Maurice Blanchot. A literatura como experiência total

Maurice Blanchot. A literatura como experiência total


Pensador do extremo e do limite, em o “Livro Por Vir”, Blanchot fala dos autores que ama e que não deixaram qualquer descendência, e toma a literatura como uma arte da escrita que não quer ter nada a ver com o futuro.


Com um erro sintomático do nosso tempo, mas rapidamente corrigido – na badana surgia uma fotografia de George Bataille e não do autor –, chegou no final do ano de 2018 uma reedição longamente aguardada: o “Livro por Vir”, de Maurice Blanchot. Quando morre, em 2003 – Jacques Derrida, pai da desconstrução, morrerá no ano seguinte, encerrando definitivamente uma época, um tom, uma pulsão –, não é apenas um grande nome da cultura francesa que desaparece, é, acima de tudo, uma maneira singular de articular a tarefa do pensamento com uma interrogação sobre a escrita, como se nesta última se jogasse algo de profundamente importante para a forma como pensamos e como vivemos – como se, de facto, não pudéssemos ou conseguíssemos respirar fora dela, como se a exigência da escrita e da literatura capturasse cada momento das nossas vidas, cada pensamento e cada frase que se escreve. Esta época do pensamento e da escrita, se assim a podemos chamar, teve certamente as suas guerras, as suas lutas, as suas amizades, os distanciamentos e mal-entendidos que qualquer época tem – e não foram poucas, bem pelo contrário. Mas, acima de tudo, une-a esta interrogação apaixonada pela literatura que, hoje, parece ter desaparecido sem deixar rasto. É talvez por isso, por esse desaparecimento cujas causas merecem um estudo apurado, que esta ideia de uma “experiência total” da escrita, se é ainda a verdade de alguns, deixou, já há muito, de atravessar o campo literário, e que, para o nosso horizonte e a nossa geografia, a citação que se segue ou é inaudível ou é o que resta de um tempo que já não podemos chamar de nosso:

“A experiência que é a literatura é uma experiência total, uma questão que não suporta limites, não consente ser estabilizada ou reduzida a, por exemplo, uma questão de linguagem (a não ser que este ponto de vista baste para abalar tudo). É a paixão de se questionar a si própria, e obriga aquele a quem atrai a colocar-se inteiramente nessa questão”.

Romancista e crítico, com obras já clássicas como “L’Écriture du Désastre” ou “L’Espace Littéraire”, Maurice Blanchot foi o nome que mais longe levou essa pesquisa implacável, rigorosa, essa busca incessante, obscura, por aquilo que é transportado por esse pequeno nome que, nascido poucos séculos antes, obedece hoje a códigos cada vez mais restritos, a normas cada vez mais implacáveis, e de onde desertou todo a paixão dos limites que, não há muito tempo, lhe conferia o fôlego de uma manhã gloriosa: a literatura. Nascido no início do século XX, amigo de longa data de um outro grande pensador, Emmanuel Levinas, que conhece na Universidade de Estrasburgo, militante de extrema-direita durante a década de 30 – valendo-lhe a instauração de um “processo”, ao qual responde de forma oblíqua com o seu último texto, “O Instante da minha morte” –, foram poucas as figuras cimeiras do pensamento francês que não se sentiram tocadas por esse pensamento do extremo e do limite. Para Michel Foucault, que sobre ele escreve um livro, Derrida, Jean-Luc Nancy, Roland Barthes, Agamben ou Phillipe Lacoue-Labarthe – este último tem um texto póstumo cujo título, mas não só, é impressionante: “Agonie terminée, agonie interminable” –, a obra de Maurice Blanchot representou um momento privilegiado, não apenas da interrogação da literatura mas também da própria tarefa do pensamento, numa altura em que ambos se encontravam irremediavelmente ligados um ao outro.

Neste conjunto de ensaios escritos entre 1953 e 1958 para a “Nouvelle Revue Française”, que vão de Proust a Beckett, de Henry James a Musil ou Broch, este pensamento do extremo torna-se visível em todos os seus momentos, como se a “exigência secreta da arte” – e “exigência”, tal como “paixão”, é uma palavra fundamental para compreender estes ensaios – fosse “começar no extremo dos extremos”, onde a arte “só encontra o seu começo aí onde já não há arte e onde faltam as condições da arte”. Blanchot referia-se a essa “arte sem futuro”, título de uma das partes desta colecção de ensaios, que, para ele, se encontrava em causa em todo e qualquer livro que fosse apanhado por essa paixão – e paixão designa tanto uma busca incessante, sem limites, como uma certa passividade, um sofrimento sem nome. Hoje, quando o romance tem demasiado futuro, tanto que nem as novas tecnologias conseguem colocá-lo em causa, quando está prenhe de actualidade e de importância, quando se faz útil para compreender o tempo em que se insere, seria talvez importante reafirmar a sua impossibilidade ou, pelo menos, compreender de que forma a nossa época o tornou impossível, a que vergonha ou escândalo é preciso responder, ou de que vergonha ou escândalo é preciso partir.

“É que aparentemente esses autores tinham quebrado alguma coisa: não esgotavam o género, como fizera Homero em relação à epopeia, mas alteravam-no com tanta autoridade e com uma força tão embaraçosa, por vezes tão embaraçada, que parecia impossível regressar à forma tradicional, ou ir mais longe no uso da forma aberrante, ou até repeti-la.”

Nesta paixão extremada, que não conhece leis nem códigos estáveis, jogava-se, para Blanchot, esta arte da escrita que não queria ter nada que ver com o futuro, fazendo com que estes autores de que fala não tivessem qualquer tipo de descendência, singulares ao ponto de “impedirem os imitadores e desesperarem as tentativas de semelhança”. Em todos estes ensaios, de facto, o que se encontra em causa é essa “exigência excessiva”, essa “afirmação rigorosa e exclusiva que se dirige num só sentido, com essa paixão que torna necessária a tentativa impossível”. Longe, portanto, do género romanesco que cada vez tem mais futuro – e há quem não perceba o que isso tem de vergonhoso –, dos escritores que gostam demasiado da literatura, Blanchot fala-nos de uma manhã de festa, de uma altura em que a escrita afirmava todas as suas possibilidades, em que se sentia, como afirma relativamente ao escritor vienense Hermann Broch, “essa pressão impetuosa da literatura que não suporta distinção de géneros e quer destruir limites”. E é interessante ver como, ao contrário do nosso tempo, essa manhã gloriosa, essa literatura dos extremos de que nos fala Blanchot, produziu tantas obras incompletas. Para o escritor actual, talhado nos cursos de escrita criativa, amante respeitador das Letras, a incompletude só pode significar uma falha, um erro qualquer na arquitectura do romance. Nunca lhe passará pela cabeça, portanto, que há uma respeitável tradição da incompletude na escrita e que, mais do que um erro ou uma falha, a incompletude é, tantas vezes, a afirmação incondicional da própria literatura – e que este erro e esta falha é aquilo que nela constitui essa busca obscura que faz com que o poeta se torne “o amargo inimigo da figura do poeta”.

“Mais do que pela sua linguagem instintiva, os escritores distinguem-se pela atitude em relação ao cerimonial literário: escrever é entrar num templo que nos impõe, independentemente da linguagem que nos coube por direito de nascimento e por fatalidade orgânica, certo número de hábitos, uma religião implícita, um rumor que modifica, de antemão, tudo o que podemos dizer, que o carrega de intenções mais actuantes quanto inconfessáveis; escrever é começar por querer destruir o templo antes de o edificar; (…) Escrever é, finalmente, recusarmo-nos a passar do limiar, recusarmo-nos a ‘escrever’”

Passará por aqui, talvez, uma das clivagens fundamentais que separa esse “monstro bem-educado e bastante domesticado”, cujas “audácias não põem em perigo o género, com a discreta segurança das suas convenções e a riqueza do seu conteúdo humanista” (mesmo quando tem como tema uma qualquer monstruosidade), daqueles para quem o estilhaçamento da literatura, esse ódio salutar a tudo quanto seja literário, constitui a própria condição da escrita – como se só se pudesse, por fim, escrever recusando todo o cerimonial que a acompanha, todos os lugares comuns, as convenções, sentindo vergonha pela literatura actual.

– Ouvimos já ao fundo o clamor dos nossos mestres bem-pensantes. Pois bem, dizem-nos, tudo isso é já história, essa forma de compreender a literatura é antiga, vagamente elitista e recusa-se a compreender o vento histórico que sopra para outros lugares. A estes progressistas de todos os tempos pode-se responder: nada há de mais vergonhoso que estar do lado vencedor da história.