas a realidade resultante da relação entre António Costa e Rui Rio transformou-a numa possibilidade incontornável. Tudo o que seja menos será poucochinho.

NOTAS FINAIS

Verdade. Sente-se um certo deslaçar político, social, económico e cultural que é demasiado perigoso no contexto dos populismos, dos extremismos e de todos os “ismos” que nos circundam. É mau que os democratas em desempenho de funções não o percebam e não combatam o deslaçar, antes o promovam por ação.

Meia-verdade. É do domínio da esquizofrenia uma esquerda que atacava o regime angolano mas persiste no apoio a Nicolás Maduro na Venezuela. É uma saga que vem de longe, dos tempos da União Soviética: tudo pela ideologia. É também este o domínio patológico de uma gestão que questiona a PPP do Hospital de Braga enquanto avalia como positivas as PPP na saúde, sem cuidar dos adequados recursos para o SNS.

Mentira. Os sinais da economia no final de 2018, das exportações ao consumo, já eram suficientemente preocupantes antes do Brexit. Depois de repor a ideia de que os recursos chegariam para todos e para todos os setores de atividade, o lançamento dos projetos do Portugal 2030, nos termos em que foi realizado e sem que exista aprovação dos dois terços parlamentares, reforça a ideia de que há dinheiro para tudo enquanto comunidade.

 

Escreve à quinta-feira