O alerta é da Proteção Civil: a temperatura vai descer nos próximos dias para mínimas entre os -4ºC e os 6ºC, com desconforto térmico elevado. Uma vaga de ar frio da Antártida faz reforçar os avisos à população sobre os cuidados a ter, em especial pessoas mais vulneráveis como idosos, doentes crónicos e crianças. Com o frio aumentam os vírus em circulação e o Instituto Ricardo Jorge confirmou ontem que a gripe entrou na fase epidémica, reflexo do número de aumento de casos durante a última semana, logo, do maior risco de contágio na população. O cenário repete-se todos os anos e está longe de ser um exclusivo nacional, mas há um dado em que Portugal se destaca na fotografia europeia: é dos países onde as mortes mais aumentam no inverno e com maior variação sazonal no número de óbitos.
Uma das comparações mais recentes foi publicada em 2016 no “Journal of Public Health”, com base nas estatísticas entre 1980 e 2013. Num ranking do excesso de mortalidade no inverno em 30 países europeus, Portugal surge em segundo lugar, atrás de Malta, com um acréscimo médio de 28% nas mortes ocorridas entre dezembro e março face às que têm lugar nos meses mais quentes. Seguem-se Chipre, Espanha e Irlanda.
Carlos Dias, coordenador do departamento de epidemiologia do Instituto Ricardo Jorge, ajuda a perceber o quadro. Diariamente morrem, em média, em Portugal 300 a 350 pessoas. No inverno, tendem a verificar-se mais 100 a 150 óbitos diários. Se as ondas de calor também estão associadas a um aumento do número de mortes, no inverno o efeito tende a ser mais alargado no tempo e o especialista explica que são vários os fatores interligados. A descida das temperaturas em si contribui para a descompensação de doentes crónicos e idosos, pelo esforço que o corpo tem de fazer para se adaptar ao frio. Há registo de maior complicações cardiovasculares nesta altura. Por outro lado, o ambiente frio e húmido, como é esperado para os próximos dias, é favorável à circulação de mais vírus, mas também à sua propagação, porque a população tende a procurar espaços mais abrigados e fechados, com maior concentração de pessoas. “A doença infecciosa inicia toda uma cascata de problemas respiratórios cujo combate se torna mais difícil sobretudo a quem já tem outros problemas de bases”, continua o especialista. A gripe parece, porém, ser o fator mais expressivo. “Os dados nacionais sugerem que, do excesso de mortalidade que se verifica no inverno, a maior fração tem a ver com a gripe”, diz Carlos Dias. Os anos em que os vírus agressivos tendem assim a registar maiores picos de mortalidade. Nos registos do Instituto Ricardo Jorge, a época de 1998/1999 foi aquela em que se registou maior excesso de mortalidade no inverno, com mais 8514 mortes face à média registada nos mesmos meses em termos históricos. Mais recentemente, a época de 2014/2015, que ficou marcada por uma sucessão de casos de doentes que morreram nos serviços de urgência enquanto esperavam por observação, regista o balanço mais elevado, com um excesso de 5591 mortes. No inverno passado, apesar de atividade gripal ter sido moderada, registaram-se mais 3700 mortes face ao espectável, sobretudo entre pessoas com mais de 85 anos.
O que esperar deste ano? Carlos Dias admite que é difícil fazer uma previsão certa, dependerá da evolução da epidemia. “Temos essencialmente dois vírus em circulação e um deles, o H3N2, é o mais agressivo. Dependerá de qual se tornar dominante”, explica, admitindo que o número de mortes que até ao momento se encontra dentro do esperado para a época pode agravar-se nas próximas semanas, sublinhando a importância de a população seguir as recomendações sobre os cuidados a ter nestas alturas, em particular os grupos mais vulneráveis.
Se a evolução da epidemia da gripe preocupa as autoridades de saúde, Carlos Dias reconhece que a relação dos portugueses com o frio também deve ser tida em conta na compreensão do fenómeno, sobretudo quando a fatura do aquecimento para algumas famílias não é assim tão pequena e quando vários estudos têm alertado que Portugal tem uma grande variedade sazonal na mortalidade e também com grande amplitude térmica entre as máximas no verão e as mínimas no inverno, que importa acautelar. Carlos Dias acredita que, tal como houve um reforço significativo nos últimos anos na sensibilização da população para medidas preventivas como a vacina da gripe e cuidados a ter com o frio, também tem havido um trabalho positivo por exemplo na exigência de certificação energética das casas.
João Vasconcelos, investigador do Instituto de Geografia da Universidade de Lisboa e docente do Instituto Politécnico de Leiria, que tem estudado o fenómeno da mortalidade associada ao inverno, concorda que houve melhorias por parte dos planos de contingência das autoridades de saúde e avisos à população pelas entidades competentes, mas no campo da habitação traça um cenário menos positivo, sublinhando que parece ser um fator particularmente determinante para explicar por que motivo Portugal se destaca no excesso de mortalidade no inverno. “A nível europeu existe quase um paradoxo: é nos países menos frios que se morre mais no inverno e isto deve fazer-nos pensar. Acredito que, em termos de resposta ao frio quando surgem estas vagas, estamos cada vez melhor. Mas em termos de proteção e prevenção, ainda não fazemos o suficiente.”
Vasconcelos recorre a dados do Eurostat para traçar o retrato: “Em 2017, 20,4% da população portuguesa não conseguia manter a casa devidamente aquecida, é um quinto da população. Está melhor, em 2008 eram quase 35%, mas a média europeia é de 8,1%”, frisa.
Um dos seus doutorandos, Ricardo Almendra, tem dados ainda mais ilustrativos. “Analisámos os padrões de privação material em Portugal e vimos que os municípios com maior pobreza sócio-material têm 71% de maior probabilidade de ter excesso de mortalidade no inverno. Haverá vários fatores, mas um será a vulnerabilidade das habitações e é um problema que não podemos ignorar no país”. Mais, comparando a evolução nos últimos 20 anos nos países do sul da Europa, a melhoria das condições de vida parece estar associada a um decréscimo do excesso de mortalidade, mas a descida em Portugal tem sido “insignificativa ou nula”, alerta Vasconcelos. “Se continuamos desatentos a esta política continuaremos a ter consequências e demoraremos muitos anos a dar a volta. Por exemplo, no Reino Unido há subsídios para que seja garantido o aquecimento em casas que consideram vulneráveis, para idosos que vivem sozinhos. Em Portugal não há nada disto”, lamenta, defendendo que importa mudar a visão portuguesa de que é normal ter frio. Trabalhamos com casaco, “só não trabalho de luvas porque não consigo escrever no computador”, exemplifica. “Nos países mais frios isto não acontece.”