Cheira a amontoado, a cárcere, ritmos frios, rotinas de estupor e castigo, e a corpos mais do que a espíritos. Vê-se pouco e por uma nesga. Abre-se a boca, tenta-se um golpe que renove o ar nos pulmões, mas este parece tão fino que só o esforço de respirar cansa. Quem dera pudéssemos dizer, com uma funda perturbação na raiz da alma que, aqui, “cada suspiro é como um sorvo de vida de que um tipo se desfaz”.
Tão perto já do fim do ano – medida que, afinal, não significa nada – desapareceram dois dos últimos personagens que marcaram realmente a edição portuguesa: Bruno da Ponte e Rui Martiniano. O primeiro, leva com ele a verdadeira homenagem de ter sido o único editor condenado pela edição de um livro durante o Estado Novo. Esteve à frente da Minotauro e, depois do exílio, fundou a Salamandra. Já o segundo, o ex-bancário que, se não era anarquista, foi um verdadeiro anticapitalista, um auto-didacta que, em pouco mais de uma década, sob o signo escabroso da Hiena, trouxe a esta língua uma razão verdadeiramente desalinhada, um audaz repúdio pelas lógicas em que os grandes e também os pequenos neste sector gostam de chafurdar. A morte de Martiniano veio lembrar-nos tudo aquilo que se perdeu, e de que modo, hoje, traem um desejo de revolta esses que exibem as suas pequenas diferenças como tiques de classe, os títulos de uma pequena nobreza atascada, a moleza dos marginais ou independentes que não fazem mais do que retalhar o espaço em círculos menores para disfarçar a pestilência.
Quanto aos livros, ainda que muita coisa se faça, grandes títulos se publiquem – excepção feita aos originais, em qualquer dos géneros minoritários, tendo 2018 sido particularmente penoso no que toca à edição de poesia –, falta tudo o que interessa. O sector editorial está numa encruzilhada, depois de ter sido colonizado pela lógica mediática, hoje, mesmo os pequenos editores não conseguem deixar de se ver aprisionados pelos meios, e os seus fins confundem-se com quaisquer outros. Nisto, nenhuma discussão nos leva a lado algum. De tão polidos, vagando numa tal corrente de eufemismos, todo o discurso, toda a escrita é apenas um modo da performance. A moderação foi-se aperfeiçoando e é, hoje, não uma virtude, mas um modelo de extremismo. É uma forma, não apenas de esterilidade, mas de esterilização.
Mas os livros são também uma fuga, não da realidade mas à “videirunha à portuguesa”; dão-nos outros caminhos, ou ajudam-nos a partir o mundo em bocados, para que algo nele possa ainda ser nosso. Eis uma lista, não dos melhores, mas daqueles que, editados este ano, se nos fossem tirados, o levaríamos a peito, tomando a sua falta como uma perda pessoal.
56/25-31
Que é feito da prosa, do fôlego incontido que come do chão como nas mesas de reis, come de tudo e nos dá os trajes maiores ou mais íntimos do mundo estendidos sobre uma corda firme, secando ou deixando o vento desdentado? Que é feito da arte de reunir a tribo em torno da fogueira, tirando ao escuro o susto para montar nele um teatro vagamundo? Quem ainda trata as palavras com o esmero próprio dos mestres efabuladores, que perseguem detalhes com a convicção de que basta um para dar verdadeira vida a um personagem e que falhar nisso é apenas estender a morte? Esménio foi uma aparição, um escritor que surgiu não se sabe de que buraco burocrático e nos veio dar o relato das coisas segundo uma outra mecânica. Os passos fortuitos com que a imaginação elabora ao lado do caos um reflexo compassivo, golpeia a pele, bica o fruto, enche-se de forças, lança uma variação que nos faz ver de novo o mundo. Num português em que a língua se move bem pelas arcadas da boca, com a dose certa de artifício, serviu-nos algo menos e mais que outra ficção. E, por ódio ou vergonha, determinaram que devia passar despercebido. Mas a sua revelação far-se-á como tudo o que mais fere a torpe determinação dos que nos impedem de ter uma literatura a sério. “Não podendo falar para toda a terra/ direi um segredo a um só ouvido”, escreveu a santa padroeira dos achamentos que levam o seu tempo e um dia se tornam incontornáveis.
“Cinquenta e seis – vinte e cinco da terra e do rio, trinta e um do mar e dos viajantes” é um desses descobrimentos raros que se desdobram com os anos como continentes.
Escolha de Diogo Vaz Pinto
de Esménio
Edição: Flop, junho de 2018
Páginas: 90
Preço: €12,50
ESCRITOR FRACASSADO E OUTROS CONTOS
Continuando na prosa, arrancado o freio, endiabrada, numa mastigação doida, o que um livro destes nos dá é a certeza de que é preciso começar a escrever mal, escrever contra, para se dizerem, por fim, as coisas que só este tempo pode saber, só a sua marca, o seu perfume de desespero pode inspirar-nos. Se Borges foi um apaixonante guia, um professor capaz de reverter o mau nome que a erudição vinha tomando, como disciplina de uma gente sem pinga de sangue, de humor, ou de airosa malícia, Arlt é um mago da desordem, um cão que deixou a sua sarna por escrito, que deu uma língua ao ódio pela literatura, à fluência deliciosa dos sábios iletrados. Este livro de contos que nos chega numa edição humílima da Snob, afeita à portabilidade de quem esconde a vida nas meias e leva no bolso um livro como uma harmónica, é um livro que se lê com o ânimo de quem se evade de uma prisão… “Além disso, conhecemos muitas tristezas que nem mesmo as cartas são capazes de dissolver, enfados semelhantes a coletes de força cingem os nossos instintos, até ao dia em que sucumbimos à faca de um rival, ou à bala de alguém que há muito espera por nós nas trevas. Porque há sempre alguém à nossa espera./ Tendo vivido desta forma, é lógico estarmos cheios de um silêncio tão fosco, mudez de fera que recebeu da vida uma força maldita, útil apenas nos baixios do mal.”
Escolha de Diogo Vaz Pinto
de Roberto Arlt
Tradução de Miguel Filipe Mochila
Edição: Snob, setembro de 2018
Páginas: 322
Preço: €15,00
POEMAS ESCOLHIDOS
Júbilo é a palavra, e apodera-se de nós ao sermos abalados por fim pelo tremor das passadas deste formidável caminhante na nossa língua. Anteriores tentativas não tinham podido fazer mais que embaraçá-lo, traçar inseguramente as largas voltas que deu, como se trabalhasse os caminhos entre a imaginação e o estômago. Sem grande frescor, as incursões de outros tradutores tinham-nos dado apenas uma fosca impressão do original, um poeta palavroso, que em vez de animar, nos aborrecia com empoeiradas contemplações, versos incapazes de comer o pó da terra e cuspir nuvens dessas que seguem de perto a imaginação mais febril e adolescente. “Havia um rapaz (…) que amiúde,/ À tardinha, quando os primeiros astros/ Subiam já a crista das montanhas,/ Erguendo-se ou caindo, só ficava,/ Sob as árvores, junto ao lago baço;/ E aí unindo as mãos, palma com palma,/ Com os dedos em formação, à boca/ Ele as levava, como um instrumento,/ Fazendo pios às corujas mudas,/ Pra que lhe respondessem. – E faziam-no/ De todo o vale aquoso, muitas vezes,/ Reagindo ao chamamento, – com sons, frémitos,/ E longos olás, gritos, e ecos graves/ Dobrados, redobrados; num concurso/ De estridor jubiloso!” Uma vez mais, Daniel Jonas prova ser um tradutor com uma intuição que se diria mediúnica, um ouvido fenomenal, capaz de recompor vozes das mais diferentes tradições e dar a cada uma o eco que é só seu.
Escolha de Diogo Vaz Pinto
de William Wordsworth
Tradução de Daniel Jonas
Edição: Assírio & Alvim, abril de 2018
Páginas: 320
Preço: €19,90
AFORISMOS
Com a edição de Aforismos, pela nova editora de Vasco Santos, e de Nesta Grande Época, conjunto de sátiras escolhidas, pela Relógio d’Água, temos disponível um dos autores maiores de uma época histórica, a Viena de início de século XX, que se constituiu como um campo de experimentação extraordinário em todos os domínios – da literatura às artes, passando pela música ou pela invenção da psicanálise por parte de Freud que, também ela, não escapou ao juízo devastador deste crítico da cultura nascido no antigo Império Austro-Húngaro em finais de século XIX. Verdadeiramente intempestivo, Karl Kraus julgou sem clemência a sua época e não houve nada nesta que não fosse condenado no tribunal que erigiu tanto em «Die Fackel» como nas conferências que, segundo Elias Canetti, eram verdadeiros acontecimentos na Viena da época («um pianista exímio: mas a sua arte tem de se sobrepor aos arrotos da boa sociedade depois de uma ceia»). Mas foi sobretudo na imprensa da época, capturada por uma «militarização da linguagem», que Kraus encontrou o seu inimigo declarado. Tornada visível em particular no impressionante «Os Últimos Dias da Humanidade», esta «militarização da linguagem», esta arregimentação que a tornou num palavreado estridente, encontra-se no centro da crítica devastadora que Kraus direcionou contra a imprensa, permitindo que ainda hoje, quase 100 anos depois da sua morte, faça parte desses «seres póstumos» de que falavam Nietzsche e Cacciari.
Escolha de João Oliveira Duarte
de Karl Kraus
Edição: Vasco Santos Editores
Tradução: Lumir Nahodil
Editores, abril de 2018
Páginas 435
Preço: €24,00
Joaquim Manuel Magalhães, PARA COMIGO
Depois da destruição efetuada por “Um Toldo Vermelho” e de dois títulos de circulação restrita, Joaquim Manuel Magalhães, um dos maiores e mais inclementes críticos literários dos últimos 30 anos, que mapeou como poucos a história recente da poesia em Portugal, retorna ao trabalho poético com “Para Comigo” (que integra os dois títulos que não tiveram edição comercial). Se interesse há neste último, um pouco como em “Um Toldo Vermelho”, ele deve-se à relação macerada que mantém tanto com a língua – a última palavra do primeiro poema de “Um Toldo Vermelho” é, não por acaso, “calamidade” – como, especialmente, com o trabalho poético anterior de Joaquim Manuel Magalhães (“macerado” tem um sentido marcadamente religioso e assinala esse lado de penitência que o autor fez cair sobre a obra anterior). Esta redução da sua obra anterior a escombros irreconhecíveis e da língua a uma espécie de paradoxal prosódia, constitui, talvez, o gesto mais interessante desta continuação e radicalização que tinha começado com o livro anterior. No entanto, um pouco paradoxalmente e contra a vontade do autor, tanto este título como o anterior só adquirem legibilidade e relevo na relação que mantêm com a obra anterior.
Escolha de João Oliveira Duarte
DA MISÉRIA SIMBÓLICA | Volume 1. A Era Hiperindustrial
Se exceptuarmos «Descrença e Descrédito», editado pelas Edições Vendaval, esta é a primeira tradução portuguesa de um pensador que, fora dos circuitos académicos, continua pouco conhecido em Portugal. Começando a publicar na década de 90 do século passado, a obra de Stiegler tem sido, acima de tudo, uma análise rigorosa dos problemas e das questões que se colocam à volta da técnica e da tecnologia. Neste livro, primeiro volume cujo segundo, com um título apelativo, se chama «A catástrofe do sensível», não são tanto os problemas que a tecnologia coloca que interessam a Stiegler, mas a questão maior das relações entre estética e política. Por estética, no entanto, não se deve entender um campo redutível às artes visuais, como se o que interessasse a Stiegler fosse as relações que a arte mantém com a política. Pelo contrário, estética é entendida por este filósofo francês num sentido bastante alargado do termo: um regime de distribuição de visibilidade, à maneira de Rancière, e um processo de simbolização que permite a criação de sujeitos. E o que pretende analisar, como se vê pelo título, é a miséria simbólica em que parte da população mundial se encontra, capturada pelo «condicionamento estético em que o marketing consiste e que se tornou hegemónico para a imensa maioria da população mundial». É esta guerra pela estética, isto é, pelo controlo dos «tempos de consciência e de inconsciente dos corpos e das almas que o habitam», guerra que se instaura em todas as dimensões da nossa vida comum, que é necessário interrogar.
Escolha de João Oliveira Duarte
de Bernard Stiegler
Tradução: Luís Lima
Orfeu Negro, março de 2018
Páginas: 192
Preço: €16,00
Outra escolha de João Oliveira Duarte que não aparece na edição impressa:
Patrik Ouředník, EUROPEANA
Deste pequeno livro com pouco mais do que 100 páginas, que passou despercebido mas que merece alguma atenção, emana um riso convulsivo onde um mal-estar acompanha necessariamente cada página de humor. O autor, nascido na antiga Checoslováquia e exilado em França desde a década de 80, dá-nos uma história do século passado, começando na Primeira Guerra Mundial e acabando na famosa teoria de Fukuyama do fim da história (e acaba com um grande riso: “Mas muita gente não conhecia esta teoria e continuou a fazer história como se nada fosse”). Usando o «e» para conferir ao texto um tom de ao mesmo tempo repetitivo e de livro infantil (numa passagem de fina ironia: «As mulheres começaram a votar em 1906 na Finlândia e em 1913 na Noruega e em 1915 na Dinamarca etc. e com o passar do tempo também quiseram estudar e tirar o 12º ano e fazer política e ciência e combater nos exércitos por uma paz justa»), Ouředník parece comprovar a tese de um filósofo judeu de língua alemã: que a comédia corresponde à sombra da tragédia. E o que este livro consegue fazer em todos os seus momentos é mostrar o disparate no centro da história do século XX, como se a acumulação de estupidez só pudesse redundar na tragédia que todos conhecemos e como se o famoso anjo da história, ao olhar os escombros, só pudesse ser acometido por um riso nervoso.
CAMEL BLUE
Começa-se pelo que está próximo: “Uma folha que se move / entre as ervas.” De seguida, questiona-se a matéria do que se vê: “É um / bicho, uma // alma primeira / à superfície do dia?”. Detemo-nos apenas no efeito: “Dói // se a beleza nos toca, se o sentido / do que exala // a morte aviva a vida.” Estes versos compõem na íntegra um dos poemas de José Carlos Soares (n. 1951), poeta e professor de filosofia: “Sozinho com as palavras / apascento / a emancipada figura do destino.” Uma solidão preciosa, contida, que nunca descai para a autocomplacência, nem aspira à comunhão com um outro para se poder superar, detendo-se na demora secreta do erotismo, do “esplendor das coxas” à “boca / imperscrutável”. Cada verso antecipa algo que nunca se revela em definitivo, como pistas que, em vez de nos orientarem, tornam luminosa a desordem em que nos deixam: “[…] talvez / aproximando a fera / de nenhum centro // reste o sujeito / ubíquo, fora / e dentro da palavra”. E mesmo as condições mais limitantes – “A desventura / de ter-me num corpo / sem alguém” ou a desolação de um “trono de enganos, / nestas pontes / rebentadas” – são inalienáveis daquilo que irradia como “o pequeno milagre do poema”.
Escolha de Diogo Martins
Nota: Não é dito em lado algum, mas este livro reúne a obra poética do autor. A omissão das anteriores edições é outro exemplo da canalhice entre os pequenos editores.
de José Carlos Soares
Edição: Averno, julho de 2018
Páginas: 184
Preço: €16,00
SUÍTE E FÚRIA
“Começamos a escrever e o mundo transforma-se numa frase com a harmonia provisória de uma eternidade qualquer […]. E, de súbito, irrompe”. Rui Nunes não surpreende com Suíte e Fúria; certifica-nos, tão-só, e mais uma vez, de que este mundo é sem surpresa, um lugar em implacável desagregação que escapa à ingenuidade de quem ousar descrevê-lo, refém ainda da esperança ou de um outro qualquer paliativo. Porque dizer o sentido das coisas é trair esse sentido. Antes fazer como na música ou na pintura: procurar uma linguagem cuja sintaxe destrua sem tréguas a falácia da unidade agregadora. Que não diga, mas mostre. Que não nos incentive a interpretar, procurando o sentido oculto da escrita, embalados por “poetas elegantes” e outros tagarelas, mas que nos emudeça brutalmente com a natureza do que é opaco, indizível ou excessivo. A escrita de Rui Nunes mostra-nos que só de esgueire é visível a desolação do apocalipse: “Uma totalidade feita de desencontros, / sem a nostalgia de Deus”. Tornamo-nos únicos no desencontro, na incerteza, “na alegria de uma deriva”, constatando que “quanto mais se escreve, mais falta”. O contrário disso é a impostura da arte, “uma monstruosidade que nos repele”.
Escolha de Diogo Martins
de Rui Nunes
Edição: Relógio D’Água, outubro de 2018
Páginas: 104
Preço: €17,00
O INVISÍVEL
Há vários motivos para um bom livro ser bom: uma ideia feliz, uma execução técnica soberba, uma imaginação fora da medida comum, um desenvolto domínio da língua, a rasteira naquele tipo de leitor que sente sempre uma vaga lisonja ao pressentir que, de algum modo, tem à espera um território familiar, ser escrito por Rui Lage. Cumprindo todos estes requisitos, “O Invisível”, que desinstala do espaço lisboeta a figura de Fernando Pessoa, deslocando-a para a Serra do Alvão, alcança um raro rol de qualidades. Um mero sumário narrativo revelar-se-ia incapaz de as abarcar. Como se não bastara, toda aquela maré de enfado originada pela glorificação do poeta dos heterónimos, que levou não poucos a erguer uma barreira à inundação pessoana, metamorfoseada para longe dos territórios habituais, reverte em interesse renovado.
Sintonizado em frequência esotérica, e com um combinado de registos – do romance histórico ao policial, do fantástico ao rocambolesco, passando pelo registo satírico -, que não exclui o da própria poesia de Rui Lage, este primeiro e desconcertante romance (vencedor do Prémio Revelação Agustina-Bessa Luís), moderadamente perverso, revela-nos um novo Pessoa, apto a pesquisar invisíveis e a solucionar mistérios. Pessoa não só não enjoa como entusiasma, desafia e até nos diverte.
Escolha de Teresa Carvalho
de Rui Lage
Edição: Gradiva, setembro de 2018
Páginas: 288
Preço: €17,00
A MORTE DIFÍCIL
“A Morte Difícil” incentiva-nos à ardilosa leitura que perscruta na obra justificações para a vida – ou, como neste caso, para a escolha da morte, por inalação de gás, quando o “golden boy” do surrealismo tinha apenas 35 anos. Mas a obra inquieta-nos, não obstante, sem que para isso a vida seja dela erradicada: basta seguir as errâncias do protagonista Pierre Dumont, que, farto da repressão materna, decide entregar-se ao êxtase dos sentidos. O desejo arde por aquele rapaz de “pálpebras azuis de uma festa tão sensual como a de ameixas ao sol”, mas o desgosto de amor, em conluio com outros dilemas, afunda vertiginosamente Pierre no seu drama: “Pendurou entre as duas faces um sorriso, mas a máscara é demasiado transparente”.
Uma citação para o caminho: “Chocamo-nos, magoamo-nos. Entre nós nada existe que não seja luta. O nosso amor não é uma cárie. Rasgamo-nos, ficamos com os lábios a sangrar, os nossos maxilares quebram-se mas nem um dente foi atacado na sua polpa. Tortura-me, bate-me com o seu espírito duro, o seu espírito hermético, e quanto mais nos amamos mais inimigos somos, embora nenhum de nós deseje que o outro se submeta. É preciso que Ônfale seja uma mulher para fazer Hércules fugir e ela sentir regozijo por vê-lo fugir.”
Escolha de Diogo Martins
de René Crevel
Tradução de Aníbal Fernandes
Edição: Sistema Solar, novembro de 2018
Páginas: 192
Preço: €14,00
FLORINHAS DE SOROR NADA
Com este romance prosseguiu Luísa Costa Gomes a sua “primavera autónoma”, oferecendo-nos um ramalhete de lances borrifados a ironia. A ideia não foi aplicar uma massagem cardíaca a um género que repousa hoje no sarcófago da tradição literária e oratória, antes virá-lo do avesso. O gesto faz cair a própria fé católica.
“Florinhas de Soror Nada” é uma muito bem realizada paródia do género hagiográfico. Centra-se na vida de Teresa Maria. Obcecada pelos exemplos dos santos, quer ser santa e começa por seguir o tradicional guião: escolhe-se e assinala-se. Segue-se uma cornucópia de comportamentos (des)ajustados. Tendo embora apontado às alturas, acabou por aterrar na medida comum da segunda metade do século XX, revelando-se uma forte candidata a ovelha tresmalhada.
Uma pagela dedicada a esta Não-Santa teria de incluir a figura de uma mulher robusta, fortalecida na perda da fé, e paramentada com elementos cómicos. No verso, nada de orações: não há orações capazes de regular ou inverter o curso da sua descrença. Nem súplicas que façam recuar a velhice e a agonia final. A literatura não é o céu, tão-pouco o lugar onde se está bem.
Escolha de Teresa Carvalho
de Luísa Costa Gomes
Edição: Dom Quixote, abril de 2018
Páginas: 200
Preço: €15,90
OBRA PERFEITAMENTE INCOMPLETA
Dois prefácios – se incluirmos o de Abel Barros Baptista, que com Luísa Costa Gomes organizou esta saborosíssima edição – uma nótula de abertura, umas “Pallavras prévias”, uma advertência (ainda nos Prolegómenos), um interfácio, um posfácio, uma catrefada de notas de rodapé, doses grossas de jargão académico. Está montado o andaime para o diálogo escarninho com a atividade e a sisuda instituição literária.
Sesinando, o outro e verdadeiro nome de José Palla e Carmo (1923-1995), figura maior do nosso humor literário, estava há décadas sumido das livrarias. Escreveu pouco, divulgou ainda menos mas deixou obra valiosa com manobras de diversão linguística suficientes para ensarilhar várias cabeças. Este volume inclui “Obra Ântuma”, prosa humorística e poesia, e outros dois livros que, artesanalmente editados, nunca tinham chegado às livrarias – “Olha, Daisy” (1985) e “Heteropsicografia” (1985), variações sobre poemas de Pessoa. Culto, talentoso, sagaz, ágil a abalar as estruturas do óbvio, Sesinando era uma muito oleada máquina de produzir divertimento. E um às a exibir erudição, deliberadamente traída por ironias, trocadilhos e sarcasmos, num tom descontraidamente juvenil. Como se as ideias se lhe acotovelassem, travessas, na carola e um lenço colorido se viesse exibir no pescoço das palavras.
Escolha de Teresa Carvalho
de José Sesinando
Edição: Tinta da China, julho de 2018
Páginas: 312
Preço: €22,90
Mais duas escolhas de Teresa Carvalho que não entraram na edição impressa:
Viajar com … Maria Ondina Braga
Isabel Cristina Mateus
(Direção Regional de Cultura do Norte / Opera Omnia)
A colecção “Viajar com…” conheceu em 2018 novo volume, situado a boas milhas do turismo moderno e das maçadoras descrições pedagógicas que reproduzem em várias línguas a antiga cantilena. É dedicado a Maria Ondina Braga este roteiro literário que percorre, na região Norte, os seus lugares, os seus “espaços de inspiração”, com especial destaque para Braga, a sua cidade natal. Da escritora que se apresentou no meio literário com um livro-declaração (Eu Vim para ver a terra, 1965), que fez da viagem a única matriz possível de habitar o lugar e de o dizer, acaba por nos dar Isabel Cristina Mateus um retrato íntimo, impossível de traçar sem o registo ágil da escrita, a sobriedade e o dom da síntese.
Uma Odisseia – Um pai, um filho e uma epopeia
Daniel Mendelsohn
Tradução de Paulo Osório de Castro
Elsinore
Este universitário norte-americano é o exacto reverso daquele classicista que percorre todos os escaninhos do léxico académico É o anti-chato. Não que o possamos supor naquela posição da raposa que não chega às uvas. As uvas estão ao alcance da sua mão especializada, habituada a percorrer todo o parreiral sem grandes golpes de ginástica; conhece-lhes as formas empedernidas, os tons sisudos, o sabor agreste. Boas razões para que o especialista nos clássicos gregos preferira passar pelo terreno académico como cão por vinha vindimada. Mendelsohn dá à Odisseia um tratamento que vai contra tudo o que a tradicional cautela universitária tem por costume desaconselhar – da desformalização da dicção à intensidade apaixonada da razão, comunicada com a naturalidade de um estilo fluente.
É um daqueles raros livros que inclui uma espécie de bem-disposto manual de instruções. Quer dizer: vem com tudo o que é preciso saber sobre o poema de Homero para que “Uma Odisseia” funcione. Ver desmontar o poema de Homero e, do mesmo lance, assistir à montagem das peças que compõem o livro, a fazer pensar num estupendo lego para adultos, é uma comoção.