Francisco José Viegas. “Mudar a linguagem por decreto é uma tentação irritante”

Francisco José Viegas. “Mudar a linguagem por decreto é uma tentação irritante”


O escritor e editor defende que entrar no jogo do provérbio – já de si algo reacionário – e tentar impor um tipo de correção política é uma forma intolerável de se meter na vida dos outros


Que lhe pareceu o reboliço gerado em torno desta questão da possibilidade de se higienizar os provérbios do seu lado mais bestial?

Odeio provérbios. Gosto é de os trocar todos. O dístico de um com a conclusão de outro. Mas, em geral, evito-os.

Esta coisa de tentar mudar a linguagem por decreto é uma tentação irritante. Tanto mudar a ortografia como as expressões populares por decreto tem sempre maus resultados. Antes de mais, as soluções soam ridiculamente, depois é uma forma de se meter na vida dos outros, o que me parece intolerável.

Pode ver-se nisto não uma orientação progressista mas, na verdade, algo bastante reacionário?

Sim, é muito reacionário. Os provérbios já são, eles próprios, muito reacionários, e tentar entrar no jogo do provérbio para impor um tipo de correção política, numa vigilância de ordem ideológica, é muito reacionário. O politicamente correto é muito reacionário, todo ele.

Acha que este esforço deriva de uma nova conceção do lugar do homem no mundo, e a necessidade de respeitar o planeta e os animais, ou acha que, por outro lado, se está a perder a ideia do que é o homem, e, portanto, da diferença entre o homem e o animal?

Acho que disseste tudo. E acho que depois do livro de John Berger, “Why Look at Animals?” não se acrescentou muito mais. Aprendemos muito sobre nós na presença deles; sobre nós e sobre eles, é claro. E é certo que, respeitando os animais, estamos inevitavelmente a respeitar-nos mais a nós mesmos, e a respeitar a nossa ligação à natureza. Mas há aqui entendimentos sobre valores de duas ordens diferentes. É como a ideia de que as pessoas que mais gostam de animais são boas pessoas. Até podem ser misantropos, detestar o ser humano em geral, preferindo os animais às pessoas… Acho que nestes assuntos devíamos assumir atitudes mais liberais. Esta ideia de corrigir comportamentos amputando o discurso não me parece que leve a nada de bom.

Este parece ser um exemplo paradigmático desse conceito algo nebuloso que é o “politicamente correto”… Se os provérbios, e expressões idiomáticas são exemplos de algo que se cristalizou ao longo dos séculos e através de uma sedimentação muito demorada, e parece claramente que esta proposta parece disposta a atacar o elemento literal e prescinde de tudo o que há de construção metafórica, poética, marcas de um imaginário que muitas vezes faz fronteira com antigos mitos, lendas, fábulas…

O que acho mais absurdo é que as recomendações da PETA passam por substituir animais por plantas, seres inanimados, etc. O que é certo é que quando os grupos animistas chegarem à conclusão de que também as plantas sofrem, vamos então proceder a uma nova raspagem, e assim sucessivamente, e a nossa linguagem vai transformar-se num labirinto em que teremos de andar sempre com as calças ou com as saias arregaçadas e a pedir licença para não pisar nem ofender ninguém. Mas isto tem muito que ver com esta vaga das políticas identitárias: todas as identidades exigem respeito e a certa altura não há maneira de vivermos em permanente estado de alerta, sobretudo quando se confundem beliscaduras com feridas tremendas. E a ideia de mudar a linguagem para alterar a relação com os animais é completamente artificial.