“Nunca tive um emprego decente na vida”, confessa Bruce Springsteen numa das 236 noites esgotadas no Walter Kerr Theatre, disponíveis no Netflix e em álbum ao vivo. “Nunca vi o interior de uma fábrica e, no entanto, não tenho escrito sobre outra coisa. À vossa frente está um homem que se tornou incrivelmente bem-sucedido a escrever sobre algo em que não tem a mínima experiência. Inventei tudo. Sou tão bom quanto isso”, graceja.
A gargalhada é uníssona, mas a natureza da ironia é pessoal e violenta. Ao descer dos estádios e das maratonas de três horas com a E Street Band, Spring-steen enfrenta os demónios combatidos nas canções. “Springsteen On Broadway” preenche as necessidades formais de um teatro e desliga a ficha da eletricidade. Vemos e ouvimos Springsteen a partir do zero e a contar as histórias das canções a partir da folha em branco. O espetáculo é a expressão de palco da autobiografia “Born To Run”, de 2016. A América precisa de heróis para representar o povo nas ruas e Springsteen preenche todos os requisitos: vem de um meio modesto, escapou à Guerra do Vietname, foi pago à noite para tocar em pequenos clubes, aprendeu as canções de Buddy Holly, Chuck Berry e Pete Seeger, isto é, as bases do rock’n’roll; de trovador solitário em “Nebraska” ao abraço coletivo com a bandeira ao peito de “Born In The USA”, conquistou o mundo na década de 80, quando os sintetizadores e os néones comandavam o mundo. E, na qualidade de embaixador americano do rock universalista, resistiu a uma década cinzenta de 90, reagindo ao 11 de Setembro com um fôlego salvador de Nova Iorque e de toda a nação.
Quando foi necessário estar do lado certo da força, Springsteen soube participar na festa e atirar os foguetes em “Working On a Dream”, editado a 27 de janeiro de 2009, uma semana depois de Barack Obama ter sido eleito o presidente americano mais novo de sempre, para júbilo da imensa minoria.
“Springsteen On Broadway” é o resultado de anos de terapia. Os demónios habitam-no e consomem-no. Aos sete anos desistiu de tocar guitarra, mas insistiu em dar um espetáculo para os vizinhos, só de pose. Até aos 20 não conduziu, até ser forçado a atravessar o país com a sua banda, ao volante. “My Father’s House”, do clássico folk “Nebraska”, de 1982, é uma das histórias mais comoventes do espetáculo. Springsteen recorda o dia em que teve de arrastar, com a mãe, o pai, Douglas, de um bar. A canção fala de uma relação mal resolvida com o progenitor. A descrição relata um sítio misterioso, uma figura impenetrável e grotesca; e um filho impotente perante pais incapazes de comunicar.
As sombras pairam ao longo da caminhada do Boss na Broadway. “Long Time Comin’”, do álbum “Devils and Dust”, de 2005, é introduzida por uma visita inesperada, dias antes de Springsteen ser pai pela primeira vez. Douglas arranja uma desculpa para ir ter com o filho e Spring-steen recebe a visita como um alerta para a parentalidade.
“Somos fantasmas ou somos ancestrais da vida dos nossos filhos. Ou repetimos os nossos erros, os nossos fardos sobre eles, e assombramo-los, ou os ajudamos a derrubar esses velhos fardos e a libertá-los das amarras do nosso comportamento defeituoso. E enquanto ancestrais, caminhamos ao seu lado e ajudamo-los a encontrar o próprio caminho e alguma transcendência”, assume.
O pano desceu a 15 de dezembro e, horas depois, um episódio com o espetáculo, filmado em julho do ano passado, estava disponível no Netflix – assim como, para gáudio da imensidão de fãs, o álbum ao vivo. O realizador Thom Zizzy, com quem Springsteen trabalha desde 2002, filmou-o como o espetáculo pede. Sem artifícios nem efeitos, entrevistas de bastidores ou sequer imagens da plateia.
A meses de entrar para o clube dos septuagenários (23 de setembro), encerra–se o capítulo mais biográfico de uma obra sem intermediários entre a personalidade e o real. Para o final do ano, espera-se um novo álbum. O primeiro desde 2014.