Vinte jogos, 14 vitórias e seis derrotas, com 54 golos marcados e 16 sofridos, num pecúlio que se traduz no segundo lugar da Série D do Campeonato de Portugal e na chegada à quarta eliminatória da Taça de Portugal. Visto assim, parecia um início auspicioso de Rúben Amorim como treinador. O problema é que o antigo médio português, que se destacou pelas passagens por Belenenses, Benfica e Braga enquanto jogador (14 vezes internacional A por Portugal, com presenças nos Mundiais 2010 e 2014), ainda não tem sequer o nível i de treinador – e por causa disso, o Casa Pia foi punido pelo conselho de disciplina (CD) da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) com a subtração de seis pontos no campeonato, além da realização de cinco jogos à porta fechada e do pagamento de uma multa no valor de 14 mil euros.
A notícia surgiu este domingo e de imediato provocou a perplexidade e a ira no seio do clube lisboeta, mas também noutros quadrantes do futebol luso. O Casa Pia anunciou de imediato que irá recorrer do castigo, garantindo que Rúben Amorim foi inscrito no início da temporada como treinador estagiário, sendo José da Paz o técnico principal, e que os papéis de ambos nunca foram subvertidos ao longo da temporada. Um argumento que não colheu junto do CD, que agiu após advertência da Associação Nacional dos Treinadores de Futebol (ANTF), como confirmou o presidente deste organismo, José Pereira, ao i: “Nós tivemos conhecimento de uma irregularidade que se estava a praticar, inteirámo-nos da situação e verificámos que assim era, de facto. E depois alertámos a FPF, que agiu em conformidade de acordo com os regulamentos. Se não houvesse nenhuma ilegalidade, a FPF não penalizava.”
Em causa está o facto de Rúben Amorim, que ainda está a tirar o nível i, ter, ocasionalmente, dado instruções aos jogadores enquanto decorriam os jogos. Este domingo, já depois de ter recebido a indicação da decisão do CD da FPF, o antigo internacional português nem sequer marcou presença no banco casapiano, tendo sido José da Paz a orientar a equipa no triunfo por 3-2 sobre o Real Massamá. Uma condição que não se poderá repetir nos próximos tempos: o técnico de 30 anos foi suspenso por quatro meses (além de ter de pagar 1200 euros de multa), enquanto Rúben Amorim ficará suspenso por três meses e terá de pagar 2600 euros de multa, ficando ainda impedido de ser inscrito como treinador durante um ano. O CD, sustentado por diversas notícias de diferentes órgãos de comunicação social, bem como com relatórios de jogo, entendeu como comprovado que o antigo jogador exerceu, de facto, as funções de treinador principal sem ter habilitações para o fazer, salientando também a convicção de que o clube tinha conhecimento disso e promoveu essa situação, e decidiu por unanimidade em relação aos castigos a aplicar a clube e técnicos.
Plantel incrédulo O caso mereceu reações dos mais diversos protagonistas. Filipe Martins, treinador do Mafra, da ii Liga, considerou o castigo “uma patetice e uma aberração ao direito do trabalho e à verdade desportiva”, criticando “as burocracias do IPDJ (Instituto Português do Desporto e da Juventude)” e frisando que existe uma diferença clara entre um treinador não ter o curso requerido e não se inscrever para tal e o impedimento de tirar o referido curso por ser obrigatório esperar um determinado período para o fazer. “O futebol ganha- -se no campo, não na secretaria. Deixem trabalhar quem não é malandro”, escreveu, numa publicação nas redes sociais, lembrando também o caso de Topê, treinador do Alverca, da Série C do Campeonato de Portugal, punido com a perda de três pontos pelo mesmo motivo.
Também o plantel do Casa Pia reagiu em bloco, enviando uma carta aberta a Fernando Gomes, presidente da FPF. Na missiva, os atletas salientam ter vencido os tais dois encontros “com toda a justiça, dentro de campo”, e lembram que o plantel é “amador e joga futebol essencialmente pela paixão pela modalidade”. “Qual é o seu sentimento ao saber que o que está em causa é o nosso treinador estagiário, por acaso um ex-jogador profissional e internacional pelo nosso país, ter estado em pé ocasionalmente no banco durante estes dois jogos? Como é possível a aplicação destas multas pela instituição que mais deveria proteger os interesses do futebol português não profissional? A mesma instituição que apregoa a defesa e promoção destes mesmos clubes? Catorze mil euros dá, seguramente, para pagar mais de um mês de subsídios do plantel, equipa técnica e restante staff. O que acontecerá se o clube não tiver capacidade financeira até ao fim do ano? Deparamo-nos, todos os fins de semanas, com situações graves com clubes da i e ii ligas que se resumem a multas de pouco mais de mil, dois mil euros. Situações que muitas vezes envolvem violência, ataques de ódio a agentes do futebol e que mancham gravemente a imagem do nosso futebol. Será o estar de pé ocasionalmente durante os jogos a dar indicações aos jogadores uma atitude assim tão grave? A nossa grande questão é: como é que justifica o facto de nunca ter existido a aplicação de sanções idênticas a todos os treinadores adjuntos/estagiários, diretores ou médicos que fazem o mesmo, semana após semana, ano após ano, na i e ii ligas? Será que os órgãos de soberania do futebol português têm dois pesos e duas medidas? Esperamos que o recurso para as instituições competentes ajude a limpar mais uma situação no mínimo vergonhosa no futebol português, que altera a verdade desportiva e que coloca em risco toda a credibilidade do Campeonato de Portugal e o futuro de um jovem treinador português. O futebol, no sentido mais puro, joga-se nestas divisões secundárias. Por favor, Presidente, não deixe que estraguem o que resta dele”, pode ler-se na carta.
Questionado pelo nosso jornal sobre a alegada dualidade de critérios em situações semelhantes ocorridas na i Liga, José Pereira garante que nenhuma se assemelha a esta. “Pelo que sei, não há nenhum caso idêntico a este. Às vezes há treinadores que não têm os níveis exigidos e estão a usurpar a função de outros que os têm, mas aqui não se trata de um treinador: trata-se de uma pessoa que ainda não tem o curso. É uma circunstância inédita, um indivíduo que não tem curso nenhum estar a dar instruções. Não é possível comparar com nenhum outro caso, é diferente de todos os que têm acontecido”, salienta, optando por não se pronunciar em relação ao castigo aplicado pelo CD: “Nós não temos de avaliar castigos. O clube, se entende que o castigo é justo, aceita; se não, recorre, mais nada. A gravidade da pena é discutível e não é a nós que nos compete analisar. Há recursos, há tribunais, há o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD). Há uma transgressão dos regulamentos, que não foram cumpridos; agora compete ao CD dirimir os argumentos com o clube que foi punido.”
Com esta sanção, o Casa Pia cai para o quarto lugar da Série D do Campeonato de Portugal, atrás de Praiense, Oriental e Real Massamá, ficando a três pontos do segundo lugar, que dá acesso ao playoff de subida. A decisão do CD é passível de recurso para o TAD, o que o Casa Pia irá fazer, requerendo o efeito suspensivo do castigo.