António Bento. “Nunca vi pobres [a viver] na rua, é muito difícil ver isso”

António Bento. “Nunca vi pobres [a viver] na rua, é muito difícil ver isso”


Mais de 90% das pessoas sem-abrigo têm doença mental. As contas foram feitas pelo psiquiatra com uma equipa de rua


António Bento é um dos maiores conhecedores do fenómeno das pessoas sem-abrigo em Portugal e acompanha-o há 30 anos. Nasceu, cresceu e vive na zona da capital onde esta população mais pernoita e, na psiquiatria, veio a descobrir que a maioria dos sem-abrigo tem, afinal, doença mental. Contesta a ideia dos “pobrezinhos”, porque não acredita que as pessoas vão viver para a rua só por serem pobres e rejeita os mitos que muitos atribuem aos sem-abrigo. Critica ainda o estigma que, em geral, a sociedade associa à psiquiatria. É numa das salas do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa – Hospital Júlio de Matos, onde é diretor do Serviço de Psiquiatria Geral e Transcultural, que António Bento recebe o i para uma conversa sobre quem dorme pelas ruas da cidade.

Nasceu nos Anjos, onde ainda vive e onde há uma grande comunidade de pessoas sem-abrigo. Passou a vida com essas pessoas?

Sim, 64 anos com os sem-abrigo. 

Esse contacto desde cedo influenciou o seu percurso?

Totalmente. Quando os meus paizinhos me levaram a batizar na igreja dos Anjos, em 1954, em frente havia – e ainda há hoje – a sopa dos pobres, como se chamava na altura, e era o maior refeitório de Portugal, com centenas de refeições por dia. Hoje é um equipamento moderno da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa chamado CASA, e até tem um equipamento residencial. Mas eu sempre estive rodeado de pessoas sem-abrigo e ali é de facto o sítio zero dessas pessoas.

Sempre soube o que eram sem-abrigo?

Não, não soube sempre o que eram sem-abrigo. E percebo até porque existe um grande desconhecimento quanto aos sem-abrigo. Vivi completamente equivocado e enganado: diziam-me que eram pobres, depois diziam-me que eram bêbedos e drogados e quando vim para o Júlio de Matos em 1984 e vi que os doentes mais graves não estavam no hospital, mas dormiam à minha porta, é que percebi uma coisa espantosa – ‘então, vivi com eles um quarto de século sem saber quem eram’. Por isso, percebo que ninguém saiba, desde o mais humilde cidadão ao Presidente da República, eu próprio também não soube durante um quarto de século.

Quando percebeu que a psiquiatria seria um caminho para estar em contacto com as pessoas sem-abrigo? Ou não foi essa a sequência?

Não quero exagerar e dizer que fui para Psiquiatria por causa dos sem-abrigo, acho que fui muito mais por causa de Dostoiévski e dos grandes escritores que li na minha adolescência, como vários psiquiatras aliás – há colegas aqui da equipa que também vieram para psiquiatria porque leram Dostóievsk e Tchekov -, porque são os escritores que no fundo nos mostram o que é o ser humano e o seu sofrimento. Fizemos até aqui no hospital cursos de Tchekov para os técnicos. Simplesmente, a partir do momento em que fui psiquiatra, não pude deixar de ver os sem-abrigo ligados a esta realidade, porque aconteceu-me até andar a tratá-los de dia e à noite irem dormir para a minha rua. Não posso dizer que isto não acontece e é uma realidade à qual não posso fugir.

Sente o estigma da psiquiatria?

Dava um milhão a quem me trouxesse uma obra a dizer bem da psiquiatria, mesmo que fosse ficção [risos]. Estou a ser provocatório, mas simpaticamente, para chegar a uma ideia: o estigma da psiquiatria é também muito do lado dos profissionais e não só da sociedade. Tanto se goza com os doentes mentais como com os psiquiatras. Tive essa experiência quando fui trabalhar para o hospital do Barreiro em 1990: nós não nos conhecíamos, fomos ao bar do hospital e começámos a perguntar uns aos outros o que éramos. ‘Eu sou oftalmologista, eu sou cirurgião’, e eu já estava cheio de medo e lá disse ‘sou psiquiatra’ e começaram-se a rir e a dizer que também eram um bocadinho malucos. Na melhor das hipóteses, se eu chegar por exemplo a Santa Maria e se estiver reunido com médicos numa mesa e eu disser que sou psiquiatra, no mínimo riem-se. E por isso é que as notícias de sem-abrigo nunca metem psiquiatria, por causa do estigma.

E o estigma dos doentes?

É máximo. E vou dizer uma coisa muito séria: estas férias comprei todos os dias os jornais e revistas, levava para a praia e ia rasgando as notícias de crime e fiz um dossiê que trouxe para a equipa. Aliás, o estudo da chamada literatura cinzenta ou dos media é uma coisa que se usa muito para os sem-abrigo, porque nos dá uma informação do sentir das pessoas e do estigma e reparei que cerca de 60% das coisas más que aconteceram em agosto, que foi o período em que fiz isso, se relacionam com psiquiatria. E há várias maneiras de se fazer essa relação: ou se diz que quem cometeu o crime era doente psiquiátrico, ou se diz que andava em tratamento, ou se diz que andava em acompanhamento psicológico – que é mais suave. E com isto estamos a dizer ao povo português que metade das coisas más que acontecem em Portugal é da psiquiatria. As criancinhas, os jovens, os velhos, crescem a pensar que psiquiatria e coisa má é quase idêntico. Não acho que a culpa seja dos media, porque lembro-me de ser pequenino e o meu avô comprava “O Século” e já era assim, o povo gosta de ver o sangue e obviamente que também percebo que se o sangue estiver ligado aos malucos é mais fácil de digerir. Percebo que seja assim, sobretudo se o crime não é compreensível.

Em que consiste o seu trabalho com os sem-abrigo?

É uma imersão total, já é uma confusão na minha vida pessoal e profissional. Faz já trinta anos. Publiquei o meu primeiro trabalho sobre o tema em 88, só havia um publicado em Portugal em todo o século XX, na área da psiquiatria dos sem-abrigo, do Luís Navarro Soeiro, nos anos 40. É um trabalho muito polifacetado. Sou médico e diretor do serviço de Psiquiatria Geral no Centro Hospitalar de Psiquiatria de Lisboa. Institucionalmente, tenho aqui os doentes do internamento, alguns sem-abrigo em estado muito grave e que estão internados há já muito tempo. Somos parceiros do núcleo NPISA em Lisboa, onde participamos de várias maneiras com um grupo de trabalho e no eixo para a saúde, somos supervisores da equipa de rua da câmara municipal de Lisboa.

E internacionalmente?

Ganhámos um projeto de investigação em Bruxelas, que nos dá dinheiro para construir um guia europeu para os sem-abrigo e estamos a fazer um currículo para ensino de sem-abrigo na Europa, no âmbito do qual estamos a coordenar oito países europeus – Polónia, Dinamarca, Bélgica, Irlanda, Grécia e Itália. O projeto deve estar concluído em 2019. Este ano abrimos uma filial do nosso grupo psicoterapêutico em Roma, na estação de comboios Termini, que tem muitos sem-abrigo. A estação é muito grande, tipo santa Apolónia, e é nas partes laterais, onde ninguém os vê, que eles estão.

Há também o caso das pessoas que nos aparecem com pulseira eletrónica e o telefone e que não podem ir para casa, que são os sem-abrigo por decreto do juiz.

Que realidade é essa?

É um juiz que os torna sem-abrigo. Por exemplo, eu, se bater na minha mulher, não fico sem-abrigo porque tenho outra casa. Mas o que acontece a um homem que bate na mulher e que não tem outra casa? Vai para onde? Chegam aqui com a pulseira e o último que aqui veio disse-me assim: ‘Olhe, é que eu estou num centro de acolhimento e a partir de amanhã vou ter de dormir na rua e disseram-me para vir à consulta aqui no Júlio de Matos para o Doutor Bento me ensinar como é que se dorme na rua’. 

Mas essas pessoas ficam de facto na rua, depois?

Tecnicamente não ficam, é evidente que eles têm direito a apoio como tem qualquer português. Se eles não estão presos, a segurança social deve custeá-los. Mas isto é uma coisa horrível, ora imagine: vivia com o seu pai ou a sua mãe e dava uma grande tareia num deles e zangavam-se. Geralmente isso é crime público porque são os vizinhos que denunciam. O caso vai para tribunal e o juiz via que existia risco de vida para a sua mãe e decretava uma medida de afastamento de casa, ficava com pulseira eletrónica e impedida de se aproximar a menos de 800 metros de casa. Se não tivesse outra casa e não fosse rica, como geralmente não são os portugueses, que só têm uma casa, que hipóteses tinha? A segurança social obviamente dava-lhe alternativas, ia para a Vitae ou para um centro qualquer. Chegava lá à Vitae, via coisas horríveis – e ainda por cima para uma mulher é muito mais complicado – e pensava que aquele não era o seu mundo, estava sujeita até que alguns indivíduos lhe batessem e outras coisas muito piores. E ponderava ir para a rua. Claro que isto sucede com as pessoas que não têm amigos que as possam ajudar, mas a pessoa pode não ter quem lhe abra a porta e tem de ir para um centro de acolhimento.

Recorda-se de algum caso “especial” desses?

Sim, de um senhor com pulseira que a filha adora-o tanto que ele me contou que a vê às escondidas do juiz porque a filha lhe pede para a ir ver à escola. Sabe como foi o Natal dele, no ano passado? Fez a ceia de Natal num carro abandonado e a filha foi levar-lhe xaputa, porque ele há já dois anos e tal que não vai para casa. Nestes casos, a criminalidade não chega para ir para a prisão, mas também não tem família e amigos que o possa acolher e não pode ir para casa. Se estivesse aqui a falar com um membro do governo, ele dizia-lhe que fizeram uma coisa que ninguém fez cá, o que também é verdade: há uma primeira casa de acolhimento para homens. ‘Afinal até os homens já protegemos’, diziam-lhe. Ninguém protege os homens, eu nunca vi os homens serem protegidos. Fico sempre um pouco eriçado nestas coisas, porque acho que isto do género é um bocado a favor da mulher, o que se percebe, porque em 90% dos casos são as mulheres as vítimas. Tenho de reconhecer a realidade, mas também tenho de reconhecer o outro lado: tenho muitos homens que são vítimas das mulheres e esses nunca se queixam. Eu como gosto muito das minorias, penso nisto: é claro que em 90% dos casos são os homens que são maus, mas também nos 10% que são as mulheres que são más, é terrível, porque aí os homens ainda estão menos protegidos.

Costuma dizer que um sem-abrigo é, antes de tudo, uma pessoa doente, ao contrário do que é aos olhos da sociedade, que o vê como um pobre. O ponto de partida em relação aos sem-abrigo não deve ser o facto de serem pobres, pois não? 

Na verdade não são sempre doentes, admito que haja 5 a 10% dos casos em que não conseguimos fazer um diagnóstico psiquiátrico. Mas deve-se ver o pacote todo em conjunto, e isso é impossível por várias razões. Nos últimos anos tenho feito várias apresentações em que digo que só temos de fazer duas coisas e eu em 10 segundos digo tudo – se fosse reconhecida a importância da saúde mental e da psiquiatria, estaria desbloqueado o caminho para a resolução da problemática das pessoas sem-abrigo. Em segundo lugar, é preciso colaborar porque nenhuma instituição nem ninguém consegue resolver o problema dos sem-abrigo sozinho. Se Portugal fizesse isto nos próximos 100 anos, resolvia 99% dos casos de sem-abrigo.

Por que parece ser tão complicado?

Porque temos agendas diferentes, interesses diferentes, obrigações diferentes, hierarquias diferentes, linguagens diferentes, etc.. Numa micro-escala, é como no mundo, em geral: como colaboramos com o Trump ou outros líderes? Porque é tão difícil as pessoas e os países entenderem-se?

O fenómeno dos sem-abrigo pode vir a ser erradicado? É irreal pensar isso?

É a pergunta para um milhão de dólares? Não sei. Não sei sequer se será importante a “erradicação”. Mas sei que seria importante a nossa sociedade discutir este assunto. Como disse, só há sem-abrigo visíveis nas sociedades democráticas e tolerantes. Felizmente, ninguém pensa, em Portugal, que a “irradicação” passe pela morte, prisão ou deportação.

O fenómeno dos sem-abrigo tem vindo a mudar? Há uma evolução positiva? Como estávamos há 30 anos?

É a pergunta que mais me fazem e tenho alguma dificuldade em responder. Diria que o que mudou mais se calhar foram as estruturas, ou seja, houve uma época em que a culpa era só da misericórdia, que pouco mais havia, culpava-se a misericórdia de não fazer nada como se tudo dependesse da misericórdia. Depois veio uma época contrária, em que passou a haver muitas instituições e passou-se a culpar os sem-abrigo porque eles é que não queriam ajuda, e hoje vivemos uma época um bocadinho estranha, em que este problema foi tido como uma causa nacional, e há uma estratégia, e há uma boa estrutura, e há coisas maravilhosas que não há em mais nenhum sítio do mundo – o NPISA, por exemplo. Apesar destas mudanças, tenho algumas dúvidas que tenha mudado na essência, particularmente porque nunca houve nenhum reconhecimento oficial da importância daquilo que chamam saúde mental e que eu chamo psiquiatria, e portanto, basicamente, continua a haver os problemas do álcool, das drogas e das psicoses. E isto é quase em permanente, e uma coisa que eu acho relevante é que a troika não afetou quase nada isto. Nós hoje em dia temos uma estrutura muito melhor, muito mais investimento, muito melhores condições, mais pessoas capazes, mas o problema persiste.

Qual a percentagem de sem-abrigo com doença mental?

A primeira vez que estudámos isso foi em 2001, com a amostra de rua da Santa Casa da Misericórdia. Fomos fundadores da equipa de rua. E quando chegámos aos 1000 casos de rua fomos fazer as contas: 56 ou 57% tinham álcool, depois havia 20% de psicoses, depois as drogas e as perturbações de personalidade. No total, era mais de 90%. Eu acho que isto não varia muito, é obvio que podemos sempre admitir que há 10% de pessoas sem qualquer tipo de patologia. Agora, eu nunca vi pobres na rua, é muito difícil ver isso, mas admito que se houver um terramoto como o de 1755 possa haver. 

Porque diz ser difícil?

É que geralmente, quando as pessoas perdem a casa, a proteção civil ou alguma instituição ajuda, nós temos muitos serviços, a pessoa não vai dormir para a rua, que é uma coisa perigosíssima. Um pobre só porque é pobre vai dormir para a rua?! Porque é que se vende isso aos portugueses, porquê? Eu percebo porque se vende, porque tem outros objetivos, mas não devia.

Quanto doentes sem-abrigo estão internados no Júlio de Matos?

É impossível dizer com exatidão, pois ‘sem-abrigo’ não é uma categoria formal ou administrativa. Não pode haver registos de ‘sem-abrigo’ na saúde, como não há de homossexuais, raças, etc. Mas posso dizer-lhe que só no meu serviço, e há vários serviços no meu hospital, temos cerca de 300 sem-abrigo por ano, dos quais cerca de 50 internados.

O que pensa da Estratégia Nacional?

Penso muito bem, é uma boa estratégia e tem funcionado. Mas tenho de fazer uma declaração de interesses familiar: a minha mulher – ela não gosta que se diga, mas vou dizer – foi a pessoa que mais trabalhou na estratégia e foi a coordenadora nacional da primeira estratégia. Mas independentemente disso, diria sempre bem da estratégia, até porque ter uma estratégia é um apanágio dos países que trabalham bem com sem-abrigo. Agora, é preciso implementá-la.

Mas ela existe só no papel?

Tinha de haver uma avaliação até ao final deste mês, relativa aos dois anos da estratégia 2017-2023. E dos múltiplos objetivos da estratégia, há uma linha da saúde mental que não sei como vão preencher. A mim ninguém me perguntou nada e suspeito que possa acontecer, na véspera das eleições, que andem aí a fazer relatórios à pressa. Hão de querer saber o que é que aconteceu à saúde mental nestes dois anos. E ninguém me perguntou nada e eu tenho centenas de sem-abrigo e os dois anos estão a acabar. Parece que vão esperar pelo fim dos seis anos, mesmo o Presidente da República está sempre a falar de 2023.

Existem alguns mitos relacionados com os sem-abrigo: que têm dinheiro mas andam na rua, que não querem sair da rua, que gastam o que as pessoas lhes dão em álcool e droga. É isso que vê no contacto com estas pessoas?

Isso é o “blame the victim”, como dizem os ingleses, e acho que seria muito injusto estarmos a acusar os sem-abrigo. Costumo dizer que os sem-abrigo são o oposto de uma claque de futebol porque é tudo menos homogéneo. Ao passo que numa claque estão todos ali ferozmente a torcer pelo clube, os sem-abrigo são uma população altamente heterogénea, é ainda mais heterogénea do que dizermos que os portugueses gostam de bacalhau, cada pessoa sem-abrigo é uma pessoa sem-abrigo, e claro que um sem-abrigo com esquizofrenia é diferente de um sem-abrigo alcoólico ou de um sem-abrigo toxicodependente.

Então esses mitos são realmente mitos?

Sim, tirando casos particulares. Os sem-abrigo são como uma folha em branco, cada um vê o que quer, por isso é que é tão bom para os políticos e para toda a gente: se eu for uma pessoa com compaixão, eles servem para servir a minha compaixão, se eu for político, servem todos os políticos: os governos em funções, a oposição, e ainda os jornalistas e o povo. E quem quiser culpar os sem-abrigo também tem bons exemplos. Não digo que sejam mitos, mas cada um vai buscar a verdade que quer, como se fosse o todo.

Há algum caso que o tenha marcado?

Há um caso muito dramático, de uma pessoa sem-abrigo que se esqueceu do nome. Há doentes que já estão muito deteriorados e isso é uma coisa em relação à qual eu não posso calar-me, não posso admitir, assim como não podia admitir que um diabético estivesse a apodrecer sem insulina e outras coisas. Sei que na psiquiatria é mais difícil de perceber, porque quando é físico vê-se e aqui não se vê, mas não posso calar-me quando vejo uma pessoa a viver anos gravemente doente e ninguém fazer nada, nem se reconhecer que é um doente e pôr-se o rótulo de pobre a uma pessoa gravemente doente. O caso que recordo é o de uma pessoa que estava tão doente, tão doente, que tinha perdido o nome, não se lembrava. Eu disse-lhe ‘olhe, você não se chamava Beatriz?’, a pessoa teve um clique e disse assim ‘ah! ela era Beatriz…’. Ela que já não era a pessoa, estava a falar na terceira pessoa de si mesma, mas a concordar comigo. É uma coisa terrível ver isto, mas os casos mais dramáticos são os das mortes.

Recorda-se de alguns?

Há mortes terríveis, eu só posso falar dos casos mais antigos, de há muitas décadas. Há casos de pessoas que morreram quando a EMEL começou a operar em Lisboa e tirou os carros velhos da cidade onde viviam os sem-abrigo. Lembro-me de um caso de um sem-abrigo que tinha as pernas gangrenadas com a diabetes e que dizia que os médicos só queriam ficar com o dinheiro das pessoas, era um miserável que não tinha nada, mas dizia que não assinava a operação e morreu sem ser operado porque ninguém decidiu por ele. E isso é outra coisa de que importa falar: quem é que decide por estas pessoas, por quem não pode decidir? Se for um bebé de dois anos toda a gente decide por ele, se for um velhinho de 105 anos também toda a gente decide. Se eu tiver um acidente grave e estiver estendido na estrada em coma também o INEM decide por mim, mas se for um caso destes, quem é que decide por eles? Em princípio são os psiquiatras, que têm de fazer ao abrigo da lei de saúde mental uma cartinha para o delegado de saúde a dizer que a pessoa não está capaz de decidir e que a sociedade tem de decidir por ele. E eu faço esse papel, decido a vida das pessoas, com muitos riscos inclusive pessoais. Decido se a pessoa vai morrer na rua ou não, e tudo depende de eu fazer ou não fazer um relatório, às vezes. Custa-me muito sempre que vejo alguém morrer, quando isso podia ser evitado.

Consegue listar as situações mais comuns que levam uma pessoa para a rua?

Consigo, isso está bem estudado. A maior parte dos casos é doença mental. Depois há o caso do álcool: a pessoa que está a beber na rua, se fala com um jornalista, por exemplo, diz sempre que foi a empresa que faliu. Se formos falar com a mulher dele, a mulher diz que ele lhe batia. Se for falar com o médico, ele diz que o alcoolismo é uma doença que já vem de infância e que ele já bebia de infância. Ou seja, tem logo aqui um tríptico que às vezes não é fácil: a pessoa está na rua, perdeu o trabalho, a mulher e o controlo sobre si e a bebida. E o que é mais importante? Eu tendo sempre a valorizar o indivíduo, mas isto leva-nos a uma questão, que é o facto de a sociedade gostar de individualizar os fatores sociais, e isso pode tornar-se novamente no tal ‘blame the victim’.

Os sem-abrigo que aqui estão, por doença mental, como chegam aqui?

Pode ocorrer de todas a maneiras, a melhor é chegarem à urgência e dizerem que querem falar com o Doutor Bento. Uma maneira soft é eu vê-los na rua, falar com eles, toda a gente me conhece e tem o meu telemóvel e o meu mail, e dizem-me que conhecem alguém e eu digo que o levem à urgência. Trazem a pessoa, encaminham-na para mim, os meu colegas veem se é caso para internar ou não e se for caso para internar internam. Isso é a maneira mais corriqueira. Mas já me aconteceu de tudo: havia um senhor em Arroios, que conhecia já há muito tempo do trabalho na rua com as equipas da câmara, que nunca queria nada e um dia, estava eu na rua com a equipa e estagiários, comecei a falar com ele e perguntei-lhe se não queria ser tratado e até internado e ele disse ‘só se fosse hoje, ia já’. E ele veio, fomos à urgência de São José e foi logo internado. E eu nunca esperei isto, já o conhecia há tanto tempo e ele nunca queria nada… Dizia que ouvia rádio sozinho sem rádio nenhum, tinha as ondas na cabeça. Mas isto é um bocadinho a foz do rio Tejo, os sem-abrigo desaguam todos aqui.

O que acha da saúde mental em Portugal?

[risos] Pode passar a pergunta? Estou a brincar. Este ano candidataram-me para o maior prémio em Portugal de saúde [Prémio Nacional de Saúde, da DGS] e perdi contra um ilustre professor de neurologia, José Remísio Castro Lopes, e muito bem, nunca acreditei que dessem a nenhum psiquiatra, muito menos a mim. Quando me preencheram o formulário de candidatura ao prémio, disseram que não tinham posto que a saúde mental é o parente pobre porque isso cria reação nas pessoas para estigmatizarem ainda mais a saúde mental, ou seja: somos os do fim da linha, os mais miseráveis dos miseráveis, mas dizermos que o somos ainda é pior. Eu diria que a saúde mental é o barómetro do estado de um país. Há quem diga isso também para os animais, mas eu não sou do PAN e o PAN poderia dizer isso dos animais, mas eu digo das pessoas. É típico, num país escandinavo, uma ministra da Saúde ter por exemplo um filho esquizofrénico. É o protótipo, é o suposto. Este governo nosso até tem uma certa graça porque escolheu ‘casos especiais’ e levou-os todos para o executivo. Nunca tivemos um governo com tanta gente diferente. Agora, o que se calhar não temos é ninguém com esquizofrenia ou com um marido ou filho com a doença. E repare que mesmo este governo, que levou um de cada dos mais estigmatizados no país, não levou ninguém com esquizofrenia para o governo. Isso retrata que é impossível o governo estar conotado com a psiquiatria pessoalmente.

E quanto ao orçamento da saúde para a psiquiatria?

Trabalhei na DGS e na altura cerca de 2% era para a psiquiatria e saúde mental, e isso reflete o que o povo acha. O povo acha que se os doentes psiquiátricos estão ligados aos crimes, não merecem mais de 2% da saúde. Os portugueses estão em linha com o governo, que aqui tanto faz ser de esquerda ou de direita. Lá no fundo, as pessoas pensam que os doentes psiquiátricos também não merecem assim tanto, ainda para mais se matam a mãe, não merecem. Quem merece são os tipos do cancro e do coração. Está em linha também com o desenvolvimento que temos, acho que é um bocadinho parecido com os animais neste sentido: se tratarmos bem os animais é um índice civilizacional, como se falou para as touradas, mas isso que se disse para as touradas vale para os doentes mentais. E desculpe a comparação que pode parecer grosseira à primeira vista: um país supercivilizado é um país que também já não põe aquelas notícias nos jornais, que os doentes mentais são isto e aquilo, e que trata bem os seus doentes mentais e não tem medo dos maluquinhos.

Quais as patologias com que mais se depara na rua, nos sem-abrigo?

Raramente vejo depressão. Nunca vi um neurótico na rua, há patologias praticamente impossíveis. Há patologia psiquiátrica pesada com esquizofrenia – 10% -, 10% de outras doenças mentais pesadas – psicoses -, 50 % de alcoolismo, 15% de drogas e 10% de perturbações de personalidade, o que corresponde a 90%. Mas há sobreposições, uma pessoa pode ser esquizofrénica e beber. As depressões, é muito raro. Cinco a 10 em mil são bipolares, quase, é muito raro também. Lembro-me de um doente meu a quem perguntava porque estava outra vez na rua e ele dizia que uma senhora o tinha levado para casa, dava-lhe banho – sem maldade -, mas depois queria que ele comesse laranja. ‘Laranja, doutor, laranja?!, dizia ele. E voltou para a rua. Há pessoas que levam um sem-abrigo para casa como levam um cão ou gato.

Mas isso é legal?

Então não é? Se eu for sem-abrigo não me pode levar para sua casa? Alguém a impede? Pode ser uma pessoa com muita compaixão, é humano.

Mas tem muitos casos assim?

Muitos não, mas também não é raro. Mas às vezes temos problemas graves porque aparecem os maridos destas senhoras a querem bater nos sem-abrigo. Uma senhora pode ser muito caridosa mas pode ter um marido que não goste.

Houve recentemente uma moda de colocar armadilhas à porta de alguns sítios para impedir que os sem-abrigo ali ficassem. Mas hoje isso já não se vê tanto, não é?

Vá ao Mercado de Arroios e veja as grades que lá estão postas. Os sem-abrigo desapareceram dali. Isso deu muita bronca cá e na Europa, havia mesmo uma arquitetura chamada arquitetura anti sem-abrigo, mas agora isso é feito de forma mais encapotada. Na Avenida Almirante Reis, que é o quartel-general dos sem-abrigo em Portugal, os novos hotéis não põem picos, põem vasos com flores. É à portuguesa. Todos têm grandes vasos, que no fundo são estruturas anti sem-abrigo, mas ninguém vai pensar nisso. E depois põem cadeiras para as pessoas fumarem e assim, e quem vê pensa ‘este hotel até tem um espaço de fumadores, com privacidade’ . A Almirante Reis é paradigmática nisso.