1. TELEVISÃO A transformação do mundo em espectáculo é o traço dominante da comunicação social do nosso tempo: dos jornais, das rádios e, sobretudo, da televisão. Boa parte do conhecimento, dos saberes, da reflexão, da abstracção, do raciocínio, da capacidade de ajuizar, vai desaparecendo em proveito da pura emoção, do epidérmico, do reactivo, do imediato e da total simplificação. Tudo é “modelado” e “remodelado” para ser mostrado, tal e qual, aos telespectadores – que querem ver tudo, muitas vezes sem se darem conta do que é real e do que é virtual. E é neste contexto que, infelizmente, assistimos ao lamentável fenómeno da “espectacularização” da política e dos políticos.
No espaço de algumas décadas, a televisão adquiriu o monopólio da produção de sentido, da norma social e do imaginário colectivo, ao mesmo tempo que as instituições políticas e religiosas se foram apagando. É a televisão que assegura a ligação ao mundo e se torna, por isso, o principal espaço de reconhecimento social. É a televisão que modela as representações simbólicas. Claro que estas representações são inerentes à humanidade, mas quando elas se substituem à realidade e se tornam o único acesso ao mundo para a maioria da população, assistimos a uma autêntica mutação antropológica.
A televisão é um fluxo incessante de imagens, e a difusão destas em contínuo é a sua razão de ser. Uma tal ideologia da comunicação coloca a representação como um imperativo absoluto. O que não pode ser representado não existe. Para existir é preciso, pois, ser “representável”, poder traduzir-se em imagens, caber nos formatos audiovisuais. O telespectador quer ver tudo, reclama o acesso a uma quantidade astronómica de programas, que lhe conferem, por assim dizer, o estatuto de todo-poderoso face ao mundo – sem mesmo ter de sair de casa. Esta ideologia do “ver tudo”, de uma enganadora “transparência”, adequa-se perfeitamente a uma sociedade de controlo generalizado.
2. TITTYTAINMENT – Esta curiosa expressão foi criada e sugerida por Zbigniew Brzezinski – especialista em geopolítica e ex-conselheiro de Segurança Nacional do antigo presidente dos EUA James Carter – a uma elite de políticos, gestores, empresários e economistas de direita, reunidos, em 1995, num famoso hotel de San Francisco. Trata-se duma expressão resultante da combinação das palavras entertainment (“entretenimento”) e tits (“tetas” em calão americano). Neste caso, “tetas” não é propriamente uma alusão sexual, mas uma referência ao leite que escorre do peito de uma mãe que amamenta o seu filho. O que aqui se pretende é responder à necessidade de preparar um autêntico cocktail de entretenimento embrutecedor e de alimentação suficiente, capaz de manter a passividade e bom humor duma imensa parcela da população do planeta sem trabalho e frustrada. Trata-se de permitir que 20 % da população mais afortunada do planeta consiga garantir tittytainment para 80 % da população restante, a mais pobre e supérflua, correspondente a quatro quintos dos habitantes do planeta.
Soluções não faltam. Desde as televisões, sobretudo as privadas, a transmitirem continuamente programas excitantes, grotescos, infectos e aviltantes; passando pelos espectáculos desportivos profissionais mais populares, como o pontapé-na-bola; pela produção de milhares de filmes a custo e qualidade muito baixos; pelo voluntariado de apoio a colectividades; pelos serviços de proximidade; pela participação em actividades desportivas amadoras e em associações de todo o tipo, nalguns casos recebendo remunerações modestas; também pelo trabalho de varrer as ruas a troco de salários irrisórios; ou por trabalhos domésticos que, como contrapartida, proporcionam alojamentos miseráveis. Este o “admirável mundo novo” que os mais poderosos plutocratas e tecnocratas já prometiam às populações, em 1995, prevendo a emergência duma sociedade global assente na fórmula “1/5 versus 4/5”, isto é, uma sociedade em que apenas “dois décimos” dela viverão com grande desafogo mas precisarão de proporcionar alimentação adequada e divertimento suficiente aos “oito décimos” postos à margem, para que não façam ondas e se mantenham tranquilos.
3. TELEPOPULISMO Neste contexto, o demagogo telepopulista apresenta-se como nova representação histórica do salvador da pátria, identificado como tal pelos deserdados, a que ele próprio se refere, em privado, como a populaça. O telepopulismo é um novo populismo adaptado às exigências da mediatização televisiva. No telepopulismo, o apelo ao povo colhe o essencial da sua eficácia simbólica quer nos recursos próprios do espaço mediático quer na competência telegénica do líder político, mesmo que este seja politicamente incompetente e inexperiente. Este líder recorre às estratégias de sedução e subversão com um único propósito: fazer-se eco do desejo de ruptura com o sistema político, com as elites dominantes, com o jogo clássico dos partidos políticos.
O processo de globalização comunicacional tem sido, aliás, factor de aceleração da passagem duma democracia de partidos de massas para uma democracia de opinião, ou pior, para uma democracia de opiniões instantâneas, sem espaço nem tempo para o debate e a reflexão. Assim se foi instalando uma democracia virtual, com o espaço público a ser substituído por um espaço publicitário cada vez mais amplo, ocupado por políticos demagogos e populistas.
Esta democracia virtual, cada vez mais distante da realidade, é um terreno fértil para o florescer da demagogia e do populismo, e para o ressurgir das práticas autoritárias proteiformes, como os movimentos de cariz neofascista e neonazi, adeptos do neoliberalismo, que se constituem como movimentos neopopulistas com acesso permanente aos ecrãs mediáticos das televisões.
4. TRUMP É neste universo de manipulação constante e desigualdade profunda que a paranoia e o espectáculo da política se desenvolvem. E é nele que irrompe Donald Trump, empresário e entertainer que atingiu a celebridade na televisão, com o seu programa supostamente de “talentos”, intitulado The Apprentice, em que demonstrou toda a sua incivilidade e petulância, para gáudio de audiências incultas e reaccionárias, que são, nos EUA, uma imensa minoria. Donald Trump
assenta como uma luva na figura do paranoico que conquista o poder. Para um paranoico, que passa o tempo a dar corda à sua imaginação delirante, tudo lhe parece possível. Acha que está fadado para transformar o mundo, nutrindo as ilusões mais falaciosas e as patranhas mais grotescas, as simplificações mais grosseiras e as promessas mais delirantes, proclamando, alto e bom som, que o paraíso é aqui na Terra (porventura na Trump Tower, sabe-se lá!), pois o “real” é tudo aquilo que ele quiser imaginar e pôr em prática.
Este discurso grandiloquente, próprio de um megalómano narcisista, é sempre ouvido em delírio pelas massas, porque promete grandeza, culto do heroísmo, transparência e evangelismo, impondo ordem nova e obediência cega ao chefe. No caso de Trump, tratou-se de prometer um grande país reconciliado consigo próprio (América First!), um banquete triunfal em que só se sentarão os eleitos, e um acting-out permanente, numa inversão total da ordem das coisas, negando qualquer limite para a demagogia. Como resistir a um tal programa, que a todos oferece tudo e mais alguma coisa e de modo constante?!
O Trump paranoico e entertainer considera-se todo-poderoso e por isso actua, politicamente, com um sentimento de impunidade total. É igualmente um feroz intérprete da retórica populista e do discurso demagógico que caracterizam a idade democrática nesta era das massas, e numa sociedade de comunicação dominada pela televisão. Mas, atenção! Como salientou, em 2016, o ensaísta e jornalista norte-americano Chris Hedges (Prémio Pulitzer), Trump não fez mais do que corresponder aos sentimentos duma classe operária que manifestou a sua cólera legítima em relação a uma elite autoproclamada de esquerda (liberal) incarnada por políticos como os Clinton e Obama, que adoptaram em campanha o discurso da identificação e da empatia com a esquerda, mas que, uma vez na Casa Branca, serviram tranquilamente o poder das grandes empresas e de Wall Street. O eleitorado pode legitmamente acusá-los de hipocrisia.
Demagogo, telegénico e grande comediante desta era da vídeo-política, Donald Trump corresponde ao tipo de líder populista que ou é “homem de negócios” ou “empresário” bem sucedido, o que permite identificações imaginárias bastante fortes (por exemplo, com Ross Perot nos EUA, com Silvio Berlusconi em Itália, com Color de Mello no Brasil, ou com Bernard Tapie em França).
O esquema “povo versus elites” foi constantemente explorado por Trump, ao adoptar um discurso anti-urbano e contra o establishment (sito em Washington), xenófobo e anti-imigrantes, nacionalista e racista – a fazer lembrar o populismo reaccionário, contra os direitos cívicos dos negros, do governador do Alabama na década de 1960, George Wallace; ou do antigo líder da extrema-direita no Reino Unido, também nessa década, Enoch Powell, que incitava a população a hostilizar os imigrados e a rejeitar alianças económicas com os outros países europeus. E no entanto – contradição só aparente – os plutocratas e Wall Street são os mais interessados no populismo e nas políticas de Trump…
5. MACRON Em França, um telepopulismo incipiente e pós-moderno é a face de políticas neoliberais requentadas e desastrosas, resultantes da inépcia política do Presidente da República, Emmanuel Macron, que apostou num simulacro de recuperação da Terceira Via de Tony Blair, no Reino Unido, e do Novo Centro de Gerhard Schroeder, na Alemanha – mas falhou!
Todavia, deve dizer-se que os objectivos programáticos de Macron eram vagos e nunca foram por ele claramente expostos. Mas sabia-se ao que vinha e quais os objectivos essenciais: beneficiar gestores e empresários e vergar a espinha aos trabalhadores, através duma revisão profunda do código do Trabalho – “a mãe de todas as reformas”, como lhe chamou Bruno Le Maire, ministro das Finanças de Macron e do seu primeiro-ministro, Edouard Phillipe. Principal propósito do Macron reformador: privilegiar acordos de empresa entre patrões e empregados, em prejuízo dos contratos colectivos sectoriais.
Além disso, Macron quer gerir a França, ou melhor, a sua administração pública, como uma empresa privada, para obter melhores resultados e, sobretudo, maior rentabilidade. O que me faz recordar o que escrevi em 2012, no meu livro sobre A Crise da Esquerda Europeia, ao criticar o “discurso da modernização”, típico da Terceira Via e do Novo Centro. Para Macron, como para Blair e Schroeder, o novo modelo do Estado passou a ser a empresa, da mesma forma que a gestão empresarial passou a ser o novo modelo de direcção dos organismos estatais. O sector público passou a ser considerado, por definição, ineficaz e ultrapassado, sobretudo por visar objectivos sociais que vão muito além duma estrita eficácia económica e da sua rentabilidade. Para os neoliberais, mesmo o Estado exíguo só se salva se cumprir religiosamente as regras do mercado. Mais: o homem de negócios e o empreendedor foram elevados à categoria de heróis e exemplos a seguir, e “empreendedorismo” passou a ser uma palavra recorrente no discurso dos políticos e tecnocratas que alternam no poder.
A chamada “esquerda moderna” foi-se aproximando, assim, da “nova direita”, claudicando perante a hegemonia das ideias neoliberais e cultivando um terreno propício ao florescimento da demagogia e do populismo, cuja arma mediática de eleição é, obviamente, uma televisão sempre à procura de mais audiências, nem que seja – e é mesmo! – à custa do abaixamento de nível, do avacalhamento dos programas e do aviltamento do público. Ora, o telepopulismo é, obviamente, o veículo por excelência para atrair e convencer massas populares desamparadas pelos partidos que as deviam defender e representar.
Duas décadas passadas, Macron é a reencarnação caricatural dos telepopulistas Blair e Schroeder, mas a sua hipocrisia e a sua incompetência políticas são de tal modo evidentes que, perante a brutal ofensiva dos “coletes amarelos”, nem o recurso ao telepopulismo o safará. Baixando o nível desta análise, direi que este garçon que chegou ao Eliseu num berço de ouro, para evitar o acesso do Front National ao Palais, não passa dum peralvilho – arrivista e petulante. Enquanto Donald Trump é um demagogo telepopulista de alta intensidade, este Emmanuel Macron é um telepopulista néscio, de fraca intensidade.
Com uma maioria esmagadora e aparentemente dócil na Assembleia Nacional, Macron chegou a dar a ideia de que teria sob controlo todos os comandos da República. Mas a maioria absoluta, afinal, não era assim tão dócil, já que Macron e o Governo preferiram pedir à Assembleia Nacional para habilitar o Executivo a legislar – através de portarias de aplicação imediata – todas as alterações ao código do Trabalho. Era só o que faltava permitir debates e eventuais propostas de emenda por iniciativa dos deputados! Pobre democracia!
O telepopulismo oratório e petulante de Macron – que não augura nada de bom para os franceses que o elegeram, tanto os das classes populares como os das classes médias – sofreu um sério revês com a revolta e os protestos de rua dos “coletes amarelos”, nos escaldantes fins-de-semana em Paris.
6. MARCELO Na escala de intensidade dos telepopulismos, não será nada fácil determinar o grau de demagogia e populismo do PR português, Marcelo Rebelo de Sousa, produto de muitos anos, ou décadas, a fazer dos comentário políticos um espectáculo de televisão tão entretido como ilusório, nada isento e, às vezes, lamentável. Ninguém duvidará, hoje, de que ele não quis chegar a Presidente da República com partidos atrás de si, mas sim e só com televisões, rádios, jornais e jornalistas, que o veneram por dá cá aquela palha, mesmo nas situações mais caricatas, tal a ausência de espírito crítico.
Comparando-o com Macron, direi que o PR francês dispõe de vastos poderes, próprios e executivos, que tem usado muito mal, ao passo que o PR português, Marcelo Rebelo de Sousa, dispõe de poucos poderes, nenhum deles executivo, que usa com eficácia, mas em benefício da direita e, sobretudo, da sua própria imagem pessoal. Qualquer destes dois PR está longe de ser tão perigoso como Donald Trump, ou Jair Bolsonaro, ou Rodrigo Duterte, ou Victor Orban, ou Recip Erdogan – que estão, todos eles, muito mais próximos de regimes autoritários puros e duros ou, mesmo, neofascistas. Todavia, nunca será demais estar alerta perante telepopulistas como Marcelo e Macron.
O que avulta em Marcelo, mais do que em qualquer outro político que eu tenha conhecido ao longo da minha vida – mesmo Mário Soares, de quem fui amigo e colaborador directo, quer quando foi PM quer quando foi PR -, é o prazer quase infantil com que faz política, como se estivesse constantemente num recreio da escola. Mas choca-me a perfídia com que, por vezes, tenta ferir os adversários. O episódio da vichyssoise entre ele e Paulo Portas – de que fui, por acaso, um dos intervenientes, por ter dado a conhecer a Portas o menu dum jantar do PR Mário Soares, no Palácio de Belém, com especialistas de Direito Constitucional, entre eles Marcelo, menu esse do qual não constava vichyssoise alguma – é um exemplo flagrante, entre muitos outros, da ligeireza com que Marcelo Rebelo de Sousa se comporta, por vezes, na vida política.
Convirá, no entanto, não confundir o prazer de exercer uma actividade política com a vontade de fazer dessa actividade um entretenimento público, para atrair massas ignaras, sobretudo através da televisão, a fim de mais facilmente captar votos e popularidade, recorrendo aos métodos caracteríticos do telepopulismo. Este parece ser o caso de Marcelo Rebelo de Sousa, em consonância, aliás, com o que já fazia como comentador político na televisão, proferindo muitas vezes opiniões definitivas acerca de assuntos que não dominava ou fazendo elogios a dezenas de livros que, obviamente, não leu. Lembro-me, aliás, duma mulher do povo que se orgulhava de ter, na sua casa, uma estante com alguns livros que Marcelo aconselhara na TVI, mas que admitia, modestamente, que não tinha tempo nem capacidade para ler qualquer deles.
Estaremos, aqui, perante aquilo a que chamam “cultura de lombada”, e que, no telepopulismo, corresponde a “política de fachada” – feita com base em slogans, promessas ilusórias e a agitar espantalhos, como o medo; mas também feita a promover a caridade, a Igreja mais do que o Estado, o privado acima do público, numa sociedade profundamente desigual e injusta em que os ricos hão de ser sempre mais ricos e os pobres terão de resignar-se perante o infortúnio. E este é, precisamente, um dos perigos de se encarar a política como entretenimento e os políticos como entertainers. Ora, a política feita com seriedade não é, nem nunca poderá ser, um espectáculo para entreter!
Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990