Há anos que João de Deus era uma figura incontornável na vida social, política e – principalmente – espiritual brasileira. Tornou-se tão conhecido que a sua reputação extravasou as fronteiras do Brasil, chegando aos Estados Unidos e Europa. Na sua propriedade, Casa Dom Inácio de Loyola, eram recebidas para tratamento espiritual e médico cerca de cinco mil pessoas por semana, desde pessoas comuns até políticos e famosos. Os antigos presidentes Dilma Rousseff e Lula da Silva eram presenças comuns, não esquecendo a apresentadora milionária Oprah Winfrey e a modelo Naomi Campbell. A vida de João de Deus sofreu uma reviravolta de 180 graus quando o programa “Conversa com Bial” denunciou, no passado dia 7, que o médium terá alegadamente abusado de dez mulheres. No programa, apenas uma das mulheres, a holandesa Zahira Leeneke Maus, decidiu dar a cara, mas uma investigação do jornal “O Globo” mostrou que o número de vítimas era maior: 13. Mas não. Nos dias seguintes chegaram mais denúncias e agora, segundo o Ministério Público de Abadiânia, do estado de Goiás, são mais de 330. Tantas que a justiça brasileira se viu obrigada a criar uma equipa dedicada para analisar as centenas de casos.
Na sexta-feira, um tribunal de Abadiânia ordenou a prisão preventiva de João de Deus, cujo nome verdadeiro é João Teixeira de Faria, de 75 anos, até às 14 horas de sábado. De Deus não acatou a ordem e tornou-se foragido por algumas horas, enquanto os seus advogados entravam em negociações para que pudesse entregar-se. Visitou a sua propriedade uma última vez e declarou-se inocente. Todavia, retirou 35 milhões de reais (7,893 milhões de euros) das suas contas bancárias para, de acordo com os seus advogados, dar resposta às suas “necessidades”. Decidiu entregar-se no sábado passado à Polícia Civil de Goiás. Ficou em prisão preventiva.
Já em 2013, João de Deus tinha sido acusado desse mesmo crime, mas o processo acabou arquivado, segundo a “Veja Brasília”. Uma jovem, Camila Correia Ribeiro, na altura com 16 anos, contactou o médium e foi vítima de abuso sexual à frente do pai. “[João] acariciou os seios, barriga, nádegas e virilha da menina”, pode ler-se na ação do Ministério Público de Goiás. No entanto, a juíza considerou que a conduta do acusado foi “imoral, mas não caracteriza violação sexual”, ilibando-o.
Os abusos de João de Deus não se limitaram apenas às suas “pacientes”, englobando também a própria filha. Dalva Teixeira denunciou agora numa entrevista à “Veja” que o pai abusou dela até aos 14 anos – quando engravidou dele e foi espancada por isso.
As acusações foram liminarmente recusadas por João de Deus e pelo seu advogado Alberto Toron, afirmando que “nega e recebe com indignação a existência dessas declarações”. E, numa estratégia de defesa já conhecida, o advogado do médium optou por descredibilizar publicamente uma das vítimas que até agora deram a cara: “Essa holandesa, estou recebendo informações, com um dossiê, de que tem um passado nada recomendável, o que pode descredibilizar sua palavra. Era uma prostituta e tinha um passado de extorsão.”
O percurso de um médium Nascido em junho de 1942 em Cachoeira de Goiás, João de Deus frequentou a escola até ao segundo ano do ensino primário, saindo sem saber ler nem escrever. Em entrevistas, o médium contou que os seus dons começaram a manifestar-se aos nove anos e que, desde aí, nunca mais o abandonaram. Aos 16 anos tornou-se curandeiro espiritual e trabalhou por breves períodos como aprendiz de alfaiate, mineiro e cerâmico.
Não era a vida que queria e começou a viajar pelo Brasil, curando pessoas, até decidir fixar-se em Abadiânia em 1976. Fundou a Casa Dom Inácio de Loyola e os seus bens começaram a aumentar a par e passo com o aumento dos seguidores. Pelo meio foi-lhe diagnosticado um cancro no estômago. Ultrapassou os 130 kg de peso e foi submetido a quimioterapia, mas acabou por ser operado num hospital de saúde convencional em 2015. O seu segredo só foi revelado a amigos próximos e familiares, não fosse destruir-lhe a reputação.
A sua crescente fama levou o jornal “Folha de São Paulo” a fazer uma reportagem na sua propriedade, revelando que João de Deus era dono de uma fazenda com mais de 500 alqueires (mais de 1200 hectares), avaliada em dois milhões de reais (451 mil euros). Curiosamente, a principal fonte de rendimento de João de Deus não é a prática curandeira, mas o garimpo nos terrenos que possui.
Além das consultas espirituais, o médium realizava, apoiado por 30 médicos, cirurgias espirituais, com os “pacientes” a permanecerem na propriedade durante 24 horas para repouso. Para que João de Deus os “opere”, exige-lhes que abandonem a saúde convencional, depositando as suas vidas nas suas mãos.
Com o fluxo de pacientes veio também o boom económico numa pequena cidade com 17 mil habitantes. Os hotéis e pousadas da cidade beneficiaram da “clínica” e os negócios prosperaram – e João de Deus passou a ser consultado acerca dos mais variados assuntos sobre a cidade. A imagem de ruas apinhadas tornou–se comum, inclusive com estrangeiros oriundos dos mais diversos países.