3 de janeiro de 2019. O dia em que a China desvendou a outra face da Lua

3 de janeiro de 2019. O dia em que a China desvendou a outra face da Lua


Depois de 27 alunagens na face da Lua virada para a Terra, é a primeira vez que uma missão chega ao outro lado. Especialista portuguesa que tem trabalhado com amostras lunares fala das expectativas em torno do feito que abre um novo capítulo científico e reacende a corrida espacial  


A Chang’e-4 tocou o solo lunar às 10h26  de Pequim e a primeira fotografia correu o mundo. Mostra a superfície da Lua, com o terreno sinuoso, pedras e um pequeno declive. Parece a Lua que já conhecíamos, mas não é. Depois de uma disputa histórica entre EUA e União Soviética em torno do satélite natural da Terra e no ano em que “o pequeno passo para o Homem, grande passo para a Humanidade” celebrará cinco décadas, não foi Houston a dar a boa notícia. A China arriscou uma missão que nunca tinha sido tentada por nenhuma outra potência espacial e abre um novo capítulo da exploração lunar ao ter conseguido poisar com sucesso na face da Lua que nunca está virada para a Terra. 

O feito é técnico e científico mas promete aquecer a corrida espacial. “A China está a caminho de se tornar uma nação espacial forte. E isto é um dos eventos marcantes da construção de uma forte nação espacial”, declarou Wu Weiren, um dos responsáveis pela desenho da missão chinesa. 

O programa Chang’e arrancou em 2007 e, além de começar agora a explorar o lado oculto da Lua, prevê em 2020 lançar uma nova missão que poderá trazer para a Terra as primeiras amostras lunares em mais de 40 anos. Para 2025 apontam missões tripuladas. E como pano de fundo está a criação de uma base lunar. Um dos objetivos da Chang’e-4 passa por estudar se o cultivo de vegetais é possível – a bordo seguem sementes de batata,  da planta arabidopsis e ovos de bichos-da-seda.

Focando para já nos aspetos científicos, a missão espera permitir caracterizar melhor a geologia do satélite natural. Perceber porque é que há um lado da Lua que nunca está virado para a Terra ajuda a entender melhor a curiosidade dos cientistas. Como o período de rotação do satélite sobre si próprio é idêntico ao tempo que demora a dar a volta ao planeta, a face que vemos da Terra é sempre a mesma. Se hoje pode parecer uma mera curiosidade, durante a formação da Lua, quando o satélite estava mais próximo da Terra, o facto de haver uma face mais sujeita à gravidade e efeito das marés terrestres fez com que o lado virado para nós estivesse em mutação mais tempo, enquanto que o outro lado estabilizou primeiro e, também por isso, tem uma crosta mais antiga e mais espessa. 

Vera Assis Fernandes, investigadora portuguesa especialista geocronologia lunar, ajuda a perceber o entusiasmo, que acaba por não ter a ver apenas com a formação do satélite. “Em termos cósmicos, a Lua e a Terra estão muito próximas. Basicamente, estudar a superfície lunar permite-nos perceber como terão sido os primeiros 600 a mil milhões de anos de evolução no sistema solar. Como a Lua é mais pequena, arrefeceu mais cedo e não existem placas tectónicas, temos uma ideia de como terá sido”, explica a cientista, atualmente a trabalhar em Manchester. 

Vera trabalha com amostras lunares – é das poucas cientistas que teve oportunidade de manusear rochas recolhidas pelas missões Apollo e Luna, da NASA e União Soviética – mas também com meteoritos que são recolhidos sobretudo nos desertos de África, Chile e da Antártida. Esperar pelas amostras que poderão chegar do programa chinês abre uma nova janela de oportunidade. “É uma nova época. A maior surpresa é o sucesso. Sabemos que eram circunstâncias muito difíceis, desde logo pela dificuldade de comunicações. Tiveram primeiro de instalar um satélite. E agora aproveitam a janela de oportunidade de ser Lua Nova deste lado, o que significa que o lado oculto está virado para o Sol e têm energia para os equipamentos funcionarem. Mas todos os dados que recolherem vão permitir-nos saber mais, testar hipóteses. Poderão surgir novas ideias. É assim que funciona o processo científico e que se avança”, resume.

E há receios de que a agência espacial científica seja menos aberta na divulgação de informação? Relatos de tweets apagados e o facto de não ter havido uma transmissão em direto como se tornou habitual nas missões da NASA, que esta semana esteve no centro da atenção mediática com o sobrevoo do Ultima Thule, levantaram receios em torno de um potencial secretismo. Vera Assis Fernandes prefere não alimentar essa corrente e acredita que o melhor caminho está em construir canais de cooperação e contactar diretamente com as pessoas. Foi isso que fez em outubro. “Tinha estado com um colega chinês numa missão na Antártida e decidi ir visitá-lo. Estive três semanas no país a contactar com diferentes cientistas e a tentar compreender melhor a cultura. Acho sobretudo que temos uma grande ignorância em relação à cultura chinesa e encontrei uma grande abertura e vontade colaborar. Ficaram agradecidos, muitas vezes sentem que têm de ser eles a vir.” Quanto à explicação para só agora se chegar à face oculta da Lua, décadas depois dos sucessos das missões Apollo e Luna, há menos otimismo. “Houve uma mudança de valores na sociedade e o conhecimento hoje deixou de ser um valor tão importante.” 

Mas aqui o fôlego da China, mesmo que seja movido por uma ideia de afirmação internacional, pode servir para espicaçar outras potências. “Parecem querer fazer do Espaço o seu soft power”, diz Vera Assis Fernandes. Miguel Gonçalves, coordenador nacional da Sociedade Planetária, a maior agência espacial não-governamental do mundo, também sublinha o empenho crescente do programa espacial chinês, que fica patente com esta nova conquista. “É cada vez mais sério, cada vez mais preciso e com uma filosofia e capacidade técnica que se calhar espanta muitos”, diz Gonçalves, cara conhecida da divulgação espacial com a rubrica “A Última Fronteira” na RTP.

E faz sentido falar de uma corrida espacial como a que travaram EUA e União Soviética? “Há cada vez mais analistas espaciais que contextualizam uma nova corrida espacial ‘à anos 60’ mas desta vez entre os EUA e a China. Apesar da exploração espacial nos dizer de uma maneira muito evidente que a união de esforços é que permite uma exploração mais sustentada, o Espaço volta a ser uma arena de interesses geopolíticos terrestres”, diz Gonçalves. “A Estação Espacial Internacional é um esforço de vários países e agências espaciais a que a China foi barrada. Fala-se cada vez mais da construção de uma espécie de “doca espacial” perto da órbita lunar e, uma vez mais, a China parece ter sido posta de lado pelos EUA e seus aliados – o que só tem impulsionado a China para a construção das suas próprias infraestruturas e agendas espaciais e com enorme sucesso até agora.” 

Mas a China não é a única nação emergente no Espaço. “Felizmente e devido a novas tecnologias e técnicas, é cada vez mais acessível em termos logísticos e financeiros lançar satélites e missões espaciais e isso está também a inflamar os sonhos de outras nações – a Índia já tem um orbiter em Marte e tem planos para a Lua, o Japão continua a imprimir uma voz cada vez mais forte também na exploração espacial e há vários países do Médio Oriente com curiosos programas espaciais.”

Apesar de só agora a China ter chegado à Lua, há uma curiosidade que nos faz recuar a 1969. Conta-se que que quando a Apollo 11 estava quase a alunar, uma das comunicações de Houston lembrou aos astronautas de que um dos pedidos na Terra era para que procurassem uma rapariga, Chang-O, que, segundo a tradição chinesa viveria de castigo no satélite há 4000 anos, na companhia de um grande coelho. Foi à lenda que o programa Cheng’e foi buscar o nome. Agora já não precisam de ajuda para tentar descobrir a solitária menina da Lua.