Alice no País das Maravilhas. Com o que vier do outro lado do espelho

Alice no País das Maravilhas. Com o que vier do outro lado do espelho


Ricardo Neves-Neves e Maria João Luís levam a partir de hoje ao palco do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, uma adaptação ao teatro da mais conhecida obra de Lewis Carroll


Aquela entrada na toca do coelho. A toca por onde Alice desaparece, a decisão que marca toda a diferença. Diferença entre termos ou não termos história, e a diferença essencial: a que distingue os que ficam daqueles que vão. Assim vê Maria João Luís aquele, ou este, início de “Alice no País das Maravilhas”, a que regressa por estes dias na encenação (ao lado de Ricardo Neves-Neves) e no palco, no papel de Chapeleiro Louco. Alice? Beatriz Frazão. A partir desta noite, no palco do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Uma criação do Teatro do Eléctrico e do Teatro da Terra, numa coprodução com D. Maria II, o Cineteatro Louletano e o Teatro Nacional São João, no Porto, por onde há de passar depois.

O conto, começou-o Lewis Carroll mais ou menos por acaso, quando num passeio o contou a uma das três filhas do seu amigo Henry Liddell – Alice, que lhe implorou que o escrevesse e a quem ofereceu algum tempo depois uma versão manuscrita com algumas ilustrações do que seria uma parte apenas da versão que acabaria por ser em 1865 publicada pela Macmillan. “As Aventuras de Alice no País das Maravilhas”, na versão completa do título quase sempre abreviado, que teve depois uma sequela, com o regresso de Alice ao País das Maravilhas: “Alice no Ourto Lado do Espelho”, pela qual passa também esta versão que Ricardo Neves-Neves e Maria João Luís levam até 6 de janeiro ao Teatro D Maria II.

De volta aí, ao espetáculo, e à atriz em 2017 premiada com o Globo de Ouro Revelação da “SIC” e que Maria João Luís traz da televisão, onde contracenam como mãe e filha na novela “Vidas Opostas”, a este palco. Beatriz Frazão é a Alice perfeita. “Gosto de todas as personagens desta obra, acho todas maravilhosas”, diz Maria João Luís. Mas Alice… “A nossa Alice é uma Alice perentória, que sabe exatamente aquilo que quer, que decide ela o caminho que vai fazer, e que decide uma coisa fundamental, que é a entrada na toca, que é o que faz a grande diferença entre os que ficam e os que avançam. É dessa entrada na toca [que vem] a possibilidade de procurar no desconhecido, de se aventurar, no fundo. Ela tem isso e isso define-a.”

Como definia já na personagem a quem Carroll deu o nome da criança a quem contou pela primeira vez a história que se transformaria no seu mais bem sucedido conto – e não apenas entre a sua obra, mas um dos contos mais revisitados e adaptados da história da literatura. Desde a década de 1950, quando a Disney o adaptou para um dos seus filmes de animação, até hoje – o exemplo recente mais conhecido é a adaptação também ao cinema por Tim Burton numa Alice em versão 3D, primeiro como realizador, em “Alice no País das Maravilhas”, depois como produtor, num filme já realizado por James Bobin a partir da sequela escrita por Carroll para aquela primeira obra. 

Um pensamento feminista A crítica de Carroll à sociedade vitoriana é fácil de transpor para os dias de hoje, em novas interpretações. “Estamos no século XIX, há uma data de mulheres que estão a surgir com um pensamento, com uma presença na sociedade muito grande, com uma necessidade de afirmação e de procura de direitos, e penso que isso também está aqui, nesta menina que diz: ‘Não, vocês não passam de um baralho de cartas. Não quero isto, esta sociedade assim, quero estar nela de outra forma’. Isso está aqui e se quisermos é um pensamento feminista”, analisa Maria João Luís, para quem “Alice no País das Maravilhas” é de qualquer modo o que se quiser. “É uma obra tão rica que lemos aqui muitas vezes também o que quisermos ler.” 

Nesta encenação, “Alice no País das Maravilhas” deixa de ser uma história para adultos como para crianças, classificada para maiores de 12. Mas a grande questão, ou a maior delas, não será essa, mas como adaptar o impossível para o palco. “Fazer em teatro a Alice é sempre um desafio de alto risco, também por essa razão”, responde Ricardo Neves-Neves, que encontrou na cenografia resposta para algumas das questões. Por exemplo, no enorme espelho de distorção que acompanha praticamente todo o espetáculo. “O espelho ajuda-nos muito a trabalhar a ilusão e a fazer o desafio da gravidade. Um desafio físico.” É graças a ele e ao reflexo que faz das projeções feitas no chão que se recria, por exemplo, a queda de Alice pelo túnel.

“No início tive um certo receio por estar a pegar numa obra clássica que toda a gente conhece e que já foi muitas vezes feita, mas a Maria João também me ajudou nisso, e foi um medo muito de passagem. Depois, há tanto material e tão bom que há sempre um sentimento de perda grande em deixar coisas de fora.” Para Ricardo Neves-Neves, o desafio esteve também na seleção das cenas a levar a palco e no processo que veio depois: “As cenas não colam só por si e foi necessária uma reescrita por essa razão.” Algumas prolongadas, outras ligeiramente transformadas. “Daí ter escrito também uma parte do texto. É uma linguagem que não é muito próxima do nosso dia a dia e a questão da linguagem precisamente assume-se também como um desafio porque, dentro daquilo que é um texto meu ou um texto novo, procurei escrever com a linguagem do Carroll. A verdade é que às vezes falamos e já nem sei bem o que é do Carroll e o que é que é meu. Dentro desta transformação tenho que fazer aqui um exercício de memória para perceber o que é que escrevi e o que não escrevi.”