Catarina Roquette Durão. “Celíacos podem pôr no IRS como despesa de saúde comida sem glúten”

Catarina Roquette Durão. “Celíacos podem pôr no IRS como despesa de saúde comida sem glúten”


A nutricionista diz que não é recomendável que pessoas retirem o glúten da sua alimentação por opção, porque pode ter malefícios como, por exemplo “a diminuição do consumo de fibra”


O que é a doença celíaca?

A doença celíaca é uma doença crónica autoimune, que ocorre em indivíduos com predisposição genética, causada pela permanente sensibilidade ao glúten. Glúten é a denominação genérica atribuída ao conjunto de proteínas insolúveis presentes no endosperma de alguns cereais. As prolaminas, frações peptídicas específicas das proteínas insolúveis, são o fator agressor e encontram-se em cereais como o trigo (glutenina e gliadina), o centeio (secalina) e a cevada (hordeína). Normalmente, as prolaminas são mais resistentes à digestão completa pelas enzimas intestinais, podendo chegar ao intestino intactas. Num intestino saudável, estas frações proteicas são inócuas, uma vez que a barreira intestinal está intacta impedindo a sua passagem através da parede intestinal. Contudo, nas pessoas com doença celíaca, estes peptídeos atravessam o epitélio intestinal, desencadeando uma resposta inflamatória e uma resposta imunológica sistémica que resulta em lesões da mucosa intestinal. Estas lesões têm a consequência de diminuir a capacidade de absorção de nutrientes.

Como pode ser feito o diagnóstico desta doença? É difícil?

O diagnóstico de doença celíaca baseia-se em sinais e sintomas sugestivos da doença, em parâmetros laboratoriais (testes serológicos ao sangue para pesquisar existência de anticorpos característicos da doença), e em avaliações histológicas [biópsia(s) intestinal(ais)] para confirmação do diagnóstico. Estes meios – em isolado – não são suficientes pois existem outras condições com alterações dos parâmetros laboratoriais semelhantes às observadas na doença celíaca. Assim, para um diagnóstico seguro, é fundamental a realização de biópsia. Ou seja, é necessário observar diretamente fragmentos de tecido intestinal que são recolhidos por sonda numa endoscopia digestiva alta. O diagnóstico deve ser feito enquanto o indivíduo não está a praticar uma dieta sem glúten.

Quais são os sintomas? Podem ser confundidos com outras doenças?

Sim, podem, já que a manifestação clínica da doença é complexa e variável. Nas crianças, a forma típica caracteriza-se mais comummente por distensão abdominal, diarreia crónica, vómitos, obstipação (prisão de ventre), fezes pálidas com mau odor ou com gordura (esteatorreia), atraso do crescimento, perda de peso, fatiga e alterações de humor como irritabilidade. No adulto, é frequente a doença manifestar-se de forma atípica, sendo os sintomas mais comuns anemia por carência de ferro sem explicação, aftas, dores articulares/ósseas, alterações dermatológicas, fatiga crónica, depressão, irritabilidade, e – nas mulheres – amenorreia, infertilidade e abortos espontâneos recorrentes.

Qual é a diferença entre a doença celíaca e a intolerância ao glúten?

Na doença celíaca, verifica-se envolvimento de mecanismos autoimunes e os testes serológicos evidenciam a existência de autoanticorpos específicos. Como explicam Fátima Ferreira e Felipe Inácio num artigo publicado este ano na Revista Portuguesa de Imunoalergologia, existe uma entidade denominada de sensibilidade ao glúten não autoimune que é usada para descrever pessoas com sintomas não específicos e sem a resposta imunológica característica da doença celíaca. Nestas pessoas observam-se reações adversas a alimentos que contêm glúten, mas não se observa a existência de autoanticorpos ou de lesões da mucosa do intestino delgado. Normalmente, a reação adversa manifesta-se por desconforto gastrointestinal persistente que, em alguns indivíduos, melhora com uma dieta isenta de glúten. Estes autores salientam que a sensibilidade ao glúten não pode ser distinguida clinicamente da doença celíaca, pois os sintomas podem ser comuns. Destacam também que se tem tentado explicar o mecanismo desta entidade, mas que ainda não é conhecido, tendo sido proposto que – para além do glúten – outros compostos presentes nos cereais possam induzir sintomas. Atualmente, o diagnóstico de sensibilidade ao glúten é de exclusão. 

Onde é que podemos encontrar o glúten na alimentação?

O glúten está presente no trigo, no centeio e na cevada. Assim, estes cereais, os seus derivados e alimentos que os incluam na sua composição têm de ser completamente afastados da alimentação do celíaco. Quanto à aveia, ainda há controvérsia. Alguns estudos indicam que este cereal, embora em menor quantidade, possui prolaminas, enquanto outros estudos afirmam que a aveia não as contém. De qualquer maneira, a aveia é frequentemente plantada nos mesmos terrenos e é processada nas mesmas fábricas que os outros três cereais, havendo risco de contaminação cruzada. Assim, estes quatro cereais e os seus derivados devem ser afastados na dieta isenta de glúten. 

Há alguma lista detalhada para ajudar a lidar com esta doença?

A Associação Portuguesa de Nutrição publicou um e-book em 2014 sobre alimentação na doença celíaca que é muito útil e onde se apresentam listas de ingredientes, matérias-primas e alimentos com e sem glúten. Neste livro os grãos, farinhas e amidos que contêm glúten são: cevada, centeio, aveia, cuscuz, trigo (farelo de trigo, gérmen de trigo, amido de trigo), kamut, durum, einkorn, graham, seitan, semolina, espelta e triticale. Os alimentos a evitar por doentes celíacos são: Farinhas e amidos de trigo (triticale, espelta, kamut, etc.), centeio, cevada, aveia e massas alimentícias; pão, produtos de pastelaria e confeitaria, bolachas e biscoitos; iogurtes com cereais; queijo creme e queijos comerciais de composição desconhecida; farinheira, alheira e outros enchidos; pizzas, lasanha, canellones e ravioles; salgados (rissóis, croquetes, etc.) e panados; delícias do mar e variantes; cerveja, malte e extrato de malte; compotas ou sumos industriais com espessantes desconhecidos; molho branco, molhos de comércio, sopa em cubo ou de pacote; sobremesas instantâneas, gelados comerciais de composição desconhecida; e cereais de pequeno-almoço.

O mercado e a restauração hoje em dia têm oferta suficiente para pessoas com a doença celíaca ou ainda existem limitações? 

Hoje em dia têm muita oferta, embora possa ainda não ser suficiente e ainda existam limitações. A página da Associação Portuguesa de Celíacos é uma excelente fonte de informação e faculta listas de alimentos isentos de glúten fornecidas pela indústria alimentar.

Uma alimentação sem glúten tem de ser obrigatoriamente mais cara?

A indústria alimentar para garantir que um produto não tem glúten tem de ter linhas de produção exclusivamente dedicadas a produtos sem glúten. Isto encarece a produção. É ainda importante salientar que existem benefícios para os doentes celíacos como poderem apresentar no IRS encargos com alimentos sem glúten como despesa de saúde desde que justificados por relatório médico. Na página da Associação Portuguesa de Celíacos, podem ser consultados os benefícios.

Existem pessoas que retiram o glúten da alimentação por opção. Há algum benefício associado a esta alteração? E malefícios tem?

Não está recomendado que as pessoas, por opção, retirem o glúten da alimentação. Pelo contrário, este tipo de alteração pode ter malefícios como a diminuição do consumo de fibra ou o prejuízo da possibilidade de diagnosticar verdadeira doença celíaca. Este último malefício é grave, pois se um celíaco não diagnosticado restringir o glúten, a biópsia pode dar inconclusiva não ficando diagnosticada a doença e podendo resultar na prática de uma alimentação inadequada (não totalmente isenta de glúten) que vai agravando a doença. Adotar uma dieta sem glúten só está recomendada para os casos de doença celíaca. Na sensibilidade ao glúten não autoimune, o médico e nutricionista podem recomendar uma dieta sem glúten seguida de prova de reintrodução monitorizada para avaliar a melhoria dos sintomas, mas esta abordagem tem limitações (baixa especificidade e risco de o efeito placebo promover perceção de melhoria dos sintomas).

E as grávidas que sejam celíacas, têm de ter cuidados especiais? 

As grávidas com doença celíaca, devem praticar uma dieta isenta de glúten. Ao mesmo tempo, devem respeitar as recomendações de uma alimentação saudável (completa, adequada e variada). Devem, na minha opinião, pedir aconselhamento a um nutricionista para as ajudar a praticar a alimentação mais adequada a esta importante fase do ciclo de vida.

Em Portugal quantas pessoas são celíacas?

A doença celíaca é comum em países cujos habitantes são de ascendência europeia, estimando-se uma prevalência de 1% na Europa. Em Portugal há poucos estudos, mas a prevalência estimada situa-se em cerca de 0.7% da população.

Que recomendações deixa aos doentes?

Que consultem o médico e o nutricionista e que leiam atentamente os rótulos dos produtos alimentares. Adicionalmente, que na procura de informação tenham o cuidado de recorrer a entidades idóneas. Boas páginas online são da Associação Portuguesa de Celíacos, da Associação Portuguesa de Nutrição e do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável.