Pouco se sabe sobre a família Largent, que encomendou nos anos 1930 uma casa ao arquiteto modernista Richard Neutra, nascido em Viena no final do séc. xix e naturalizado americano nos anos 1920. Neutra fez a sua carreira na Califórnia, mas em São Francisco desenhou apenas cinco casas familiares. A Casa Largent, na zona de Twin Peaks, era uma delas. Era e vai voltar a ser.
A Comissão de Planeamento de São Francisco votou unanimemente na quinta-feira que Ross Johnston, o proprietário, terá agora de reconstruir uma réplica exata da casa, que deitou abaixo sem autorização.
De nada valeu ao advogado do proprietário defender que a casa já tinha sido parcialmente remodelada, alegar que o seu cliente adquirira a propriedade por 1,7 milhões de dólares (1,5 milhões de euros) para construir uma residência de três andares para a sua família de seis pessoas.
No fim, valeu a história. Não se pode andar assim a destruir as marcas arquitetónicas de uma cidade e sair impune. A decisão inédita da comissão diretiva de cinco pessoas tardou mais de um ano, mas não deixa marca para dúvidas: Johnston vai ter de fazer renascer a casa que existia no número 49 da Avenida Hopkins, onde por sua ordem restam agora apenas a garagem e as fundações.
Neutra nasceu numa abastada família judaica do império austro-húngaro, lutou na Grande Guerra, trabalhou com o arquiteto paisagista Gustav Amman (modernista) na Suíça e fez parte, brevemente, do estúdio de Erich Mendelsohn (expressionista) em Berlim, antes de emigrar para os Estados Unidos. Depois de colaborar por pouco tempo com Frank Lloyd Wright, aceitou o convite do seu amigo Rudolf Schindler e mudou-se para a Califórnia, onde desenvolveu toda a sua carreira.
Por alturas da construção da Casa Largent, em São Francisco, Neutra era já conhecido como um dos grandes nomes da arquitetura moderna, incluído na célebre exposição de arquitetura modernista de 1932 no MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova Iorque).
O interessante desta história é que Neutra teria entendido bem as circunstâncias de Johnston, a sua necessidade de construir uma casa maior para albergar uma família de seis pessoas. Ao contrário de muitos dos seus famosos colegas, que impunham a sua visão, Neutra desenhava em função do pretendido por quem o contratava. Muitas vezes surpreendia os clientes com longos questionários destinados a certificar-se de que a sua visão da arquitetura residencial (uma mistura entre arte, paisagem e conforto pragmático) não se sobrepunha aos desejos de quem teria de viver nas paredes por si desenhadas.
Johnston tinha uma autorização da câmara para remodelações que manteriam o primeiro andar do edifício intacto, mas foi mais além, demolindo grande parte da casa e pedindo uma licença de demolição retroativa dois meses depois, em conjunto com o plano de arquitetura de uma nova casa, que aumentaria o tamanho de 120 para 371 metros quadrados.
O incidente com a Casa Largent não é caso isolado em São Francisco, onde a especulação imobiliária e a falta de espaço para construir leva a verdadeiros atentados contra o património, feitos a pensar apenas no lucro.
“Estamos cansados de ver isto acontecer na cidade e estamos a estabelecer um limite”, afirmou Dennis Richards, comissário de Planeamento, citado pelo “San Francisco Chronicle”. “Podemos ter todas as regras do mundo mas, se não as impomos, as regras não valem nada”, acrescentou.
O advogado de Johnston garante que não se trata de um caso de especulação imobiliária, que a 49 Hopkins LLC, a empresa que adquiriu a propriedade em 2017, pertence apenas a Johnston e que a casa era para ele viver com a família – tal como o próprio, na curta declaração que fez perante a comissão.
Justin Zucker, o advogado, salientou ainda que a propriedade foi sofrendo alterações ao longo dos anos e que o plano aprovado em 2014 pelo antigo proprietário permitia a maior parte das alterações que o seu cliente pretendia introduzir. O que Johnston queria era que a câmara reconhecesse que já não havia muito da arquitetura de Neutra na Casa Largent, que as mudanças introduzidas em 1968, depois de um incêndio, e as remodelações dos anos 1980 e 1990 tinham desvirtuado a obra original, permitindo ir mais além. E pedia desculpa apenas por ter levado mais longe do que devia a demolição.
Aaron Peskin, que conseguiu aprovar uma legislação que prevê multas para demolições e condiciona a autorização prévia qualquer expansão que exceda em 10% a área da propriedade, sublinhou que “o voto unânime deve enviar uma mensagem de que o jogo acabou a qualquer um que esteja a jogar rápido e com laxismo”.
Ao contrário do que costuma acontecer nestas questões de réplicas, a decisão da Câmara de São Francisco de mandar reconstruir uma réplica da casa desenhada por Neutra não trouxe as habituais vozes que se levantam contra entre os historiadores arquitetónicos. Michael Buhler, diretor executivo da SF Heritage, preferiu referir ao mesmo jornal a importância da decisão para as lutas futuras na preservação da identidade histórica da cidade.
“A questão que se levanta é, mais uma vez, se uma pessoa pode demolir as edificações existentes com impunidade e depois ser recompensado”, sublinhou Buhler ao “San Francisco Chronicle”, referindo que se tivesse sido aprovado o pedido de Johnston, isso mostraria que as leis podiam continuar a ser ignoradas.