O emplastro amarelo


Há quem não compreenda que um colete amarelo não faz um manifestante. Esperemos que o que aconteceu na sexta-feira lhes tenha trazido a devida lição 


O português é um ser que reclama. Está-lhe no sangue, vem embebido no ADN. O português recebe um convite para uma antestreia e barafusta porque não gosta do filme. Mesmo entrando à borla, vê-se incapaz de conter a crítica. E sair antes do fim é coisa que não lhe passa pela cabeça. Mesmo quando não lhe saiu do bolso.

Reclama muito em casa sozinho em frente ao televisor – o que é da natureza do humano não precisa de plateia -, embora o seu cenário de eleição seja o café. À mesa de um café, com a televisão de fundo como banda sonora, o português vira e revira o mau estado da rua, da freguesia, do concelho, do país – como canta Sérgio Godinho, “só neste país é que se diz só neste país”. E o melhor reclamador até pode ter palavra a dizer sobre o mundo, se estiver para aí inspirado.

Desde a mesa do café viu os protestos em França tomarem forma, aumentarem de influência, chegarem à violência, pararem o país e obrigarem um presidente a recuar nas suas intenções por causa do poder das ruas. Protestos convocados pelas redes sociais que começaram por ser contra o aumento do imposto sobre os combustíveis e se transformaram numa multitude de reivindicações díspares, sinal de um mal-estar social generalizado, como o próprio Emmanuel Macron reconheceu ao anunciar concessões aos manifestantes.

As notícias da França sitiada pelos coletes amarelos correu mundo e, como em tudo neste mundo de transmissão rápida de informação, logo surgiram outros, em diferentes partes do mundo, a vestirem os mesmos coletes de protesto. Em nenhum lado teve a repercussão que teve em França. Pelo menos até agora.

Em Portugal, o reclamador indignado vestiu logo coletes amarelos no discurso sobre o assunto, fazendo suas as reclamações francesas, acrescentando umas quantas de sua lavra e deverá ter prometido a todos os que o queriam ouvir que, se houvesse por cá coisa do género, ele alinharia seguramente. Cortar estradas, bloquear portagens, organizar marchas, “contem comigo”, terá afirmado com veemência, alguns até com palavrão para enfatizar.

Já estou a ver a expressão no rosto dos primeiros versos do “Movimento Perpétuo Associativo”, dos Deolinda: “Agora sim, damos a volta a isto! Agora sim, há pernas para andar! Agora sim, eu sinto o otimismo! Vamos em frente, ninguém nos vai parar.”

Alguns, tomando a nuvem por Juno, sentindo a indignação a sair do café, acharam haver espaço para um movimento idêntico por aqui. Outros, quiseram apenas imitar. A extrema-direita pretendeu medir o pulso, perceber se o populismo que grassa em parte da Europa também já mexe a sério por aqui. E veio o dia dos protestos e, mesmo com toda a inseminação artificial da imprensa, o resultado foi grotesco.

Até o emplastro andou por lá a emprestar o rosto para os diretos das televisões. Os jornalistas destacados para a cobertura dos acontecimentos multiplicaram-se em matérias, diretos, alguns quiseram ver (forçado pelas direções, pelas contingências ou por sua própria iniciativa) mais do que realmente havia e que muito cientificamente se pode resumir como “palhaçada”.

Um protesto de centenas de milhares de pessoas em França vestidas com coletes amarelos é um importante sintoma social e político, prurido de uma comichão intensa na forma de vida. O mesmo não acontece neste momento em Portugal. As pessoas não vivem bem, o custo de vida é alto e o salário médios é inferior ao período pré-crise. Mas a comichão, por agora, não faz ferida. A geringonça veio e trouxe uns curativos, distribuiu analgésicos – não trouxe a prosperidade, conseguiu alguma paz social.

As circunstâncias que levaram mais de uma centena de milhares de pessoas a encher as ruas portuguesas em protesto em 2012 contra as medidas de austeridade, no movimento Que se lixe a troika, deixaram de existir. Os partidos à esquerda encarregaram-se de exigir maior humanismo ao PS. E mesmo que António Costa se mostre por vezes desajeitado no seu humanismo e haja entre os socialistas muitos que o ostentem apenas no nome (tão compreensíveis para as exigências dos mercados como insensíveis para a sangria dos mais pobres), a visão deste governo consegue ir para além dos programas impostos, olhar para lá do horizonte estatístico e sem tanta ânsia de ser o empregado do mês no quadro de honra do FMI.

Um protesto inorgânico como o dos coletes amarelos em França, país de forte tradição sindical languescendo na lenta perda do seu poder industrial para a globalização, pode inspirar outros protestos, dificilmente se imita na sua dimensão e espírito.

Não é o facilmente acessível colete amarelo que faz um manifestante, este sente o desejo e agarra no que tem mais à mão para se identificar e identificar os outros. O colete amarelo é a expressão de um mal-estar interior. O que se viu na sexta-feira em Portugal foi uma série de pessoas adultas vestidas com um colete amarelo à espera de se verem transformadas em força social. E o que tiveram foi um choque em cadeia. Do mal o menos, pelo menos já tinham vestido o colete que a lei obriga a envergar em caso de acidente. 
 


O emplastro amarelo


Há quem não compreenda que um colete amarelo não faz um manifestante. Esperemos que o que aconteceu na sexta-feira lhes tenha trazido a devida lição 


O português é um ser que reclama. Está-lhe no sangue, vem embebido no ADN. O português recebe um convite para uma antestreia e barafusta porque não gosta do filme. Mesmo entrando à borla, vê-se incapaz de conter a crítica. E sair antes do fim é coisa que não lhe passa pela cabeça. Mesmo quando não lhe saiu do bolso.

Reclama muito em casa sozinho em frente ao televisor – o que é da natureza do humano não precisa de plateia -, embora o seu cenário de eleição seja o café. À mesa de um café, com a televisão de fundo como banda sonora, o português vira e revira o mau estado da rua, da freguesia, do concelho, do país – como canta Sérgio Godinho, “só neste país é que se diz só neste país”. E o melhor reclamador até pode ter palavra a dizer sobre o mundo, se estiver para aí inspirado.

Desde a mesa do café viu os protestos em França tomarem forma, aumentarem de influência, chegarem à violência, pararem o país e obrigarem um presidente a recuar nas suas intenções por causa do poder das ruas. Protestos convocados pelas redes sociais que começaram por ser contra o aumento do imposto sobre os combustíveis e se transformaram numa multitude de reivindicações díspares, sinal de um mal-estar social generalizado, como o próprio Emmanuel Macron reconheceu ao anunciar concessões aos manifestantes.

As notícias da França sitiada pelos coletes amarelos correu mundo e, como em tudo neste mundo de transmissão rápida de informação, logo surgiram outros, em diferentes partes do mundo, a vestirem os mesmos coletes de protesto. Em nenhum lado teve a repercussão que teve em França. Pelo menos até agora.

Em Portugal, o reclamador indignado vestiu logo coletes amarelos no discurso sobre o assunto, fazendo suas as reclamações francesas, acrescentando umas quantas de sua lavra e deverá ter prometido a todos os que o queriam ouvir que, se houvesse por cá coisa do género, ele alinharia seguramente. Cortar estradas, bloquear portagens, organizar marchas, “contem comigo”, terá afirmado com veemência, alguns até com palavrão para enfatizar.

Já estou a ver a expressão no rosto dos primeiros versos do “Movimento Perpétuo Associativo”, dos Deolinda: “Agora sim, damos a volta a isto! Agora sim, há pernas para andar! Agora sim, eu sinto o otimismo! Vamos em frente, ninguém nos vai parar.”

Alguns, tomando a nuvem por Juno, sentindo a indignação a sair do café, acharam haver espaço para um movimento idêntico por aqui. Outros, quiseram apenas imitar. A extrema-direita pretendeu medir o pulso, perceber se o populismo que grassa em parte da Europa também já mexe a sério por aqui. E veio o dia dos protestos e, mesmo com toda a inseminação artificial da imprensa, o resultado foi grotesco.

Até o emplastro andou por lá a emprestar o rosto para os diretos das televisões. Os jornalistas destacados para a cobertura dos acontecimentos multiplicaram-se em matérias, diretos, alguns quiseram ver (forçado pelas direções, pelas contingências ou por sua própria iniciativa) mais do que realmente havia e que muito cientificamente se pode resumir como “palhaçada”.

Um protesto de centenas de milhares de pessoas em França vestidas com coletes amarelos é um importante sintoma social e político, prurido de uma comichão intensa na forma de vida. O mesmo não acontece neste momento em Portugal. As pessoas não vivem bem, o custo de vida é alto e o salário médios é inferior ao período pré-crise. Mas a comichão, por agora, não faz ferida. A geringonça veio e trouxe uns curativos, distribuiu analgésicos – não trouxe a prosperidade, conseguiu alguma paz social.

As circunstâncias que levaram mais de uma centena de milhares de pessoas a encher as ruas portuguesas em protesto em 2012 contra as medidas de austeridade, no movimento Que se lixe a troika, deixaram de existir. Os partidos à esquerda encarregaram-se de exigir maior humanismo ao PS. E mesmo que António Costa se mostre por vezes desajeitado no seu humanismo e haja entre os socialistas muitos que o ostentem apenas no nome (tão compreensíveis para as exigências dos mercados como insensíveis para a sangria dos mais pobres), a visão deste governo consegue ir para além dos programas impostos, olhar para lá do horizonte estatístico e sem tanta ânsia de ser o empregado do mês no quadro de honra do FMI.

Um protesto inorgânico como o dos coletes amarelos em França, país de forte tradição sindical languescendo na lenta perda do seu poder industrial para a globalização, pode inspirar outros protestos, dificilmente se imita na sua dimensão e espírito.

Não é o facilmente acessível colete amarelo que faz um manifestante, este sente o desejo e agarra no que tem mais à mão para se identificar e identificar os outros. O colete amarelo é a expressão de um mal-estar interior. O que se viu na sexta-feira em Portugal foi uma série de pessoas adultas vestidas com um colete amarelo à espera de se verem transformadas em força social. E o que tiveram foi um choque em cadeia. Do mal o menos, pelo menos já tinham vestido o colete que a lei obriga a envergar em caso de acidente.