Manuel S. Fonseca. “Os testes provam que há um elemento terapêutico no uso do palavrão”

Manuel S. Fonseca. “Os testes provam que há um elemento terapêutico no uso do palavrão”


Este texto contém expressões que alguns podem considerar ofensivas, mas saiba que são por amor a essa capacidade poética de criar mundos novos com a língua


Cresceu em Luanda, foi militante do MPLA, formou-se em Filosofia, fez programação de cinema e foi crítico antes de entrar na televisão, primeiro a programar filmes na RTP2 e depois na SIC, onde esteve desde o lançamento da estação até 2005, quando deixou o cargo de diretor de programas. Hoje é editor de livros na Guerra & Paz e publicou agora “O Pequeno Livro dos Grandes Insultos”, pretexto para esta conversa

Quando lhe surgiu esta ideia de escrever “O Pequeno Livro dos Grandes Insultos”?

É um projeto de 2017, há um ano começámos a pensar na possibilidade. Temos feito vários dicionários na editora e julgo que a ideia surgiu quando estudámos a hipótese de criar um dicionário de calão – no qual estamos a trabalhar e que será publicado no próximo ano. E nessa altura surgiu-me a ideia de isolar uma área que nunca vi tratada de uma forma minimamente sistemática que é a área dos grandes insultos da língua portuguesa. O palavrão, aquilo que é mais chulo, mais rústico, mais obsceno, aquilo a que chamo no livro a última fronteira. O ponto em que a linguagem está prestes a terminar e se está quase pronto a iniciar a matança. Esse limite tem um valor, essas expressões têm uma força afetiva enorme e nunca foram isoladas num só livro na língua portuguesa. Os dicionários contemplam alguns desses termos, mas não contemplam as expressões. A minha ideia foi fazer justiça à importância que essas palavras têm na nossa vida, criando uma peça humorística e de grande entretenimento.

Valia a pena recuperar também historicamente a forma como os insultos foram evoluindo?

Já é um trabalho que não sou capaz de fazer. Não sou linguista, sou editor, tenho formação de Filosofia. Tenho a certeza que vale a pena fazer esse trabalho de ir à procura das raízes etimológicas dos termos, mas está completamente fora dos meus propósitos neste livro. Pela sua própria natureza, muitos destes termos aparecem com a referência “de origem obscura” e valia a pena que alguém fizesse esse trabalho. Há coisas preciosas, por exemplo, o aparecimento de certos termos em livros de linhagem, na poesia erótica ou satírica.

Esse dicionário de calão de que falou, pode falar um pouco mais dele?

É um dicionário mais académico que envolve professores universitários e foi aberto à participação popular. 

Este livro pretende “apanhar o insulto descalço e em ato, num convívio ameno”, explica no livro. É uma afirmação de falta de pretensão?

Decididamente, se algum objetivo este livro tem, é afetivo e íntimo, não é um objetivo académico. Nos estudos feitos pelos neurobiólogos, mapeando o nosso cérebro, os palavrões não estão localizados nos centros de linguagem, estão localizados naquilo a que chamam centros afetivos. De modo que, quando, por qualquer acidente, um ser humano perde a faculdade de utilizar a linguagem, não perde necessariamente a capacidade de utilizar os palavrões, porque os palavrões não são linguagem, não são comunicação. E pretendia que o meu trabalho se inserisse nessa lógica afetiva, entendendo-se o palavrão como fator simultaneamente catártico, terapêutico e de reforço relacional entre amigos e cúmplices. 

Este é o seu segundo pequeno livro em três anos, depois do “Pequeno Dicionário Caluanda”. As suas contribuições nunca pretendem ser obras definitivas nem pretensiosas, são coisas leves, com humor.

Tem a ver com o que nós somos. Fiz Filosofia na faculdade, mas acabei por não seguir filosofia. Um amigo meu na altura, um padre beneditino, aconselhou-me vivamente a que não fizesse vida académica porque, como ele a via e conhecia, era uma vida mais drástica e redutora que a de um monge, e ele conhecia bem a do monge. Acabei por ir para a Cinemateca Portuguesa, onde trabalhei com o João Bénard da Costa. Mesmo aí, não me converti naquele tipo de cinéfilo que se fecha numa área. A minha vida tem sido essa, tocar em pontos diferentes. Vivi em Angola um bocadinho, vivi em Portugal um bocadinho, estive em Filosofia um bocadinho, estive no cinema um bocadinho e estive na televisão mais outro bocadinho. Sou uma pessoa que contactou com muitos mundos sem pertencer verdadeiramente a nenhum. 

É um epicurista?

Isso sim [risos]. A minha vontade de desdramatizar situações e de tentar vivê-las a rir, se for possível, é uma preocupação da minha vida. Acho que o tempo de épater les bourgeois já passou à história e este livro, se alguma coisa pretende, não é ofender, mas fazer-nos rir com um tema que anda ali paredes-meias com o tabu.

Pratica o insulto?

As minhas utilizações do insulto são afetivas, com os amigos. Não consigo atingir outro ser humano com um insulto, prefiro discutir, racionalizar.

Tem algum insulto favorito?

[Gargalhada] O meu barbeiro de Luanda, da Vila Alice dos anos coloniais, era uma personagem riquíssima e tinha uma expressão que dizia sempre e nunca mais esqueci: “Quem não sabe foder, até os colhões atrapalham.” Acho que é uma frase de grande nível…

E que está no livro.

É uma homenagem que tinha de lhe fazer. E havia outra lengalenga do bairro, violentíssima, que não prima pela qualidade estética, mas que é irresistível: “Cona, cona, que não ganhas para a dona, mas hás de te foder que hás de ganhar para comer.” São duas das minhas expressões favoritas na utilização do palavrão.

Escreve no livro: “O insulto faz parte do ritual do grupo e é um vínculo que reforça a intimidade e a partilha entre amigos.”

Nós só começamos a ser verdadeiramente amigos de alguém quando somos capazes de dizer palavrões juntos. Quando conseguimos tratar o outro a partir do insulto, o grau de confiança é da ordem da fraternidade. Dizer a alguém “ó meu filho da puta, gosto imenso de ti”.

Porque o insulto perde a dimensão agressiva.

É uma expressão afetiva muito forte.

Um insulto no momento certo pode ser melhor que uma sessão de psicanálise?

Uma coisa é certa: quando sentimos dores, uma humilhação forte ou sentimos as nossas expetativas defraudadas, dizer uns bons palavrões é terapêutico e resolve-nos a vida. Está estudado, as experiências mais recentes colocaram pessoas em situações extremas como pôr a mão dentro de água gelada e aguentar o máximo de tempo. A quem foi permitido dizer palavrões suportou mais tempo. Os testes provam que há um elemento terapêutico no uso do palavrão.

Como escreve no livro, o palavrão vem do mesmo sítio de onde vem o “amo-te”.

[Risos] Eu tento fazer na parte final do livro uma espécie de declaração de amor ao palavrão. Há uma riqueza popular, uma prodigiosa imaginação à volta da língua que se verifica tanto mais quanto mais nos aproximamos dessas zonas de tabu do uso do palavrão. A capacidade de criar metáforas, como o “azar do caralho”, onde é preciso uma certa criatividade, ou “isso é lá para casa do caralho mais velho” – são expressões que mostram criatividade e uma utilização poética da língua que, do meu ponto de vista, merecem a nossa declaração de amor. Acho que a língua vem daí, do prazer que temos em poder gerar, na associação de palavras, mundos novos – isso é poesia.

Em Portugal ainda se insulta muito?

Acho que se insulta bastante. Na apresentação do livro, o Fernando Venâncio, linguista, professor em Amesterdão, afirmou que na Holanda já não há palavrões porque o palavrão normalizou-se. Acho que, em português, as novas gerações dizem hoje coisas em público que a minha geração não dizia. Nesse sentido, há uma normalização cada vez maior. Ouvem-se mais insultos, mas estes já são utilizados e ditos menos como palavrões e mais como muletas da língua corrente.

Perdeu-se a carga negativa das palavras…

Exatamente, deixou de ter essa carga ofensiva, destrutiva.

Isso não é um perigo, se não usamos o insulto para descarregar alguma tensão e evitar partir para a agressão?

Estou certo que sim. Temos sempre a tendência de gostar mais do mundo em que fomos criados, mas acho que havia esse sabor do proibido, o gosto de dizer uma palavra que ninguém podia dizer. Hoje, no autocarro, no metro, numa conversa, ouvimos os palavrões no mesmo nível da palavra pão ou da palavra sol. Faz um bocadinho de impressão porque essa velha hierarquia é a hierarquia em que fui criado e pela qual tenho uma certa nostalgia. No entanto, a normalização existe e é imparável.

Quem melhor insulta em Portugal nos filmes e nos livros?

[Risos] Os filmes portugueses insultam com algum vigor, talvez até melhor do que os livros. Na literatura portuguesa, existe, mas não com a força que tem nos filmes. A palavra escrita e a palavra oral têm dimensões diferentes. Lembro-me que no filme “Adão e Eva”, a Maria de Medeiros e o Joaquim de Almeida tinham uma grande cena de sedução. A Maria de Medeiros está encostada a uma porta e fecha essa cena de amor com um “vai à merda” que, dito como ela o diz, tem uma carga sedutora magnífica. Esse é um bom exemplo da utilização dramática do palavrão num filme.

O palavrão precisa dessa gradação de voz, pode dizer-se um insulto de forma carinhosa e de forma mais agressiva.

A escrita já não consegue da mesma forma reproduzir esse tipo de gradação. A voz humana tem um valor, uma capacidade de crispação ou de sedução que a escrita só obtém de outra forma e noutras circunstâncias. E é por isso que digo que o cinema português, a quem tantos males se imputam, acaba por ter uma certa capacidade de se exprimir bem nos filmes dos anos 1980 para cá – há pessoas que até acham que há palavrões a mais, quando nos americanos há os mesmos ou mais ainda.

O João César Monteiro, por exemplo, tinha uma capacidade enorme para recorrer ao vernáculo.

Há uma falha gravíssima no meu livro, devia ter a situação da Manuela de Freitas, julgo que é nas “Recordações da Casa Amarela” – nunca ouvi tanta coisa como no insulto que ela diz nessa cena. Embora o meu livro seja das utilizações populares, acho que essa situação erudita devia constar neste livro.

Mas acha que ele tinha essa capacidade?

O João tinha. É preciso que se note que o João César é o nosso Sade ou o nosso Lautréamont, uma pessoa altamente erudita com uma capacidade de absorver todos os materiais, inclusivamente estes materiais populares, popularíssimos, resgatando-os da baixeza para os fazer ascender a uma dimensão que se aproxima muitas vezes do sublime. Utiliza muito bem o popular, converte-o e dá-lhe uma outra dimensão estética e artística. Há nele, de facto, um gosto, um saber e uma utilização sofisticadíssima e requintada dos elementos.

Diz no livro: “O palavrão na boca popular advoga uma ideologia igualitária e põe cara e cu olhos nos olhos.” O insulto é uma arma de pontaria, parafraseando a canção do José Mário Branco?

A partir do momento em que o insulto funciona, os estatutos de classe são banidos, a prerrogativa de ascendência de uma certa classe sobre outra é pulverizada. É o momento que qualquer ricaço, digamos assim, teme: no meio do mercado, a peixeira, de repente, enervar-se. É um pelotão de fuzilamento que a partir daquele momento entra a funcionar. Ninguém se atreve a não sorrir no mercado do Bolhão, por exemplo. O insulto é uma arma terrível e perigosa, irresistível, a não ser que se recorra a alguma fora de repressão. É o que acontece nos regimes autoritários, em que se tenta manter a divisão de hierarquias e de classes gerida por poderes extralinguísticos. Não tenho dúvida que a linguagem introduz um elemento de aproximação e, sobretudo, vence essa barreira divisória e pulveriza-a.

Os regimes autoritários querem respeitinho.

Exatamente. Por isso, querem regular tudo, a língua também.

Para alguém que cresceu em Luanda e veio para Portugal nos anos 1970, notou essa diferença de linguagem entre Angola e Portugal?

Conheci Portugal em dois momentos: primeiro em 1973, durante alguns meses, e em 1977, data em que passei a viver cá. Em 1973, Lisboa já era uma cidade sofisticada, a cidade em si já estava fora do regime. As instituições, sim, ainda estavam travadas, mas a cidade, à noite, era outra coisa. Em 1977, então, era outra linguagem, havia outro país, a ideia do Portugal cinzento, nunca a vivi. Mas sim, a linguagem tropical tinha simultaneamente duas coisas: era mais inocente, menos pecaminosa do que a portuguesa, mas também mais aberta. Há uma canção do Aznavour que diz que a miséria é melhor ao sol.

Em termos de linguagem, sentiu essa diferença?

Sim, inclusivamente até na entoação. Num dos lançamentos do livro, uma das apresentações foi de um amigo que vive intensamente a cultura caluanda e trouxe os insultos caluandas para a apresentação, comparando-os com os portugueses. Nós, que vivemos aquele período colonial e interagimos com a população angolana, começámos a adotar muitas das expressões e do modo de viver angolano, e mesmo hoje, se falamos entre nós ao telefone, a forma de falar muda, passamos a falar à luandense, à musseque.

Este livro, para além do insulto em português, também procura insultos além-fronteiras e há até um capítulo que lhes é dedicado. Como foi o processo de recolha?

Fui à procura de ver o que lá fora se tinha feito sobre o assunto e tenho uma série de livros, franceses, espanhóis, ingleses. Nenhum tem esta formulação. São organizados de formas muito diferentes, nem sempre são dos grandes insultos, alguns são do tipo de ofensas que este tipo não contempla, como chamar a alguém cretino ou imbecil. E alguns são dicionários, coisa que também evitei, porque não tenho essa pretensão nem é esse o estilo em que me sinto confortável. Acabei por encontrar nesses livros expressões fabulosas e aproveitei para falar com amigos meus de vários países para me darem algumas dicas e informações. É uma pequena montra que vem desde as expressões usadas na produção culta de poetas romanos até aos tempos contemporâneos e à China, pré-Mao e pós-Mao. O que encontramos é essa extraordinária universalidade do insulto e a sua localização nas mesmas áreas – estamos a falar da anatomia humana, que dá geografia ao insulto, e estamos a falar das nossas funções metabólicas, decisivas para organizar o insulto em toda a parte do mundo. Se quisermos encontrar um epicentro para o terramoto que é o insulto, diria que os espanhóis se arriscam a ser esse epicentro, porque a violência do insulto espanhol, com a mistura entre as zonas anatómicas e o sagrado, é absolutamente explosiva. É notável a construção de alguns insultos espanhóis.

Quase sempre se insulta a mãe e menos o pai.

Há duas coisas que se visam sempre: no caso da mãe, a utilização imprópria de uma certa zona anatómica, característica muito marcada; no pai, há um elemento muito importante que é o de ofender a virilidade, diminuída pelo aspeto da infidelidade da mulher. Atingir a testa e a outra zona, de que já falei, da mãe são duas molas muito importantes nos insultos.

Fala no livro na diferença entre “a asneira boa” e a “sórdida verbalização de um murro”, a que chama indecência. Não tem esta última a capacidade de substituir a violência física?

Essa utilização brutal é que constitui a essência do insulto; o insulto é uma arma de agressão. É uma arma que visa destruir o inimigo. Além da forma selvagem e nobre, para matar; e quando não é utilizado como cumplicidade, há uma forma rasteira de utilização do insulto. Há pessoas cuja forma de usar o insulto não é criativa, saborosa. Para que o insulto tenha algum significado é preciso uma certa imaginação. E atiram o palavrão para o chão, no sentido em que nem estão a visar ninguém nem estão num convívio, é só uma utilização reles. Essa é a parte negativa.

Cita o cientista cognitivo Benjamin Bergen, que diz que “praguejar é muito parecido com fazer sexo”.

Há um elemento de prazer, mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Agora, os mecanismos envolvidos são semelhantes. Há determinado tipo de lengalengas com utilização abundante de palavrões que só se fazem pelo prazer quase infantil. Estamos aí numa fase polimórfica freudiana, em que estamos a usar o palavrão como expressão quase sexual e estamos a tirar prazer disso.

O insulto também é muitas vezes usado no jogo sexual.

Quando as duas coisas se juntam, acumular não é proibido, neste caso.

Quase sempre as conversas consigo acabam por ir dar a Angola. Tem memórias felizes e é por isso que não vai lá há tanto tempo, porque não se volta aos lugares onde se foi feliz?

Não acredito nisso, acho que se deve ir e pode voltar-se a ser feliz. No caso da Angola que vivi, ela parcialmente já não existe porque houve uma mudança substancial. Não só por ter desaparecido o regime colonial – eu vivi na Angola colonial e ainda no pós-independência, 1974 e 1975 foram, provavelmente, os dois anos mais felizes da minha vida, 1976 já não teve essa exaltação. Na memória preservo as coisas melhores, um volume e constância de coisas positivas, de uma infância vivida com prazer, ao ar livre, entre universos culturais muito diferentes, do musseque, da areia até ao alcatrão. No processo de independência fiquei sozinho, um jovem de 20 anos que não tinha ninguém a não ser outros amigos da mesma idade. Mas, como dizia o outro, se aos 20 anos não se é anarquista, aos 40 não se chega a chefe de bombeiros. Mas não tenho medo de voltar a Angola, não se tem proporcionado.

Cresceu no bairro do José Eduardo dos Santos, o Sambizanga?

Não cresci, foi o primeiro bairro onde vivi, dos cinco aos oito anos, o grande musseque de Luanda, que tem talvez as tradições mais nobres. Depois vivi na Vila Alice, um bairro entre musseques, um bairro de alcatrão, de classe média, interclassista e inter-rácico. Na minha rua ensaiavam os Ngoleiros do Ritmo. Havia uma banda mestiça, que eram Os Cunhas, que tocavam nas melhores boîtes de Luanda. Esse, sim, é o bairro da adolescência, dos anos mais formativos. Fiz a escola primária na missão de São Paulo, entre o Sambizanga e o Bairro Operário, uma missão de padres capuchinhos onde julgo que só havia mais um miúdo branco.

Não veio logo em 1974 para Portugal…

Não, os meus pais vieram, eu fiquei e fiz a independência.

Gostava de ter ficado em Angola?

Na altura podia ter tido a nacionalidade angolana, mas aconteceu que eu era um jovem maoista e entrei muito rapidamente em choque com o MPLA, que apoiava, ao qual pertenci mesmo no Lobito, nos anos de confronto com a UNITA. Mas quando chegou a independência já as minhas relações com o MPLA eram de grande distância, para não dizer de fortíssima oposição. Opúnhamo-nos a todos os outros, mas também ao MPLA.

Porquê?

Tem a ver com opções políticas e, para mim, a perceção, que se tornou evidente, do autoritarismo e da emergência de uma ditadura. Daí o abandono do maoismo muito rapidamente, também. A perceção de que éramos profundamente autoritários e capazes de gerar monstros, tive-a cedo na vida. Aquilo que aconteceu no Camboja não aconteceu por acaso, os jovens idealistas convertem-se rapidamente em gente perigosa se não houver antídotos. E o que me apercebi aos 20 anos foi que o que vinha era tão mau ou pior do que tinha vivido antes e recusara, a ditadura salazarista. Nunca mais voltei a pertencer a um partido político nem a fazer vida política porque a minha descrença tornou-se muito forte e, sobretudo, descrença em mim próprio por ter apoiado e pensado que aquilo que defendia era uma solução.

Como vê a transição de José Eduardo dos Santos para João Lourenço?

Há todos os sinais de que é uma evolução positiva. Este poder tenta estar de acordo com a realidade, procura perceber a realidade de Angola, que não pode viver só do petróleo e tem de criar outras infraestruturas, que as populações têm de ser devidamente servidas e o primeiro objetivo do poder é servir. Estes são os primeiros sinais. Se se concretizarão, longe de mim saber, que não acompanho a vida em Angola dia a dia.

No seu blogue Páginas Negras escreveu que nunca mais conseguiu ser de uma cidade como foi da cidade de São Paulo da Assunção de Luanda.

Os sabores da infância nunca mais voltam a recuperar-se daquela forma tão intensa, tão ingénua, de entrega tão forte. A cidade entregava-se a nós e nós entregávamo-nos à cidade. Provavelmente, a culpa é minha, Lisboa é uma cidade lindíssima, mas já não tenho essa capacidade de entrega tão imediata. Eu, os meus amigos e a cidade de Luanda éramos um corpo único, uma espécie de Centauro.

Chega a Lisboa e vai estudar Filosofia?

Sim, fui estudar Filosofia e mal acabei o curso entrei na Cinemateca Portuguesa, e faço o meu percurso a partir daí.

E como foi parar à Cinemateca?

Um professor meu de Filosofia gostava imenso dos meus textos e deu-os a ler ao João Bénard da Costa, e este quis falar comigo porque estava a preparar uma equipa para a Cinemateca, de que iria ser o novo diretor. A responsabilidade da programação era dele e queria pessoas jovens que pensassem e gostassem de cinema e sem muitos vícios. Dessa equipa fizeram parte o João Lopes, que já era crítico e escrevia nos jornais, e eu, que era completamente outsider. Dali sou convidado para escrever no “Expresso”, onde ainda escrevo, embora tivesse saído e voltado duas vezes. Nunca fui jornalista, embora tivesse feito entrevistas e reportagens, nunca estive na redação. Também nunca estive na redação da SIC, fiz programação na área da direção.

E como passa da Cinemateca e da crítica cinematográfica para a SIC?

Não passei diretamente. Antes passei pela RTP2, onde fiz a programação de cinema durante um ano, de que me orgulho bastante. Programei a exibição d’“O Império dos Sentidos”, do Nagisa Oshima, que criou uma polémica brutal, envolvendo o bispo de Braga. Essa programação correu tão bem, com resultados de audiência interessantes, que a Maria Elisa, que teria sido a primeira diretora de programas da SIC, convidou-me para dirigir a programação internacional – os filmes ainda tinham muita importância na programação de televisão na altura. Começo por aí e daí cheguei a diretor adjunto e, depois, a diretor de programas.

A televisão era uma linguagem que lhe interessava?

Eu fiz sempre programação. Na Cinemateca, o que fazia era programar ciclos e, na verdade, o que iria fazer na SIC era programar. Tanto que nem me relaciono muito com as áreas técnicas. A linguagem das séries estava a começar a desenvolver-se – comprei para a SIC as duas séries que o Steven Bochco escreveu depois d’“A Balada de Hill Street” -, era uma linguagem com marca mais autoral, que superava o puro entretenimento, e daí começo a descobrir que na televisão havia uma linguagem criativa e interessante. A partir daí passou a interessar-me e interessou-me também a parte da produção. A coisa mais importante que fiz foi a criação da SIC Filmes, com os telefilmes, numa tentativa de criar uma indústria que fosse capaz de gerar aquilo que acho fundamental e que sempre nos faltou para existir uma indústria audiovisual portuguesa: uma produção média de consumo que crie o imaginário e agregue à volta da língua portuguesa e da produção em português um grande público. Essa foi sempre a nossa falha. Só temos público para o consumo estrangeiro, com o peso do cinema americano, ou para consumir o hipersofisticado, e isso é pouco. Infelizmente, nunca consegui vencer essa barreira.

Ainda produziu muito…

Sim, ainda produzi 21 telefilmes.

Acaba por sair da televisão, despedido?

Sim, numa chicotada psicológica, como acontece com os treinadores de futebol. Nessa altura, em que as grelhas eram clássicas, em que se pretendia guiar o espetador minuto a minuto, procurando os públicos-alvo a cada hora, o diretor de programas estava dependente das audiências diárias. Tive momentos de grande êxito e de grandes fracassos. Houve um ano em que recuperei para a SIC a liderança em horário nobre, perdida durante algum tempo. Mas depois perdemos o nosso domínio como estação para a TVI e, nesse ano de 2005, saí. Foi uma saída feita com elegância, com simpatia, sem conflitos, ao fim de 13 anos.

Foi o “Big Brother” que mudou tudo.

Foi o “Big Brother” que inverteu a posição da SIC e da TVI.

E é verdade que foi o Emídio Rangel, diretor da SIC, que não quis comprar o programa?

Tínhamos uma relação preferencial com a Endemol, que foi quem trouxe o projeto para Portugal, e a direção de programas que recusou foi a do Emídio Rangel, da qual eu fazia parte.

E arrependeram-se?

Sim, mas é preciso perceber que houve fatores a ajudar. A SIC estava num processo de consolidação da sua imagem e marca, tinha entrado em bolsa, e havia da nossa parte uma leitura, porventura errada, de que queríamos dar dignidade à estação. Tínhamos travado os grandes combates populares para ganhar as audiências e naquele momento era preciso conferir-lhe uma dignidade institucional, uma carga e obrigações sociais de tal ordem que aquele produto nos parecia repugnante – era um passo que não devia ser dado em televisão. Não foi isso que aconteceu, toda a televisão o deu, e nós, por causa desse preconceito, por mais nobre que ele seja, perdemos essa carruagem.

Qual é a sua relação hoje com a televisão?

Distante. Televisão, no sentido tradicional, não vejo. Vejo jogos de futebol e vejo séries. Consumo as que quero, quando quero e não necessariamente na televisão. Não tenho 20 anos, tenho 65, mas significa que hoje, dos 16 aos 65 anos, a maioria vê televisão dessa maneira. Já não há, tirando alguns segmentos estacionados num certo modelo de vida. Os outros segmentos dinâmicos da sociedade não veem televisão. São os seus próprios programadores, escolhem aquilo que querem e não estão a ver televisão.

Por que razão, saído da televisão, decidiu ir para os livros?

Queria ter uma coisa própria, decidir o que fazer, como fazer, quando. Foi um sentimento de independência que me levou a criar uma editora. De todas as coisas de que gosto na vida, e gosto de muitas, o livro é o elemento cultural que mais me apaixona, mais até do que o cinema, apesar da minha ligação.

Qual era a sua visão editorial na altura em que criou a Guerra & Paz e agora?

O sítio onde aprendi a fazer livros foi na Cinemateca, com o João Bénard da Costa, por causa dos catálogos. Antes de criar a Guerra & Paz tive uma editora que se chamava Três Sinais e tinha como objetivo ser a mais pequena editora do mundo, publicando um livro por ano. Fiz, por exemplo, “As Meninas”, da Agustina Bessa-Luís e da Paula Rego, um livro absolutamente admirável, grande, capa em pano, feito com a Gráfica de Coimbra, 30 x 30 cm, com papéis e materiais que já não se faziam, uma impressão fabulosa. Esse foi o meu começo na edição. A passagem para a Guerra & Paz é a minha admissão de que não podia ser assim e tinha de contemplar todas as áreas de atividade do livro, desde James Joyce até Dan Brown, da Virginia Woolf a um livro sobre dietas. O livro é esse universo. Precisamos de não confundir o livro com a literatura. E na literatura há a alta literatura e a literatura popular, de entretenimento e de cordel. E o objetivo da Guerra & Paz é trabalhar a dimensão toda do livro.

Havia autores e livros que queria publicar?

Tenho um grande problema porque não sou um editor canónico. O editor canónico quer servir autores; eu sou uma figura complicada porque quero, ao mesmo tempo, escrever, e não sou muito de levar autores a tomar o pequeno-almoço. E isso é um problema para a editora. Prefiro sempre trabalhar obras. Tivemos sempre a ideia de inventar os nossos próprios livros, essa é uma das regras da editora. A outra palavra de ordem que temos é a de que é preciso virar a página. Sempre quisemos recuperar coisas. No caso do Jorge de Sena, recuperar as correspondências. Retrabalhar um autor como o Fernando Pessoa, reorganizando-lhe a obra por temas, assumindo uma intervenção na obra que não é tão inócua como a de organizar todos os poemas de Fernando Pessoa, todo o Álvaro de Campos, todo o Ricardo Reis, que é importante, mas não conquista mais nenhum leitor. Se calhar é melhor, de vez em quando, fazer tentativas, como temos feito, de juntar todos os textos sobre drogas, sejam de Pessoa, sejam dos heterónimos. Fizemos as drogas, fizemos as viagens, fizemos a sexualidade, e agora Jesus Cristo.

E também procuram novos escritores?

Gostávamos muito que nos acontecesse descobrir autores.

Também convidam pessoas a escrever?

Também, lançamos muitos desafios. A primeira que desafiei a escrever foi a Agustina e com um resultado fantástico. Demo-nos muito bem, tenho três ou quatro livros dela que são meus. Estabeleci com ela um modelo muito interessante de contrato. E era muito divertido trabalhar com ela.

E há a componente angolana?

Ultimamente, sim. Foi uma coisa que sempre quis fazer e estou interessado em fazê–lo de uma forma muito mais proativa. O leque é muito variado. Como espero que Angola se encontre como um país de várias dimensões, podemos ter os miúdos revus [jovens ativistas angolanos] que foram presos pelo José Eduardo dos Santos como podemos ter autores que são uma marca significativa da cultura angolana, como é o caso do Manuel Rui. E tivemos recentemente um livro que acho muito bonito, do ministro-conselheiro junto da CPLP, o Mário Augusto, que escreveu um livro sobre o papel da diplomacia angolana nos conflitos em África.

E com presença em Angola?

Estivemos presentes em Angola e estávamos a crescer, mas a quebra das divisas impediu a continuidade da nossa relação. Éramos distribuídos por uma empresa, a Jazz, e o nosso crescimento ao ano andava na ordem dos 20%. Ia a caminho dos 5% das nossas vendas. É uma pena que se tenha interrompido porque o ciclo era de aproximação, até a editores angolanos, com quem teria tido o maior gosto em trabalhar.