Basta passar os olhos pelos comentários nas publicações online para se ter ideia do sentimento de intolerância que perpassa numa parte da sociedade portuguesa. Particularmente os artigos de opinião, muitas vezes resultantes de colaboração pro bono – e disso falo por experiência própria –, suscitam uma incompreensível animosidade, quase sempre a coberto do anonimato! É expectável que pessoas com ideologias diametralmente opostas discordem. Coisa diferente, e inadmissível, é que essa discordância se traduza no comentário soez, inusitadamente insultuoso. Sinal dos tempos!
Vem à colação o manifesto da Internacional Progressista, plataforma lançada pelo estadunidense Bernie Sanders e pelo ex-ministro grego Yannis Varoufakis cujo propósito é reunir personalidades de vários quadrantes e nacionalidades dispostas a reflectir e promover a formação de massa crítica social capaz de fazer frente à investida de forças direitistas extremistas que vêm ameaçando as democracias ocidentais, como se tem visto. Traduzindo, literalmente, as palavras de abertura deste manifesto – “Há uma guerra global em marcha contra os trabalhadores, contra o meio ambiente, contra a democracia. Uma rede de facções direitistas está a atravessar as fronteiras visando minar os direitos humanos, silenciar a discrepância e promover a intolerância. Desde 1930 que a humanidade não enfrentava uma ameaça semelhante” – é-se levado a concluir que o clima de intransigência e de falta de decência que grassa por aí tem raízes mais profundas do que possamos imaginar. Mesmo se muitas vezes o ataque vem de quem não tem consciência das conotações possíveis, há uma influência subliminar rastejando por entre as intenções e os comportamentos. Não nos podemos desprecatar, portanto.
Continuando a tecer a manta da intransigência ocorre debruá-la com algumas tiradas de ilustres figuras da nossa praça. Assim, foi publicada pelo Fórum para a Competitividade, associação privada de base empresarial, presidida por Pedro Ferraz da Costa, ex-dirigente da CIP, a Nota de Conjuntura relativa a Dezembro 2018 que inclui o “tema extra” significativamente designado “A excepcionalidade das 35 horas”, onde é dito, entre outras preciosidades, que a semana das 35 horas é “um luxo de país rico”; que “a semana de 35 horas na administração pública é uma anormalidade”, “um privilégio”, que deveria ser “decretada inconstitucional”. Pois… há quem, por resistência à mudança, não consiga perceber que novos ventos sopram no domínio da organização do trabalho; da qualidade da vida, do trabalho e do lazer. Sim, do direito ao lazer. Maiores problemas e dificuldades enfrentaram, por certo, os abolicionistas em finais do séc. xix. E no entanto, as economias ex-escravocratas não colapsaram, contrariamente ao que afiançavam os defensores do trabalho escravo. Atravessámos o séc. xx livres desse flagelo, e as economias floresceram. Não serão agora os defensores do ultraliberalismo e da desregulação generalizada que irão fazer esmaecer o séc. xxi negando o direito a uma vida com dignidade e em plenitude. Erigindo o trabalho não como um direito mas como uma espécie de tributo a uma divindade possessiva que tem de ser cultuada: o deus dinheiro.
Gestora
Escreve quinzenalmente, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990