A economia tem crescido, as exportações também e a taxa de desemprego está a descer. São dados positivos ou Portugal poderia ter sido mais ambicioso?
São dados positivos, embora a taxa de desemprego seja mais baixa como resultado do aumento da população ativa. Mas a questão de termos, neste momento, um superávite nominal elevado é muito positiva. Crescermos com base numa exportação maior também é positivo. O aumento do rendimento disponível das famílias, em particular do salário mínimo, é socialmente indiscutível. Podíamos falar de mais alguns aspetos. Acontece que isso é uma condição necessária, mas não é suficiente porque algumas dessas situações advêm da boleia da conjuntura económica. É a boleia dos estabilizadores automáticos: menos despesa social, mais receita fiscal, o que, aliás, no ano passado levou o país a atingir a taxa máxima de pressão fiscal e talvez se repita este ano. É uma situação que não vai acontecer sempre. A pergunta que eu faço é: perante este quadro muito mais positivo estará o país preparado para enfrentar uma situação de abrandamento ou mesmo de recessão económica? Aí já tenho dúvidas. Primeiro porque, nessa altura, os estabilizadores vão funcionar ao contrário. Segundo, embora a nossa dívida pública tenha descido um pouco em termos nominais, continuamos a ter uma dívida líquida à volta dos 120% da riqueza nacional. Isso é um cutelo sobre o futuro, temos a terceira dívida mais elevada no contexto da União. Depois algumas das medidas que contribuíram para uma maior consolidação das contas públicas são medidas que não dominamos. Além disso, cortou-se muito no investimento público. Não se está a repor os equipamentos públicos. É o caso da saúde, ferrovia, etc. Há dias fui fazer uma viagem e os comboios estão indigentes. Mesmo em primeira classe. Cheguei a sentir uma certa vergonha de Portugal, no século XXI, apresentar comboios sujos, já estragados, com coisas que já não funcionam, etc. Ao mesmo tempo, assistimos à marginalização completa das taxas de poupança. Não há crescimento sem poupança porque sem poupança não há investimento. Quem é que poupa hoje? Ninguém poupa porque não há rendimento para isso.
Com os juros tão baixos, também não há incentivo…
Não há nenhum incentivo. As famílias são muito mais estimuladas a consumir do que a poupar. Não só por uma lógica comportamental ou porque o crédito é fácil, mas porque o único estímulo que as pessoas têm neste momento para o fazer é a função de precaução para o futuro. Mas as sociedades contemporâneas cada vez pensam menos na ideia antiga do pé-de-meia. A nossa taxa de poupança está nos 4% Tivemos taxas de poupança de 20 e tal por cento e, mesmo no meio da crise chegámos a ter 12 e tal por cento. Não havendo poupança ou não há investimento ou há investimento através do endividamento externo. E ambas são negativas.
Com estes alertas do antigo presidente do BCE e agora do FMI, Portugal estará preparado ou poderemos passar por uma situação pior do que aquela por que passámos?
Apesar de tudo Portugal está melhor preparado para uma nova crise. Uma coisa é partir para uma crise com um saldo positivo em termos nominais. E há, apesar de tudo, melhores condições do ponto de vista do sistema financeiro. Agora, na minha opinião, estas condições não irão contrariar uma situação negativa forte que possa aparecer. Aparece é numa base melhor do que aquela que Portugal tinha, por exemplo, em 2008/2009. O défice foi de 11,2%.
Muito longe dos défices zero …
Sim. Em termos de saldo primário estamos com 4% de superávite. Mesmo que a crise tenha uma intensidade grande, apesar de tudo, a base é diferente. Tenho é de reconhecer que não foi aproveitado este tempo para fazer algumas reformas de fundo. Não gosto de chamar estruturais, mas estou a falar de reformas que pudessem contribuir para tornar mais sustentável o caminho.
Que reformas considera serem mais imperativas?
O que normalmente se faz no nosso país, sobretudo em momentos de mais dinheiro, é fazer mais despesa no Estado e fazer mais despesa precisa de mais impostos, quanto mais não seja através dos estabilizadores automáticos. Não quer dizer que os impostos aumentem, mas a receita fiscal aumenta. Quando, na minha opinião, é nesta altura que se deve fazer a reforma do lado da despesa para, em vez de mais receita para financiar mais despesa, ter menos e melhor despesa para ter menos impostos. É ao contrário. Quando o Dr. Adalberto Campos, que estimo muito, foi substituído, alguém me disse: ‘Já viste a coincidência de o ministro da Saúde, apesar da remodelação, ser o mesmo?’ Eu questionei e a pessoa respondeu: ‘Sim, Mário Centeno’. [risos]
A última palavra é sempre do Ministério das Finanças…
Claro que é. Não estou a criticar ninguém. Estou até a dizer que é muito espinhoso e muito difícil encetar reformas que precisam de tempo e não são conjugáveis com cortes cegos que impedem a racionalização daquilo que fica. É como nós: se estivermos numa situação de saúde difícil, o que queremos é resolver aquela situação que temos na altura. Portanto, nesse momento, não temos condições para melhorar a nossa vida neste ou naquele contexto. Todas as nossas energias estão concentradas em aguentar. Mas o aguentar em Portugal, do lado da despesa, tem significado não conter, mas reprimir a despesa. É uma panela. O que os ministros das Finanças fazem – e eu também fiz – é aguentá-la. Não é reformá-la ou reduzi-la. As cativações são isso. São o volante que o ministro tem para dizer ‘alto e pára o baile, aqui não se gasta mais’. As cativações têm sido muito criticadas, mas sempre houve. Na saúde, por exemplo, reprimiu-se muito até vir uma época um bocadinho melhor. Como é que isto se transmite na vida das pessoas e das instituições? É na degradação dos serviços públicos, é medida em filas de espera, em alguma desumanização; em menor qualidade do serviço prestado, que é o caso da educação; em adiamentos de investimentos e temos isto tudo. Neste momento, passados estes anos, este é talvez o lado mais negativo. A administração pública está a passar por casos até de alguma indigência.
Temos assistido, principalmente, no último ano, a grandes paralisações em vários setores. Estava à espera?
Há dois excessos atualmente. Um é o excesso de otimismo, por vezes até inconsequente e ilusório, que o governo deu às pessoas. O país está uma maravilha, está tudo bem. Quando alguma coisa corre menos bem, o senhor primeiro-ministro é muito hábil a desvalorizar e no dia seguinte já ninguém fala nisso. A sensação que dá é que podemos consumir porque isto está muito melhor. Os primeiros dois anos foram muito populares porque foi a reversão das medidas de austeridade. Então porque é que não podem os salários aumentar? Se está tudo bem, porque é que não podemos trabalhar menos e comprar mais? Legítimo. E então o que acontece? Acontece que isto também vai para as forças laborais e sindicais. Se o governo diz que está uma maravilha, então temos de ter melhores condições. Ponto final. Estas greves são a resposta excessiva e oportunista, em alguns casos, a um excesso de otimismo e voluntarismo ilusório do governo, em particular, do primeiro-ministro. Acresce mais um ou dois fatores para que haja neste momento um ponto de convergência de greves, que são cada vez mais uma engenharia de greves. Há as parciais, as cirúrgicas, depois são as encavalitadas umas nas outras, depois são as de uma hora, mas a perturbação é a mesma.
Estamos a falar de um ritmo quase diário…
Sim e a maioria são socialmente regressivas porque incidem sobre os mais pobres. No caso da saúde e dos transportes é indiscutível. Quem apanha as consequências das greves são os pobres.
No caso da saúde, assistimos a pessoas que não foram operadas…
Casos abjetos, de uma degradação humana, deontológica e ética que eu não pensaria alguma vez haver em Portugal. Respeito que têm as suas razões para lutarem por aquilo que é mais justo, indiscutivelmente, mas não ao ponto de adiarem cerca de cinco mil intervenções cirúrgicas, algumas eletivas é certo, mas mesmo as eletivas são sempre intervenções cirúrgicas. Se tiver de ser operado às cataratas, tem a operação marcada, adiam e dizem que talvez que posso ser operado em 2019 ou em 2020 – isso é de uma desumanização abjeta, não tem outro nome. Além disso, estamos a aproximar-nos de eleições, em que cada um dos partidos da coligação parlamentar quer dizer ao eleitorado ‘eu é que sou bom’.
Isso foi já visível no OE, com as medidas que cada um conseguiu…
Exato. Foi uma espécie de cabaz de Natal. E até houve casos caricatos como o que aconteceu com as reformas antecipadas, que conseguiram passar de janeiro para outubro, ou seja, antecipar três meses um parágrafo da futura legislação. Ou o caso da eletricidade, que aliás foi vendida primeiro com a diminuição do IVA da eletricidade, depois era o contador e depois era o contador só para determinada potência contratada. Isto a prazo paga-se. E os sindicatos pensam: se isto está tão razoável, por que não lutarem pelos seus direitos? Se tivesse de dizer duas medidas que ao longo da legislatura foram mais negativas, destacava a redução para as 35 horas o trabalho da função pública. Primeiro porque se anda sempre a dizer que tem de haver uma equiparação entre a atividade pública e a atividade privada e assistiu-se exatamente ao oposto; segundo porque ao diminuir as horas de trabalho só se pode compensar isso com o correspondente aumento de produtividade e como isso não acontece tem de se aumentar o volume da função pública. A segunda medida foi, no meu entender, demagógica e para responder a um setor que não é propriamente aquele que está em piores condições – a diminuição do IVA na restauração de 23% para 13% sem que tenha havido em alternativa a diminuição do preço da energia, ao menos de 23% para 13%. Porque eu não sou obrigado a ir um restaurante, mas consumir energia é inevitável. Além disso, a redução do IVA na restauração não se repercutiu nos preços. Quando aumenta o IVA repercute-se nos preços, quando diminui já não, com a agravante que é socialmente injusto. E vivendo em grandes cidades até se pode beneficiar, mas vivendo numa aldeia no Alentejo ou em Trás-os-Montes não tenho restaurantes para beneficiar disso.
O setor prometeu, na altura, aumentar os postos de trabalho…
E fez isso, mas por causa do aumento da procura, e ainda bem. Mas no caso dos sindicatos e voltando ao congelamento das carreiras, pode-se aguentar durante três anos, mas é impossível aguentar durante 10 anos. Se há o congelamento das carreiras profissionais por dez anos é todo o sistema que entrou em rutura porque dez anos com as carreiras congeladas primeiro porque não se sabe como é que se vai recuperar, segundo diminuiu brutalmente a ideia de meritocracia porque 10 anos sem se fazer nada defende os medíocres, não defende os melhores. Hoje em dia, a administração pública não premeia o mérito, quando premeia é por força daquele grupo cooperativo, desde juízes a professores, ou seja, aqueles que têm mais poder mediático e social. E esta questão dos professores, o que estão a defender é quase promoções mecânicas. Uma coisa são promoções por antiguidade, outras são promoções por mérito. E um estado que congela tudo por 10 anos está a condenar o Estado – aquilo que notamos é um Estado descapitalizado em termos humanos e em termos de qualificações. Os melhores já saíram porque ou já se reformaram ou foram para outros sítios. E essas pessoas estão a ser substituídas por pessoas partidárias e sem experiência. A administração central está absolutamente abandonada, as direções gerais não contam nada e nem sequer têm dinheiro para papel higiénico. E o problema não é serem jovens. Também fui secretário de Estado aos 30 anos no governo de Sá Carneiro, mas já assisti a casos concretos de jovens recém-licenciados a darem ordens a um diretor geral no fim da sua carreira que teve uma subida a pulso. E estas greves também evidenciam isso, é um mal estar perante um problema quase insolúvel. Quanto à questão dos enfermeiros percebe-se a lógica do sindicato porque de facto estamos perante um labirinto sem saída. Segundo creio, há 50 milhões de euros para serem distribuídos pelos vencimentos dos funcionários públicos, mas o que tem de se saber é quanto é que seria necessário para transformar estruturalmente o aparelho do Estado e depois fazer um plano. 50 milhões é uma espécie de migalha, não é para resolver o problema.
E acaba por não contentar a Função Pública…
O que o governo resolveu fazer, pelo menos segundo o que li, foi aumentar as pessoas com salários mais baixos. E aqui surge outra vez a questão, no setor privado trabalha-se 40 horas, no setor público 35 horas e agora os que trabalham 35 horas com remunerações mais baixas e qualificações mais baixas estão 35 euros acima do salário mínimo. É claro que tenho sensibilidade para esta questão, mas concentrar os 50 milhões apenas para estes casos que não tem qualificações além das mínimas é afrontar o essencial. É preciso ter uma administração central que deixe de fazer outsourcings incestuosos de produção de leis, de pareceres porque o Estado está descapitalizado. Andam uns cogumelos de gabinetes, de consultores e de escritórios de advogados à volta do Estado português.
Mas ter um governo apoiado pelos partidos de esquerda impulsiona estes movimentos sindicais?
Claro e, em particular, o Partido Comunista, que tem mais peso sindical e que agora começara distanciar-se. Como isto não foi um casamento formal, foi mais uma união de facto informal, como se aproxima um teste novo, separam-se.
Ainda assim foi uma solução duradoura…
Quando esta solução se forjou eu estava muito cético. Tenho de reconhecer quer a habilidade do primeiro-ministro – que é de enaltecer e reconhecer, embora, por vezes com custos para o país – quer o modo como o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda deixaram de ser Partido Comunista e Bloco de Esquerda. Não estou a criticar, para o país até foi melhor assim. Mas aquilo que eles chamam de obsessão pelo défice se fosse com outro governo teria sido o fim do mundo, agora criticam mas deixam passar.
É uma solução que se poderá repetir nas próximas eleições?
Depende dos resultados eleitorais. Creio que o Partido Socialista ganhará folgadamente, embora sem maioria absoluta. E ainda que a maioria absoluta possa estar ao seu alcance, sobretudo pela circunstância do método de Hondt favorecer o partido maior quando a distância para o segundo é maior. E aí é preciso saber se o PSD se afasta ou não. Acho que vai depender sobretudo dos resultados do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista.
Há o risco de pagarem isso na fatura nas eleições pelo facto de terem dado apoio ao PS?
O caso das eleições municipais já foi resultado disso. O Partido Comunista perdeu autarquias icónicas. Acho que provavelmente, sendo um governo minoritário, só um dos dois partidos à esquerda do PS é que vai ser necessário para uma coligação. E aí até poderá ser uma coligação formal.
O Bloco de Esquerda quererá pastas…
Claro, como partido está no seu direito.
E como vê o conflito interno no PSD?
Em Rui Rio reconheço duas coisas. Uma positiva, que é ser o único político em Portugal que procura imprimir uma ideia que vai além das próximas eleições. Tem uma visão mais longe, mas falar da natalidade, da produtividade e das questões demográficas não abre nenhum telejornal e por isso tem menos rendibilidade eleitoral. A parte negativa é que não consegue passar uma mensagem que tenha robustez partidária e eleitoral. Os partidos quando estão no poder estão mais unidos nas suas diferenças, mas quando estão no poder essas diferenças veem todas ao de cima.
E o que espera do novo partido de Santana Lopes?
É uma experiência nova em Portugal. É um partido que nasce e que se vai alimentar sobretudo das novas formas de comunicação, nomeadamente das redes sociais. Mas isso tem um problema que é um problema geracional, que se está a esbater mas, ainda assim, continuam a existir alguns infoexcluídos em Portugal. Acho que as pessoas devem trabalhar com paixão pelo que fazem. Santana Lopes é um homem apaixonado, podia ter uma vida muito mais descansada neste momento e, por isso, foi um ato corajoso, principalmente nesta altura em que não é fácil prever o que vai acontecer. E preenchendo uma zona do espetro político que não está coberta.
E pode desviar votos da direita…
A história de o PSD ser social-democrata é só de nome. A história de o CDS ser centrista e democrata cristão também, porque depois há zonas populares liberais que não estão cobertas. Por isso, para algumas pessoas, do ponto de vista ideológico, o partido de Santana Lopes pode ser uma alternativa.
Voltando à parte económica. Tem sido um dos maiores críticos de Tomás Correia. Como vê a vitória dele nas eleições da Mutualista?
Tomás Correia obteve 43,2%, mas é a primeira vez que está abaixo dos 50% e as outras duas listas somadas tiveram mais 15 pontos percentuais do que a lista vencedora. A coisa está terminada, mas continua a haver um conjunto de circunstâncias muito discutíveis do ponto de vista de organização e de procedimento eleitoral. Foi pena que do lado da oposição de Tomás Correia não tenha havido uma lista de unidade porque nessa altura teria perdido. Acontece que, nas eleições na Associação Mutualista Montepio, 97% dos votos expressos são por correspondência. O acompanhamento, a monitorização e a auditoria da contagem e da veracidade do voto por correspondência tem de ser muito bem apurada. Quando fui votar presencialmente o resultado eleitoral já estava feito. Eu fui por romantismo. E o que dizia o anterior código das mutualidades de 1990 e o que diz o novo código das mutualistas de agosto de 2018? Ambos dizem que é admissível em qualquer mutualidade o voto por correspondência, desde que haja garantias de conferir a autenticidade por via notarial equivalente das assinaturas dos votantes por correspondência. Mas nas eleições no Montepio isso nunca foi cumprido. Como é que são conferidas as assinaturas? Por similitude com a assinatura enquanto cliente da Caixa Económica Montepio Geral. Há aqui uma violação dos dados pessoais. Ninguém autorizou isso. E há outro aspeto curioso: é estranho que nestas eleições, que foram mais renhidas e também as mais decisivas, tenha havido menos 10 mil votos. Aqui só vejo uma hipótese: fecharam-se sucursais da Caixa Económica. Na primeira semana já uma parte significativa dos votos por correspondência estava determinado. A questão que agora se coloca é a idoneidade da equipa de Tomás Correia e espero que haja uma atuação das autoridades de supervisão como deve ser. Tomás Correia e outras pessoas têm alguns processos e essa investigação tem de ser feita pelas entidades competentes, mas a aferição de idoneidade é uma avaliação comportamental, prudencial, da autoridade de supervisão. A idoneidade não é dizer que foi condenado ou que vai ser condenado, é dizer se a análise comportamental e prudencial permite salvaguardar a fiabilidade da idoneidade da pessoa A, B ou C.
O que está à espera?
Está sujeito a não ter o aval. É um bom berbicacho que a autoridade do fundo de pensões tem de resolver. Se o supervisor fosse o Banco de Portugal, obviamente que não lhe dava a idoneidade porque está a ser acusado num processo do Banco de Portugal. Agora será assim tão diferente na ASF? Só por formalismo é que se pode dizer que satisfaz o critério de idoneidade.
Também criticou a entrada da Santa Casa no Montepio…
Felizmente contribuí, modestamente, para inverter totalmente o negócio. Inicialmente o investimento estava nos 200 milhões para ficar com 10%, o que significava que a Caixa Económica valia dois mil milhões, ou seja, mais do que o BPI e que o BCP. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa tem todo o direito de investir porque é uma instituição que tem milhões de euros de liquidez e não os vai pôr a apanhar sol. É natural que procure rentabilizá-los com segurança e com diversificação do risco. Mas pôr ali 200 milhões era, na minha opinião, a fundo perdido e um dia que a Associação Mutualista aumentasse o capital e a Santa Casa não acompanhasse os 10% passaria para 8%, 7%, etc. e sem qualquer peso verdadeiro na ação da Caixa Económica. Uma coisa é a Santa Casa ter ações de uma empresa cotada em bolsa e poder vendê-las para obter mais-valias ou dividendos, outra coisa é ter um investimento desta natureza, pondo em causa a prossecução dos fins estatutários para os mais carenciados e para os mais pobres e do ponto de vista da política financeira estava a pôr em causa a diversificação do risco. E tudo isto com o argumento de criar um banco de economia social? Isso é história da carochinha. O que é um banco de economia social? É ter pior uma análise de risco, é remunerar melhor a poupança? Digam-me o que é.
E em relação aos outros bancos?
Acho que melhorou. Portugal foi cobaia na história do Banif, depois com o BES. O sistema não está imune a riscos, longe disso, mas está mais consolidado. Deixou foi de haver banqueiros, agora há gestores bancários.
Foi um fim de uma era?
Sim e não foi só ao nível da administração. Tirando a Caixa Geral de Depósitos, não temos praticamente bancos portugueses. Estamos completamente entre a internacionalização da banca e a chinalização da economia e digo isso porque o investimento vem da China e de empresas públicas. O mundo de negócios é estranho e tenho de aceitar determinados pragmatismos, mas custa-me aceitar que tenham sido feitos negócios ao longo destes anos com um sistema bastante corrupto angolano, assim como me custa aceitar que a China esteja a tomar conta do país. Para mim houve demasiado entusiasmo quando o presidente chinês veio a Portugal. Suponha que vem Bolsonaro ou Trump. Goste-se ou não foram eleitos democraticamente e o que vamos assistir na rua vão ser manifestações da esquerda. Isso aconteceu com a vinda do presidente chinês? Só apareceram três ou quatro tibetanos que foram amordaçados. Há muita hipocrisia na política internacional. Percebo que até tenha de haver alguma hipocrisia, mas não abusem. Estamos numa situação que é quase politicamente incorreto aquilo que estou a dizer sobre a China. Mas tudo o que seja dizer mal da América e de Trump é politicamente correto.
O “politicamente correto” tem vindo a ganhar cada vez mais espaço?
Absolutamente. Começa a ser nauseante. Na linguagem, na formatação das ideias das pessoas e no novo lápis azul, por via da omissão ou da repetição, com que nós estamos confrontados. Mas a linguagem politicamente correta não é politicamente correta apenas em termos políticos. É também em termos religiosos e até futebolísticos. Se disser que gostei muito que Luka Modric tivesse sido o vencedor da Bola de Ouro, é politicamente incorreto porque tenho que dizer que o Ronaldo é que deveria ter sido ser o vencedor. ‘Onde está o patriotismo?’. Há uma espécie de polícia informe, impessoal, às vezes fascizante, dos costumes. Quando a Dilma Russef foi eleita criou-se ‘presidenta’, mas para quê? Então, vamos dizer estudantas, pacientas, gerentas?
Quando se fala tanto da igualdade de género…
Exatamente. Há quem diga, e até admito que sim, que tem uma lógica patriarcal e machista da sociedade, mas também há palavras que são femininas. Não temos a pessoa e o pessoo; a criança e o crianço. Entramos numa patetice completa. Por exemplo, esta coisa de se dizer ‘portugueses e portuguesas’, ‘todos e todas’, ‘alunos e alunas’. Não é um drama que as outras pessoas digam, mas eu não digo. Ninguém diz ‘caros presos e caras presas’ ou ‘desempregadas e desempregados’. Até devíamos sugerir ao PAN que diga a cobra e o cobro, o ouriço e a ouriça, o rato e a rata, o gato e a gata [risos]. Estou a brincar, mas esta coisa agora de vir uma organização falar sobre os provérbios com animais.
E é o que está a acontecer…
É um disparate completo. Já não sei se posso ir à Missa do Galo, comer línguas-de-gato. Mas isto é na linguagem. Mas o politicamente correto está incrustado no nosso dia-a-dia, mesmo sem nos apercebermos. Basta ouvir um noticiário e percebemos que existe em todos os âmbitos. Na economia, por exemplo. Crescimento zero ou negativo. O que é isto? Hoje, as empresas já não despedem, reestruturam. Hoje, os alunos já não são chumbados, são retidos. Já não se copia, faz-se copy paste. Se a guerra matar civis ouvimos tranquilos a jantar que foram efeitos colaterais. Já não se diz mentira, diz-se ‘inverdade’. Quando se diz morte medicamente assistida só falta o Beethoven a tocar. Qualquer dia, um anão é um cidadão verticalmente desfavorecido.
Como chegámos aqui?
O que tem o politicamente correto de mais perigoso? É moldar-nos. Estamos num cacifo e não podemos sair. Hoje em dia, as sociedades tendem a reforçar o individualismo, mas isto não é acompanhado do reforço da individualidade de cada um. Esta individualidade é açoitada pelo politicamente correto porque temos de nos inserir num grupo. Até o futebol está cheio disto. No fundo, aqueles discursos das conferências de imprensa são iguais a zero.
Pegando no futebol, o Benfica, à margem da botânica, é uma das suas maiores paixões…
Sim, são as minhas grandes paixões, além da minha família, que está em primeiro lugar.
O Benfica tem o poder de o tirar do sério?
Sim e ainda bem. Gosto muito de rir, de fazer rir e até de me rir dos outros. Gosto muito de observar. Se há coisa de que não me importo é de estar umas quantas horas no aeroporto à espera do avião. Aproveito para observar e, às vezes, até anoto. O Benfica permite-me expressar a alegria da vida. A alegria da vida também passa pelos excessos. A nossa memória, que é o nosso principal património, o que mais guarda são os excessos, os bons e os maus. Às vezes, até temos saudades dos maus, que com o tempo se transformam docemente em bons ou em neutros. E o Benfica é o meu companheiro de exaltação de alegrias e tristezas, em regime de monogamia absoluta.
Gostava de ver Jorge Jesus a voltar ao Benfica?
Dou-me bem com ele e é um bom treinador. Mas há um ponto que se coloca e que é quase uma regra estatística: nunca se deve voltar à casa onde se foi feliz.
A regra da sensatez…
No futebol, então, é absolutamente fundamental. Não sei o que vai acontecer e vejo muitas coisas positivas em Jorge Jesus um dia poder voltar ao Benfica porque é treinador empolgante e as equipas jogam com alma, com alegria e vontade. Até para o espetador é bonito e empolgante. Agora, uma eventual situação dessas tem os seus perigos, quer para o Benfica, quer para Jorge Jesus. Quando um treinador novo vem, mais tempo ou menos tempo, todos têm um estado de graça. Na política, também acontece. São os chamados 90 dias. Mesmo que tudo corra mal, as pessoas estão a adaptar-se. Mas vamos supor que o Jorge Jesus vem e tem o azar de perder um jogo porque o futebol é mesmo isto. Estou mesmo a ver o que vai acontecer nas bancadas porque ele se vier para o Benfica, um dia, não vai ter este estado de graça. Ele é que tem de conquistar isso e tem de ganhar uma série de jogos.
E os anticorpos? Ir para o Sporting não facilitou…
Não foi o Jorge Jesus que saiu do Benfica, foi o Benfica que o empurrou para fora. Depois, quando foi para o Sporting era o rei, mas aí já era tarde. Em segundo lugar, o Jorge Jesus quando foi treinador do Benfica foi o mais benfiquista de todos, apesar de ser sportinguista. Isto é de um grande profissional. Agora, claro que tem anticorpos. Na primeira época em que foi para o Sporting, meteu-se bastante com o Rui Vitória e com o Benfica. Usou linguagem que não devia ter usado para falar da sua anterior entidade patronal, onde até foi feliz. Mas também foi isto que permitiu que o Benfica, que estava de rastos, se unisse. Jorge Jesus foi a boia de salvação.
Costuma ir muito aos jogos do Benfica?
Vou, tenho lugar cativo e a minha mulher pede-me sempre para ir ver os jogos ao Estádio da Luz. Cheguei a ir com a minha filha e estar na bancada central, nessa altura podia-se ir ao futebol com uma menina. Agora não. Estes programas de televisão agora instigam o ódio. Repetem as imagens cem vezes por causa de uma falta que não se consegue determinar se é ou não. E andamos horas e horas nisto. E está a fazer muito mal ao futebol. Naquele tempo, havia uma rivalidade duríssima, mas saudável. Agora, já não há nada disso.
Sempre fez questão de ir?
Sim, mas agora só vou aos jogos que são em casa. Não vou aos outros porque já não tenho idade para isso. Em casa estou rodeado de televisões e fico nervosíssimo. Sou uma pessoa calma, mas até digo impropérios, o que também não é habitual em mim. Vou ao estádio com vários amigos, dizemos um disparate e gritamos e há mais libertação de energias. Mas pior do que ver um jogo pela televisão é ouvir um relato na rádio.
Cria ansiedade…
A bola está no meio campo, mas parece que já é uma jogada de perigo. Estou sempre em sobressalto. Nunca sei [risos]. É mesmo impróprio para cardíacos e ainda por cima eu tive um problema há três anos. Tive um enfarte. E foi no dia em que o Benfica perdeu 3-0 com o Sporting em casa, no tempo do Rui Vitória com o Jorge Jesus. Mas não foi por causa do Benfica. Não fui ao jogo, fui ao hospital.
Fala da importância da memória e diz que é a nossa maior riqueza. Quais são as suas joias da coroa?
Vergílio Ferreira dizia que o importante não é o que acontece, mas o que acontece em nós desse acontecer. Há coisas que, para muitos, não dizem nada e, para outros, são importantíssimas. Às vezes, nas pequenas coisas está o que fica incrustado na nossa memória. As grandes coisas têm fotografias, alguém pode falar delas. Depois há as pequenas coisas que estão para lá do tempo. Os gregos dividiam o tempo no físico e no espiritual. O Chronos e o Kairós. A minha memória é do tempo espiritual, não é do cronológico. Às vezes, no dia-a-dia, parece que o tempo custa a passar e há quem diga que vai ‘matar o tempo’. E isso é o que não quero. Eu quero é agarrar o tempo.
À medida que o tempo vai passando, vai-se tornado mais nostálgico?
Não. Vou-me tornando mais amante da minha vida. Gosto muito de viver. Foi a maior e a única prenda que os meus pais me deram. Foi terem-me dado vida. Tenho-lhes uma gratidão infinita. Não tenho muito medo de morrer, mas tenho muita pena. Eu sou católico e, portanto, tenho alguma esperança na vida para além da morte. Alimento-me da esperança que, ao mesmo tempo, é dúvida, porque só se pode ter fé existindo dúvida. De outro modo, não é fé, é crendice.
Já disse que o maior medo é não conseguir despedir-se…
Sim, disso tenho medo porque o que mais temo é morrer sozinho. Gostaria de morrer com a minha família, despedir-me deles. Acho que morreria num grande sossego.
Ao longo da vida, todos nós temos de nos despedir de pessoas ou de coisas. Houve despedidas que tenham sido particularmente mais marcantes?
Sim, desde logo, a despedida do meu pai e da minha mãe, porque os vi morrer. Estava ao pé deles no momento do último suspiro e isso é uma imagem que nunca sai. Foi com uma diferença de 20 anos. A minha mãe primeiro, o meu pai há três anos, e foi a maneira de perceber o fio que nos liga à vida. Mas, se me perguntarem se preferia que não tivesse sido assim, digo que ainda bem que foi assim porque acho que eles quereriam que estivesse perto. Além disso, percebi que a morte pode ter esse caráter de pacificação, permite entender o lado de evolução natural. Foi uma maneira de recear menos esse momento. Mas mais difícil do que a questão da morte é a questão da velhice, no sentido de consciência da finitude. Uma criança não tem essa consciência, um jovem ainda não pensa nisso e nós todos os dias pensamos. Fiz 70 anos este ano e simbolicamente é uma mudança. Todos os dias acordo a pensar nisso. Consigo combater, mas acordo sempre com a mesma ideia terrível. Vou, por exemplo, comprar um livro e pergunto-me se ainda valerá a pena e se viverei para isso. Consigo combater e ganhar essa batalha, mas é terrível. Por exemplo, vou tomar uma decisão e penso ‘já não vale a pena’. Tenho sempre este despertador. Mas a noção de finitude para mim não é para desistir. Temos de lutar. Como é que me defendo? Sou muito eclético, como disse. Gosto de tudo, o que gosto menos até é de economia porque era a minha profissão. Tenho mais livros de botânica do que de economia. Ando, por exemplo, a estudar italiano. Já traduzi dois livros italianos e estou a escrever um livro em italiano. Estou naquela fase em que faço coisas, mas não porque têm utilidade.
É porque lhe dão prazer…
Faço porque me dá prazer. A grande vantagem da velhice é que determino mais. Quando eu era profissional tinha as coisas para fazer. Agora, só estou com as pessoas com quem gosto, não almoço para fazer fretes, não vou eventos sociais que não me dizem nada e até me irritam e antes era obrigado. Faço o que quero, levanto-me às 6h00 porque é à hora que eu gosto. Sou eu que determino e isso é um ato de liberdade. A velhice para mim tem sido uma afirmação de liberdade ou de libertação até. Como dizia um filósofo francês: ‘Ser livre é depender do que se gosta’.
Sempre acreditou em Deus?
Sou muito heterodoxo. A minha relação com Deus é direta, ou tenta ser. Como dizia Teresa de Calcutá, ‘rezar não é falar com Deus, é tentar que Deus fale connosco’. Rezo em silêncio muitas vezes. Quando rezo uma oração é raro ela entrar dentro de mim porque é mecânica. Por isso, rezo muito em silêncio. Deus, para mim, é intimidade absoluta. Com qualquer pessoa tenho tabus. Tenho com amigos, comigo, com a minha mulher, com as minhas filhas, tinha com os meus pais. É natural, todos somos assim. Quando me liberto totalmente deles é quando estou com Deus. Eu procuro transmitir a minha pobreza essencial, despir todas as circunstâncias e todos os disfarces. Só encontro a minha autenticidade quando acho que falei com Deus.
Nunca teve dúvidas?
Acreditei sempre. Eu e os meus irmãos tivemos uma educação cristã. Não sou beato, longe disso. Sou muito heterodoxo. Uma das coisas que mais me custam na Igreja é ver que alguns dos seus elementos clericais são piores do que eu. Gosto de ter o apoio de pessoas que são melhores do que eu. Isso é que me dá perspetivas de me valorizar. E depois, como dizia Pascal, acreditar em Deus é impossível, mas não acreditar é absurdo. Ou seja, esta passagem só faz sentido se houver alguma coisa que me transcenda. Acreditar é difícil, primeiro porque está fora de moda e politicamente incorreto, segundo porque, para acreditar, estamos nas trevas, não estamos na luz. Estamos nas trevas porque não temos capacidade para entender o que é transcendental. Não temos linguagem e, portanto, tem de ser um ato de fé. Muitas vezes, caio, suplico, levanto-me, duvido, vergasto-me, avanço. Tenho todas essas atitudes na minha relação com Deus.
Implica que tenha de ser mais exigente consigo?
Sim. Esse para mim é o ponto fundamental. Ao longo da minha vida tenho tido várias barreiras: a profissional, a familiar e até a ética e a moral. Tenho uma moral cristã, mas não a posso impor ao outro. Posso impor a ética profissional, por exemplo. Mas a regra moral é um travão adicional.
A ideia do pecado é uma ideia pesada?
É pesada, mas também é purificadora. E mesmo na Igreja acontece muita coisa. A Igreja é feita de homens, de pecados. Deus perdoa os pecadores, o que não perdoa é os pecados. A questão não está no pecador. Já dizia Oscar Wilde que a diferença entre o santo e o pecador é que o santo só tem passado e o pecador só tem futuro [risos]. A ideia do pecado tem de ser vista de uma maneira construtiva e não castradora. A ideia do pecado é a ideia de exemplaridade.
Mas a Igreja muita vez não passa isso…
Cada vez menos. Eu nasci em 1948 e fiz a catequese no pós-guerra, de grande penúria. Quando conto às minhas netas, elas ficam parvas por perceberem como é que se vivia. E eu até não era dos mais pobres. Mas a tradição do mal e do bem era absolutamente brutal. Até aquela ideia de que as pessoas tinham de se confessar todas as semanas. Uma vez confessei-me e passada meia hora fui confessar-me outra vez. Tinha 11 ou 12 anos e tinha discutido com um amigo. Achei que era um pecado. A ideia do purgatório e do inferno deixa alguma marca. Claro que me libertei dessa lógica atrofiada. Mas a ideia de pecado vejo-a no sentido de maior exigência e tenho-me dado bem com isso. Para mim, Deus é a causa incausada. Também é um ato de gratidão. Senão fosse esta entidade, não estaria cá.
Mas isso vai contra o que a ciência explica…
No meu entender, não há um conflito insanável entre ciência e fé. As pessoas com fé devem perceber a importância da humanidade. As pessoas da ciência não devem considerar as questões religiosas uma charlatanice. De facto, a nossa linguagem e compreensão são limitadas. Compreendo melhor os agnósticos. Ser ateu é uma atitude profundamente religiosa.
Começámos esta conversa a comentar o facto de estar rodeado de mulheres desde sempre. Tem duas filhas, quatro netas…
Em primeiro lugar, eu e a minha mulher somos casados há 47 anos, mais seis de namoro. Somos da mesma terra e viemos os dois para a faculdade. Eu vim mais cedo, fiz três anos de tropa e casámos a meio da tropa. Ela ficou grávida e não havia ecografias. Não sabíamos o sexo do bebé. E queríamos uma menina. Da segunda vez também. Eu acho que as mulheres têm uma perceção do envolvimento que nós somos incapazes de alcançar. Posso estar a ser injusto, mas se tivesse tido filhos ou netos não teria sido a mesma coisa. Primeiro, já não sei contar histórias para rapazes. Tinha de mudar de kit [risos]. Para mim, o papel fundamental é o da mulher mãe. Como Deus não teve tempo para fazer tudo, inventou as mães. Depois, há os aspetos que gosto, acho piada aos vestidinhos. Só tenho irmãos e o meu pai dizia que tinha pena de não ter tido uma filha.
Partilhou agora uma memória do seu pai. Não é de Lisboa. É de Ílhavo. Como foi afastar-se da família?
Eu vim em 1965 e tinha 17 anos. Vim sozinho. Só havia Economia no Porto ou em Lisboa e, apesar de ser mais longe, escolhi Lisboa. Não foi fácil. Miúdo, não havia telemóveis, aliás, não havia telefone em casa sequer. Quando queria telefonar tinha de ir a uma estação do correio. Eu escrevia todos os dias à minha mãe e ela a mim. Todos os dias recebia a minha cartinha. Ainda tenho essas cartas todas. Hoje já ninguém manuscreve. Vim para um quarto alugado de uma senhora viúva. Depois, quando é que eu ia a Ílhavo? Só nas férias.
Era doloroso passar tanto tempo sem os ver?
Sim, eram dois meses e meio fora. Era como se fosse para o navio bacalhoeiro. Ao passo que agora temos um iPad e podemos vê-los. Mas aquilo na altura era tão diferente. Os comboios demoravam cinco horas, eram caros. Carros não havia. O único carro que havia na faculdade era do Pedro Ferraz da Costa. Mas era tudo difícil. Tomar banho era duas vezes por semana, às quartas e sábados. Não havia duche, havia banheira. Fotocópias não havia. Queríamos ler um livro que não podíamos comprar e lá íamos à biblioteca. Não havia nada.
Guarda muitas amizades dessa altura?
Guardo. Os meus amigos principais são dessa altura. Todos. Uma amizade para a vida. Encontramo-nos muitas vezes. É uma amizade muito saudável porque é completamente desinteressada. Já lá vão cinquenta e três anos que entrei na faculdade. Bons tempos.
Disse numa entrevista que é muito desprendido materialmente. Isto é uma escolha ou uma característica?
Tem evoluído com a minha idade. Tenho espírito de colecionista. Coleciono ampulhetas há 40 e tal anos. Tenho centenas delas. Livros também. E canetas – tenho centenas, desde o século XIX, e todas elas escrevem. Livro e caneta para mim é o meu mundo. Hoje não quero nada, a não ser o que é importante para a minha vida: saúde e o suficiente para fazer as minhas viagens. Conheço 80 países e viajei muito com as minhas filhas, felizmente. Não havia internet, estudava muito bem os sítios. Mas qualquer material que tenha a mais é um fator de pressão e stress para mim. É uma aflição. Por exemplo, agora no Natal não quero nada. Entre nós não damos nada.
Muitas pessoas dizem isso e acabam sempre por dar…
Não entro nisso. O Natal transformou-se numa coisa absolutamente terrível. Tenho o Natal do pós-guerra. Não havia nada e se os nossos pais nos dessem um chapeuzinho de chocolate era um Natal maravilhoso. E é desses Natais que tenho saudades. Há uns dias, fui à Baixa e tive de parar numa Igreja para sentir o espírito. Até ao dia 24 é o apogeu das compras, depois é o apogeu dos monos [risos]. É uma coisa terrível. As crianças recebem e no fim ligam à coisa mais simples. No dia de Natal estou a celebrar a vida e não quero stress.