Prémio Pessoa 2018 para Miguel Bastos Araújo quase por arrastamento

Prémio Pessoa 2018 para Miguel Bastos Araújo quase por arrastamento


Em 2006, Miguel Bastos Araújo denunciava a «endogamia» nas universidades portuguesas, falando num imbróglio burocrático que o impediu de regressar a Portugal e dar aulas na Universidade de Lisboa   


Este país é amiúde um dos últimos a saber quando, lá fora, um dos seus é reconhecido como um gigante na sua área. E se no Brasil se fala no complexo do vira-lata de que sofre o seu povo, em Portugal foi Batista- Bastos quem detectou um fenómeno de triunfo dos anões, esses que, para não se sentirem tão baixos, vão ratando na casaca, tirando centímetros a quem ganhe uma altura superior aos demais. Há uma variação desta ideia já presente nos Evangelhos. É Marcos quem atribui a Jesus a seguinte frase: «Somente em sua própria terra, junto aos seus parentes e em sua própria casa, é que um profeta não é devidamente honrado.»

O cientista Miguel Bastos Araújo tornou-se ontem a primeira figura ligada à área do ambiente a ser distinguida pelo Prémio Pessoa. Nas suas 31 edições anteriores, também nunca um geógrafo  fora destacado pelo galardão do jornal Expresso, que honra anualmente uma «intervenção particularmente relevante e inovadora na vida artística, literária ou científica». Especialista em biogeografia na área da biodiversidade e alterações climáticas, Bastos Araújo investigador da Universidade de Évora e catedrático da Universidade de Copenhaga e do Imperial College de Londres, tem 49 anos e, como assinala o semanário, é um dos maiores especialistas mundiais em alterações climáticas e biodiversidade.

O cientista é o galardoado nesta 32.ª edição do prémio, que conta com o patrocínio da Caixa Geral de Depósitos, e tem o valor pecuniário de 60 mil euros. No fundo, o júri do Prémio Pessoa 2018 veio assinalar internamente (leia-se: reconhecer em Portugal o que se tornou evidente além fronteiras) o mérito científico e o prestígio que o trabalho de Miguel Bastos Araújo granjeou lá fora, sendo que o resultado da sua investigação lhe valeu, no mês passado, o Ernst Haeckel Prize, atribuído, de dois em dois anos, a um ecologista sénior pela Federação Ecológica Europeia. A cerimónia da entrega desse prémio terá lugar durante o 15º Congresso da organização, que decorrerá em Lisboa, em agosto de 2019. A Federação reúne 18 organizações ecológicas de 18 países e será, a partir de janeiro, presidida pela portuguesa Cristina Máguas.

Foi há 12 anos, numa publicação primeiro divulgada na rede interna da Oxford Portuguese Society, e também no Ciência Hoje e no portal Reformar a Educação Superior, que Bastos Araújo denunciou um concurso da Universidade de Lisboa, que o levou a concluir: «Não há plano tecnológico, estratégias de Lisboa, e protocolos com o MIT que resistam a uma burocracia cuidadosamente arquitectada para defender os interesses da mediocridade instalada».
Nesse texto, em que se referia à endogamia como «o processo que conduz à contratação de docentes da mesma instituição», lembrava como os concursos levados a cabo pela Universidade de Lisboa, «contrasta com os concursos nas melhores universidades do mundo», e, depois de explicar que se viu desqualificado no acesso à docência naquela instituição por falta de uma minuta que não se encontrava referida no anúncio do concurso, nem estava acessível em registo electrónico, Bastos Araújo acrescentava: «Infelizmente o exemplo que decorre da minha experiência com a Universidade de Lisboa (supostamente entre as melhores do País o que prova que ‘quem tem olho em terra de cegos…’) é apenas um entre muitos. Não deixa de ser sintomático que o País que gasta milhões de euros na formação avançada de jovens, nas melhores universidades do mundo, lhes feche depois a porta recorrendo aos pequenos artifícios da burocracia. Nos mais de doze anos que frequentei universidades e centros de investigação no estrangeiro conheci inúmeros Portugueses, financiados pela FCT, que, actualmente, possuem formações académicas e currículos científicos excelentes. Salvo raras excepções, a maioria não regressa a Portugal não porque não o deseje mas porque as portas do primeiro emprego estão cuidadosamente seladas por quem julga que o ‘direito’ ao trabalho é prerrogativa de quem trocou as oportunidades de formação oferecidas pela FCT pela proximidade aos pequenos centros de poder nas universidades Portuguesas».

Quanto à atribuição do Prémio Pessoa, mais do que uma verdadeira distinção, este parece vir salvar a honra de um país que só agora parece ter-se dado conta de que Bastos Araújo se perfila hoje como uma das figuras de maior relevo no diagnóstico dos desequílibrios que a acção humana tem provocado no planeta, tendo recebido importantes prémios internacionais, obtidos nos últimos cinco anos. Destacam-se o Ebbe Nielsen Prize (2013), o Wolfson Research Merit Award (2014), o King James I Award (2016) e o Ernst Haeckel Prize (2019).

O Expresso vinca que Bastos Araújo é um dos investigadores mais citados nos rankings das publicações académicas e um dos autores mais consagrados internacionalmente pelo trabalho desenvolvido sobre as alterações climáticas e o seu impacto na biodiversidade. Já o galardoado, numa primeira reacção a partir de Madrid, disse àquele jornal que encarava a distinção como sinal do reconhecimento da importância do estudo da biodiversidade «num momento em que existem movimentos de contra-ciclo que procuram prejudicar a agenda da conservação da biodiversidade». E acrescentou: «Sinto que não é um prémio só meu».

Na notícia veiculada pelo jornal do grupo Impresa, é destacada uma afirmação feita por Miguel Bastos Araújo numa entrevista ao El País quando foi anunciado que tinha recebido o Ernst Haeckel Prize: «Estamos a mudar o funcionamento elementar do planeta. O Homem é uma espécie de muito sucesso, que pode chegar a morrer do seu próprio êxito. Sobrevivemos a alterações climaticas, no passado. Atravessámos uma idade do gelo que era muito adversa e não possuíamos a tecnologia atual. Mas, uma coisa é sobreviver e outra é o mundo em que vamos viver no futuro e se ele corresponde ao que queremos. Caminhamos para um cenário em que vamos pagar um preço muito elevado pela adaptação e também de qualidade de vida».

Nascido em Bruxelas, em 1969, o cientista vive entre Évora, Madrid, Londres e Copenhaga. Tendo-se licenciado em 1994 em Geografia e Planeamento Regional (na Universidade Nova de Lisboa), em 1996 obteve o mestrado em Conservação, no University College, em Londres, onde completou também o doutoramento em Geografia, em 2000. É investigador coordenador no Museu Nacional de Ciências Naturais (parte do Conselho Superior de Investigação Científica em Madrid, Espanha), investigador coordenador convidado na Universidade de Évora, e Professor Catedrático convidado na Universidade de Copenhaga e no Imperial College de Londres.

Quanto ao júri da edição deste ano do Prémio Pessoa, foi uma vez mais presidido por Francisco Pinto Balsemão, secundado pela seguinte composição: Emídio Rui Vilar (vice-presidente); Ana Pinho; António Barreto; Clara Ferreira Alves; Diogo Lucena; Eduardo Souto de Moura; José Luís Porfírio; Maria Manuel Mota; Maria de Sousa; Pedro Norton; Rui Magalhães Baião; Rui Vieira Nery; Viriato Soromenho-Marques.

O semanário deixou claro que o trabalho do investigador no campo das alterações climáticas foi o elemento preponderante na atribuição do prémio e, no anúncio da sua atribuição, Balsemão disse que o trabalho do geógrafo «tem contribuído para reforçar as bases científicas da política de ambiente, em particular desenvolvendo mecanismos de gestão e de redução da incerteza, no sentido de permitir uma melhor protecção da biodiversidade no quadro de mudanças profundas introduzido pelas alterações climáticas em curso».

«Numa altura em que, no plano político, económico e cultural, a nível global, se erguem tantas vozes e forças poderosas, criando obstáculos ao contributo das ciências para o estudo e a busca de soluções para os problemas fundamentais da sobrevivência humana, nomeadamente no que respeita à crise do ambiente e das alterações climáticas, a atribuição do Prémio Pessoa 2018 a Miguel Bastos Araújo constitui um sinal claro de que o conhecimento, a ciência com consciência e as políticas públicas nela inspiradas, são indispensáveis para alimentar a esperança num futuro sustentável», refere a nota de imprensa sobre o Prémio Pessoa 2018. 

Na cerimónia de anúncio do prémio, que decorreu em Sintra, Balsemão referiu ainda que «além da autoria de uma vasta bibliografia científica de mais de duzentos títulos, que se encontram entre as publicações mais citadas na literatura académica das áreas mencionadas, Miguel Bastos Araújo tem-se distinguido também pelo contributo para a formação de novos investigadores e para o desenvolvimento de projectos científicos de grande relevo». Outro aspecto mencionado, é criação da Cátedra de Biodiversidade Rui Nabeiro, na Universidade de Évora, sob a direcção de Miguel Bastos Araújo. «Um caso raro de mecenato científico em Portugal», destacou o presidente do grupo Impresa.