DNA, genealogia e crime


Os testes são ideais para construir árvores genealógicas, encontrar primos distantes (até ao terceiro grau), reunir filhos adotados e famílias biológicas ou revelar origens étnicas


A questão da privacidade dos dados genéticos ganhou uma nova acuidade no início do ano com a prisão do chamado “assassino do Golden State”, responsável por numerosos crimes praticados há mais de 40 anos. A justiça americana localizou o principal suspeito de forma indireta, através dos perfis de DNA de familiares longínquos, partilhados voluntariamente em bases públicas. Apesar do fim meritório neste caso, o facto de qualquer pessoa poder pesquisar estas bases para fins que não os previstos levanta questões éticas e legais importantes que apontam para a necessidade de introduzir alguma regulação na área da genealogia genética.

A popularidade da chamada genética de consumo disparou a partir de 2000. Hoje, várias empresas vendem testes de DNA a preços módicos (50-100 €) que permitem a qualquer um investigar a sua genealogia de forma eficaz. Através de uma amostra de saliva recolhida com um kit simples, empresas como a MyHeritage, Family Tree DNA ou Ancestry DNA analisam o DNA de cada cliente, gerando um ficheiro com a sua constituição genética. Estes dados são então comparados com os perfis registados em cada empresa, permitindo identificar indivíduos que partilham determinados segmentos de DNA e que, portanto, possuem ancestrais comuns. Os testes são ideais para construir árvores genealógicas, encontrar primos distantes (até ao terceiro grau), reunir filhos adotados e famílias biológicas ou revelar origens étnicas. As hipóteses de encontrar correspondências genéticas aumentam significativamente se os ficheiros genéticos forem partilhados em bases genéticas públicas. Estima-se que existam hoje mais de 15 milhões de perfis de DNA no conjunto atual de bases genéticas.

O sucesso da genealogia genética assenta em muito na partilha voluntária dos perfis individuais em bases públicas.
A plataforma GEDmatch, por exemplo, permite a cada utilizador fazer o upload dos seus dados genéticos, disponibilizando ferramentas de análise genealógica e acesso a toda a informação carregada (cerca de 1 milhão de perfis). Ou seja, na prática, os utilizadores abdicam da sua privacidade genética a troco de informação acerca dos seus parentes e ancestrais. É precisamente esse acesso totalmente livre que está na origem das inúmeras histórias de sucesso registadas na Sociedade Internacional de Genealogia Genética [1].

O enorme número de perfis de DNA nas bases de genealogia genética atuais (mais de 15 milhões) despertou a atenção das autoridades judiciais, que rapidamente perceberam como a informação armazenada podia ser explorada no âmbito da sua missão. A estratégia passa por comparar o DNA recolhido nos locais de crime com os perfis genéticos constantes nas bases genealógicas, de modo a identificar não o suspeito desconhecido, mas sim alguns familiares distantes. Esta via constitui uma alternativa à pesquisa em bases forenses que, além de estarem limitadas aos perfis de criminosos condenados, são altamente reguladas. O chamado caso do assassino do Golden State constituiu um dos primeiros sucessos da nova abordagem. Na tentativa de solucionar vários casos de homicídio, violação e roubo praticados na Califórnia entre 1974 e 1986, os investigadores começaram por criar um perfil genético a partir de uma amostra de DNA retirada de um local de crime, carregando-o de seguida na base GEDmatch. A pesquisa que se seguiu permitiu localizar rapidamente um primo afastado do criminoso. A partir deste elo construiu-se uma árvore genealógica que acabou por conduzir à identificação e prisão do autor dos crimes em abril de 2018. Desde então, cerca de 13 casos foram resolvidos através de pesquisas por familiares distantes em bases de genealogia genética. O poder da estratégia foi confirmado num estudo recente, que concluiu ser possível identificar um primo em terceiro grau de qualquer indivíduo a partir de uma base genética que cubra apenas 2% da população-alvo [2].

O caso do assassino do Golden State e outros similares demonstraram de forma clara os benefícios da pesquisa de informação genética em bases públicas. No entanto, levantaram-se de imediato dúvidas legítimas sobre a legalidade e ética de uma prática que permite à justiça pesquisar dados genéticos de qualquer cidadão sem que haja qualquer suspeita da sua ligação a um crime (i.e., sem mandado judicial). Além disso, rapidamente se percebeu que a metodologia podia ser explorada para fins menos nobres como, por exemplo, a identificação de participantes em estudos científicos a partir dos seus dados genéticos. Nesta fase é, por isso, essencial regular a utilização das bases de genealogia genética e também informar os seus utilizadores de que o seu pedigree pode ser usado pela lei para capturar primos distantes menos cumpridores da lei.

 

Referências

[1] International Society of Genetic Genealogy Wiki, Success stories (2018); https://isogg.org/wiki/Success_stories.

[2] Erlich, Y., Shor, T., Pe’er, I., Carmi, S. (2018) Identity inference of genomic data using long-range familial searches. Science, 362: 690-694.

 

Instituto Superior Técnico

miguelprazeres@tecnico.ulisboa.pt


DNA, genealogia e crime


Os testes são ideais para construir árvores genealógicas, encontrar primos distantes (até ao terceiro grau), reunir filhos adotados e famílias biológicas ou revelar origens étnicas


A questão da privacidade dos dados genéticos ganhou uma nova acuidade no início do ano com a prisão do chamado “assassino do Golden State”, responsável por numerosos crimes praticados há mais de 40 anos. A justiça americana localizou o principal suspeito de forma indireta, através dos perfis de DNA de familiares longínquos, partilhados voluntariamente em bases públicas. Apesar do fim meritório neste caso, o facto de qualquer pessoa poder pesquisar estas bases para fins que não os previstos levanta questões éticas e legais importantes que apontam para a necessidade de introduzir alguma regulação na área da genealogia genética.

A popularidade da chamada genética de consumo disparou a partir de 2000. Hoje, várias empresas vendem testes de DNA a preços módicos (50-100 €) que permitem a qualquer um investigar a sua genealogia de forma eficaz. Através de uma amostra de saliva recolhida com um kit simples, empresas como a MyHeritage, Family Tree DNA ou Ancestry DNA analisam o DNA de cada cliente, gerando um ficheiro com a sua constituição genética. Estes dados são então comparados com os perfis registados em cada empresa, permitindo identificar indivíduos que partilham determinados segmentos de DNA e que, portanto, possuem ancestrais comuns. Os testes são ideais para construir árvores genealógicas, encontrar primos distantes (até ao terceiro grau), reunir filhos adotados e famílias biológicas ou revelar origens étnicas. As hipóteses de encontrar correspondências genéticas aumentam significativamente se os ficheiros genéticos forem partilhados em bases genéticas públicas. Estima-se que existam hoje mais de 15 milhões de perfis de DNA no conjunto atual de bases genéticas.

O sucesso da genealogia genética assenta em muito na partilha voluntária dos perfis individuais em bases públicas.
A plataforma GEDmatch, por exemplo, permite a cada utilizador fazer o upload dos seus dados genéticos, disponibilizando ferramentas de análise genealógica e acesso a toda a informação carregada (cerca de 1 milhão de perfis). Ou seja, na prática, os utilizadores abdicam da sua privacidade genética a troco de informação acerca dos seus parentes e ancestrais. É precisamente esse acesso totalmente livre que está na origem das inúmeras histórias de sucesso registadas na Sociedade Internacional de Genealogia Genética [1].

O enorme número de perfis de DNA nas bases de genealogia genética atuais (mais de 15 milhões) despertou a atenção das autoridades judiciais, que rapidamente perceberam como a informação armazenada podia ser explorada no âmbito da sua missão. A estratégia passa por comparar o DNA recolhido nos locais de crime com os perfis genéticos constantes nas bases genealógicas, de modo a identificar não o suspeito desconhecido, mas sim alguns familiares distantes. Esta via constitui uma alternativa à pesquisa em bases forenses que, além de estarem limitadas aos perfis de criminosos condenados, são altamente reguladas. O chamado caso do assassino do Golden State constituiu um dos primeiros sucessos da nova abordagem. Na tentativa de solucionar vários casos de homicídio, violação e roubo praticados na Califórnia entre 1974 e 1986, os investigadores começaram por criar um perfil genético a partir de uma amostra de DNA retirada de um local de crime, carregando-o de seguida na base GEDmatch. A pesquisa que se seguiu permitiu localizar rapidamente um primo afastado do criminoso. A partir deste elo construiu-se uma árvore genealógica que acabou por conduzir à identificação e prisão do autor dos crimes em abril de 2018. Desde então, cerca de 13 casos foram resolvidos através de pesquisas por familiares distantes em bases de genealogia genética. O poder da estratégia foi confirmado num estudo recente, que concluiu ser possível identificar um primo em terceiro grau de qualquer indivíduo a partir de uma base genética que cubra apenas 2% da população-alvo [2].

O caso do assassino do Golden State e outros similares demonstraram de forma clara os benefícios da pesquisa de informação genética em bases públicas. No entanto, levantaram-se de imediato dúvidas legítimas sobre a legalidade e ética de uma prática que permite à justiça pesquisar dados genéticos de qualquer cidadão sem que haja qualquer suspeita da sua ligação a um crime (i.e., sem mandado judicial). Além disso, rapidamente se percebeu que a metodologia podia ser explorada para fins menos nobres como, por exemplo, a identificação de participantes em estudos científicos a partir dos seus dados genéticos. Nesta fase é, por isso, essencial regular a utilização das bases de genealogia genética e também informar os seus utilizadores de que o seu pedigree pode ser usado pela lei para capturar primos distantes menos cumpridores da lei.

 

Referências

[1] International Society of Genetic Genealogy Wiki, Success stories (2018); https://isogg.org/wiki/Success_stories.

[2] Erlich, Y., Shor, T., Pe’er, I., Carmi, S. (2018) Identity inference of genomic data using long-range familial searches. Science, 362: 690-694.

 

Instituto Superior Técnico

miguelprazeres@tecnico.ulisboa.pt