Faz quase uma década que Clarice Lispector se viu transformada numa autora irritantemente popular, um mito-saco onde cabe tudo o que sejam conveniências místicas. Corre o risco de um dia não poder mais ser descoberta na sua estranheza irremível, na sua estratégia de discreta evasão. Saltando “através do pneu em chamas do mundo” (Ingeborg Bachmann), ela vai ganhando vidas, e, ao mesmo tempo, sendo a vítima dos tantos cultos em seu nome, arriscando, um dia, não ser lida senão por esse terceiro olho, lida como se houvesse estendido a palma da sua mão, e um bando de videntes de feira viessem devolver-lhe as suas oraculares inquirições, ou desgastá-la no tipo de análise e recomendação própria da literatura de horóscopo, ou dessas aberturas ao ventoso desvario que se lê entre figuras de um baralho de tarot.
Face ao fenómeno que, hoje, inevitavelmente a precede, e em que tantos se mobilizam para tratar dos procedimentos burocráticos, das promoções ao nível da secretaria, num esforço para elevar Clarice a um primeiríssimo plano nas letras mundiais, a par de figuras como Woolf, Joyce, Kafka ou Borges, o risco depois é que a escritora fique à mercê de juízos que, na base destas ridículas comparações, possam arrasar a sua obra.
Assim, o que começa a parecer mais justo, entre quem mais estima a sua diferença, a tão distinta fragrância que se desprende lá dos bosques do seu exílio interior, será o imperativo de defendê-la desses modos de esvaziá-la, transformando-a “em ferro e deitando esse ferro sobre os ombros das gerações futuras”. “Poetas, poetas, mais do que a glória em vida temei os monumentos póstumos e as antologias!”, gritava um outro russo, Maiakovski. E vale a pena assinalar como Benjamin Moser, o biógrafo norte-americano que fez de Clarice uma sensação nos EUA, publicando em 2010, “Clarice Lispector: uma vida” (ed. Relógio D’Água), numa entrevista que deu há menos de um ano no Festival Literário da Madeira falou no seu sonho de ver uma estátua dela junto à de Pessoa na Brasileira do Chiado.
É um sonho não só em conta, mas em linha com a lógica da difusão dos autores e que, atualmente, parece copiada do modelo do franchise. De resto, não é apenas difícil separar a obra desta pernambucana nascida no território da atual Ucrânia, em 1920, do furor impositivo dos leitores-adeptos, mas também das tantas candidaturas espontâneas à posição que ela idealizou em termos irónicos numa das suas crónicas: “O meu ideal absurdo de luxo seria ter uma espécie de governanta-secretária que tomasse conta de toda a minha vida externa, inclusive indo por mim a certas festas. Que ao mesmo tempo me adorasse – mas eu exigiria ainda por cima que me adorasse com discrição, é intolerável o endeusamento afoito que constrange e tira a espontaneidade, e não nos dá o direito de ter os defeitos natos e adquiridos nos quais tão ciosamente nos apoiamos – nossos defeitos também servem de muletas, não só as nossas qualidades.”
E se, hoje, Clarice é mais citada do que propriamente lida, como uma espécie de salto alto de finíssima haste que o rumor calça quando pretende exibir a elegância das suas tantas pernas, faz sentido que tenha chegado a hora de reunir “Todas as Crónicas” num volume, incluindo mais de uma centena de textos inéditos.
Liberta de qualquer moldura narrativa, nestes textos Clarice mostra órgãos vitais desses que não couberam na apressada criação de deus, ela decompõe-se por meio de acrescentos, tantos com aquele teor de urgência que a levou a declarar que a palavra era a sua “quarta dimensão”, mas se há margem para a composição de afetos intensivos, depois há momentos quase banais, corriqueiros, confissões que, apesar de tudo, não nos deixam esquecer os méritos literários de uma autora que, então, tinha já cinco romances publicados (o primeiro deles, “Perto do Coração Selvagem”, com apenas 23 anos, catapultou-a de imediato a mito menor da literatura brasileira), além de dois livros de contos.
De resto, o tão infixável modelo da crónica viria a servir-lhe de ímpeto para abrir a concha, receber grãos de areia que, envolvidos da sua sábia baba, originou tantas perólas que acabariam, depois, resgatadas nas suas ficções. Se em vida recusou sempre os convites de reunir as crónicas – “A descoberta do mundo”, que foi a primeira reunião, só foi publicada um ano depois da morte de Clarice, em 1977, na sequência de um cancro no útero -, tantas vezes foi elogiada pelo desassombro daqueles textos, tendo ela insistido sempre em nunca se confundir com os profissionais da escrita. Nestas pode testemunhar-se o seu orgulho por algo que fica sempre no meio: “redondo sem início e sem fim, eu sou o ponto antes do zero e do ponto final. Do zero ao infinito vou caminhando sem parar” (“Um Sopro de Vida”). Falando nesta obstinação pela falha, Eduardo Prado Coelho descreveu a sua prosa – aproveitando-se de um desses sibilinos conceitos de Deleuze – como uma “linha abstrata sem contorno, linha da arte nómada e da metalurgia itinerante”.
Naturalmente, e porque Clarice tinha já um nome firmado na praça, custou-lhe arriscar o prestígio do nome com que se naturalizou brasileira, deixando os pseudónimos Helen Palmer, Tereza Quadros e Ilka Soares, com que assinava os trabalhos jornalísticos e crónicas femininas que fazia desde os tempos de estudante de Direito. O que a levou, com as maiores reservas, a aceitar o convite de Alberto Dines, editor-chefe do “Jornal do Brasil”, para escrever uma crónica aos sábados, foi a necessidade de ganhar a vida. Aos 46 anos, separada do marido, o diplomata Maury Grugel Valente, regressou ao Rio de Janeiro depois de 15 anos fora, e ali criou os filhos, Paulo e Pedro. Se em várias crónicas, Clarice não nega o que lhe custa expor-se assim, só viu uma solução para não ter de vender a alma – entregou-a. “Ainda continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que não se pode chamar propriamente de crónica”, admitia no final do primeiro mês, adiantando que “além de ser neófita no assunto”, também o era “em matéria de escrever para ganhar dinheiro”. “Já trabalhei na imprensa como profissional, sem assinar. Assinando, porém, fico automaticamente mais pessoal”.
Se este volume servirá bem a quem nunca pensou em engolir a abelha, mas simplesmente gosta de um pouco de mel no chá, se a extensão tão variável das colunas às vezes retalhadas em textos menores se adequará às partilhas nas redes sociais, aqui podemos assistir à insaciável busca pelo deslumbramento de uma autora que não confundia a literatura com uma caça a brilhos estéreis: “Eu não penso em escrever beleza, seria fácil. Eu escrevi espanto e o deixei inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério”, disse numa entrevista a Olga Borelli.
Prado Coelho vinca o lado místico da experiência em que se aventura Clarice ao escrever, mas ressalva que o misticismo, aqui, “tal como a literatura, é apenas um meio para outra coisa”. E recorda uma passagem de “Água Vida”, em que Clarice procura no dicionário a palavra “beatitude” e vê-a descrita como “um gozo da alma”, mas depois discorda da fórmula que se segue: “de quem se absorve em contemplação mística”. E, então, Clarice corrige a definição: “Não é verdade: eu não estava de modo algum em meditação, não houve em mim nenhuma religiosidade. Tinha acabado de tomar o café e estava simplesmente vivendo ali sentada com um cigarro queimando-se no cinzeiro”.
É a imagem perfeita para se achar um aspeto comum, um traço de harmonia entre notas tão dissonantes, textos que se indispõem a vários níveis com o que podia esperar-se de uma simples crónica, ou até de um texto que não deseja ficar-se pela literatura, antes passa por ela vindo de algum inferno, e some-se nalguma direção difícil de seguir. Tudo esconde outra coisa, quer dizer algo mais, cada instante, cada detalhe participa de um esforço para libertar-se da pele antiga, para que possa revelar-se uma nova.
Eis um bom exemplo: “Nada mais que um inseto”, é o título. “Custei um pouco a compreender o que estava vendo, de tão inesperado e sutil que era: estava vendo um inseto pousado, verde-claro, pernas altas. Era uma esperança, o que sempre me disseram que é de bom augúrio. Depois a esperança começou a andar bem de leve sobre o colchão. Era verde transparente, com pernas que mantinham seu corpo em plano alto e por assim dizer solto, um plano tão frágil quanto as próprias pernas que eram feitas apenas da cor da casca. Dentro do fiapo das pernas não havia nada dentro: o lado de dentro de uma superfície tão rasa já é a outra própria superfície. Parecia com um raso desenho que tivesse saído do papel e, verde, andasse. Mas andava, sonâmbula, determinada. Sonâmbula: uma folha mínima de árvore que tivesse ganho a independência solitária dos que seguem o apagado traço de um destino. E andava com uma determinação de quem copiasse um traço que era invisível para mim. Sem tremor ela andava. Seu mecanismo interior não era trémulo, mas tinha o estremecimento regular do mais frágil relógio. (…) Mas onde estariam nela as glândulas de seu destino, e as adrenalinas de seu seco verde interior? Pois era um ser oco, um enxerto de gravetos, simples atração eletiva de linhas verdes. Como eu? Eu. Nós? Nós. Nessa magra esperança de pernas altas, que caminharia sobre um seio sem nem sequer acordar o resto do corpo, nessa esperança que não pode ser oca, nessa esperança a energia atómica sem tragédia se encaminha em silêncio. Nós? Nós.”