Até março, pode dormir mais ou menos descansado. Até 5 de março, mais precisamente: é o dia em que Mercúrio volta a estar retrógrado. É provável que não saiba ao certo, ou que não saiba de todo, o que é que isso significa. Mas tão provável quanto ter ouvido essa expressão ultimamente, o que não admira. E não é propriamente por ser um fenómeno que se dá mais ou menos de quatro em quatro meses – a última vez, entre 17 novembro e 6 de dezembro passados. Ouvir “olha que Mercúrio está retrógrado, não é uma boa altura para…” no metro, por exemplo, parece ser sinal do início de um novo tempo em que a astrologia massificada deixou de ser sinónimo de leituras de horóscopos de cinco linhas com conselhos do género “aproveite para cuidar de si”. Deixemos Mercúrio de parte, pelo menos por agora, e tentemos compreender porquê.
Coincidência ou alinhamento dos planetas, na semana passada o site de notícias locais “O Corvo” noticiava uma polémica na Junta de Freguesia do Areeiro, em Lisboa. Eram as críticas da oposição e do grupo cívico Vizinhos do Areeiro ao presidente da junta, pela inclusão de um curso de astrologia na universidade sénior da freguesia. Fernando Braamcamp, do PSD, argumentou que o valor da inscrição suporta os custos da avença paga à astróloga que leciona o curso. E que, além disso, são os próprios alunos que pedem que o curso continue ativo. Vinte e seis, ao todo.
Foi há quase 20 anos que o hoje em dia astrólogo e coach João Medeiros decidiu trocar o emprego no Instituto Nacional de Estatística na área em que se tinha formado, Economia, pela astrologia. A exercer a atividade de astrólogo desde 2003, tem também já alguns artigos publicados em revistas internacionais de astrologia, e dá cursos com regularidade. Num aspeto, nada mudou: oito em cada dez dos seus alunos continuam a ser mulheres. Mas a astrologia não é hoje olhada com o preconceito com que foi noutros tempos: “Já me aconteceu várias vezes ter pessoas de grandes empresas nos cursos por acharem que a astrologia é muito útil em termos interpessoais e também de gestão de equipas. A sociedade já está mais aberta”, nota. “As pessoas têm muita curiosidade e acho que já começa a haver a noção de que, como há bons médicos e maus médicos, bons políticos e maus políticos, também há bons astrólogos e maus astrólogos e que portanto isto não é assim tão banha da cobra como se diz e até há um fundo de verdade.”
A “verdade”, descobriu-a num estudo de estatística sobre astrologia. “A Cosmopsicologia”, publicado em livro por Michel Gauquelin em 1978. “Os melhores argumentos são os factos e, perante aqueles factos, não havia como argumentar. Para mim, foi claro que estava muito bem feito, que não era uma fraude o que ali estava, que implicava uma correlação significativa entre os planetas à nascença e as profissões das pessoas. Foi aí que a minha crença de que a astrologia não tinha nenhuma base credível foi à vida.”
Isto foi na viragem do milénio, quando a internet existia mas não se tinha materializado ainda no dia a dia. Quando memes a pulular pelas redes sociais não eram ainda nem miragem. E é João Medeiros que nos traz de volta ao tema do Mercúrio retrógrado: “Tive recentemente o caso de um amigo que faz eventos para grandes empresas que num jantar me disse: ‘Não ligo muito à astrologia, mas não faço um evento em Mercúrio retrógrado, nem pensar. Já tive exemplos disso e é a primeira coisa que vejo no calendário.’ E tenho um cunhado super-cético que também me veio falar no Mercúrio retrógrado.”
O caso do Mercúrio retrógrado De que falamos afinal? É um fenómeno que, pela diferença da velocidade de deslocação dos planetas, faz com que, da Terra, haja a ilusão de que Mercúrio está a movimentar-se para trás. “Disse-me: ‘Devias avisar as empresas de quando é o Mercúrio retrógrado’. Isto porque alguém da sua equipa disse ‘não lances essa campanha agora porque é o início do Mercúrio retrógrado’ e ele disse ‘vou lá esperar, a minha vida não se rege por Mercúrios retrógrados’, e tem muita razão nisso, mas lançou a campanha e percebeu que teve muito mais bloqueios, impedimentos e resistências do que o normal. A partir daí não se esqueceu”, conta João Medeiros.
Aparentemente, a consciência de que Mercúrio esteve retrógrado, andou por toda a parte. Num artigo publicado no início do ano, a revista “Atlantic” procurava explicar: “A astrologia é um meme, e está a florescer e a espalhar-se da mesma forma desenfreada com que os memes se espalham. Nas redes sociais, os astrólogos e as máquinas de memes de astrologia agregam dezenas ou centenas de milhares de seguidores, pessoas que fazem piadas com o Mercúrio retrógrado e categorizam ‘os signos como…’ literalmente tudo: raças de gatos, citações de Oscar Wilde, personagens do ‘Strangers Things’, tipos de batatas fritas.” Etc.
A diretora internacional da J. Walter Thompson, Lucie Greene, especializada no acompanhamento e previsão de novas tendências, traçava há um ano àquela revista um retrato do que estava a mudar: “Desde há dois anos para cá, temos assistido a um ressurgimento de práticas da New Age, muito impulsionadas por um quociente de Millennials e a Geração X [a nascida entre 1961-1981] mais jovem.”
Foi nesse período que ficou conhecido como New Age, um movimento das décadas de 1960 e 70 do século passado, que a astrologia conheceu o seu último grande boom. Viveram-na artistas como o escritor brasileiro Caio Fernando Abreu ou o cineasta chileno Alejandro Jodorowsky, que além disso é escritor, poeta e “psicomago”, como se autodenomina.
Não foi através dele que Carlos Manuel, de 30 anos, chegou à astrologia. Mas Jodorowsky é uma importante peça no puzzle do seu percurso até, depois de várias palestras e pequenos workshops, ter decidido inscrever-se num curso de maior fôlego que, a cada duas semanas, aos domingos, o leva de Lisboa até Leiria. “O primeiro contacto que tive com astrologia foi logo quando nasci: deram-me um peluche que era um carneirinho, o meu signo. E desde que consigo lembrar-me que, na minha família, se falava que eu era, tal como meu avô, um dragão dourado do zodíaco chinês. Isso só acontecia uma vez a cada sessenta anos, exatamente a diferença entre eu e o meu avô. Talvez fosse uma forma de me fazer sentir especial e único.”
Ao longo da vida, Carlos sempre teve a astrologia presente. “Inicialmente pelas revistas, no horóscopo diário, ao qual nunca dei muita atenção, e posteriormente através de amigos e namoradas que estudavam e liam.”
Em janeiro do ano passado, a editora sénior da “Broadly”, uma revista do grupo da “Vice” dedicada a um público jovem feminino e cuja secção de horóscopo reúne uma legião de seguidores entre millennials, dizia que as visitas às páginas de horóscopos tinha “crescido mesmo exponencialmente”. Na “The Cut”, que mantém uma secção semelhante, no início de 2018 o número de visualizações tinha crescido 150% em apenas um ano.
Foi também há um ano que, no Brasil, surgiu, com o objetivo de mapear a relação desta nova sociedade com com a astrologia, o Peoplestrology. Um projeto que utiliza metodologias digitais de sondagem e análise cultural para tentar compreender o que está a mudar. Qualquer pessoa pode registar-se online e participar no inquérito (Portugal está entre os países em já foram recolhidos dados, apesar de numa pequena percentagem) e, no final, é possível consultar resultados como, por exemplo, como é que cada signo é visto. Periodicamente, o Peoplestrology vai publicando relatórios com resultados. No primeiro e único até agora disponibilizado, surgem dados que mostram que o interesse pela astrologia é de facto crescente. De 39% na Geração X (1961-1981), para 40% entre os Millennials (1981-1995) e 47% entre a geração seguinte, a Z.
Um “interesse inédito”, analisam, por parte de uma geração “que não viveu a febre esotérica da época hippie e New Age”, aquele período de contracultura das décadas de 1960 e 70, mas que “também não viveu “a época dominada pelo avanço da informática, funcionalismo e conformismo dos anos 80 e 90, em que parece que a astrologia ficou fora de moda”.
A plataforma conta ainda com um blogue de astrólogos que vão enriquecendo o projeto com mais informação. O objetivo, disseram os fundadores do Peoplestrology ao site brasileiro “The Summer Hunter”, é continuar o caminho que parece ter já sido iniciado de “desmistificar a astrologia”, e ao mesmo tempo utilizar a astrologia para falar sobre temas mais abrangentes. “Percebemos que nunca tinha sido feita uma pesquisa sobre astrologia de um jeito aberto e colaborativo, que usasse o tema como pano de fundo para pensar em coisas que estão acontecendo, como valores da sociedade, tendências comportamentais e sociais. Coisas que a astrologia acaba se tornando uma espécie de desculpa para se falar a respeito.”
Marcas à boleia da moda Que a astrologia virou moda já se percebeu. Basta ver a forma como está a entrar no mundo da moda, precisamente, Em 2016, a Selfridges lançou em Londres uma campanha inteira dedicada aos signos do zodíaco, cada um representado por uma montra. Marcas como a Vetements lançaram coleções de camisolas com os signos; na Urban Outfitters é possível comprar pendentes com a representação de cada um dos signos.
No entender de João Medeiros, o que tem contribuído para a popularização da astrologia é a transformação que ela própria tem vindo a atravessar. “Em geral, a linguagem da astrologia está mais apurada, mais aberta, não está tão fechada e determinística.” Ou seja, a astrologia já não é vista como algo que permite olhar para o futuro, mas para o presente – e para o indivíduo. “De uma maneira ou de outra, as pessoas vão dar a esse ouro que é a essência do indivíduo. Essa informação é preciosa. E tudo isso as pessoas procuram. Quem é que não quer, ou que não desejaria, ter uma interpretação sobre a razão da sua existência e uma explicação dos seus dons ou uma indicação dos seus possíveis maiores dons ainda não descobertos.”
Daí que esteja a popularizar-se uma nova prática, a de cruzar astrologia com o coaching, e em que o astrólogo acabou por procurar formação também. “Ultimamente tenho-me colocado mais no perfil de astrocoacher porque tenho percebido cada vez mais que as pessoas querem muito mais resultados: um acompanhamento para ter resultados. É um ramo interessante que tem crescido.” E explica: “Em termos clássicos, o astrólogo faz uma consulta e, mesmo que seja de astrologia psicológica, não é suposto haver uma continuidade do processo. Diz-se ‘você tem potencial aqui, aqui e ali, agora vá à sua vida’. Um astrocoach não faz só isso. Aproveita isso em ação. Nesse sentido, é muito mais ‘esperto’ do que o astrólogo, porque ajuda a criar resultados na vida pessoa. Não sendo tão interventivo, mas sendo um suporte e ajudando a pessoa não na parte técnica da astrologia mas na parte prática de avançar para materializar isso na realidade.”