Vozearias e peixeiradas


Para quem vem de escolas onde cada um fala no seu tempo, remetendo-se depois ao silêncio para escutar os outros, é uma verdadeira tortura, e profundamente irritante, assistir a debates conduzidos assim


”Mas então será tarde demais”

Karl Popper

 

É cada vez maior o número de pessoas com as quais falo e que demonstram falta de paciência para aturar programas televisivos que, às vezes até versando assuntos importantes, se traduzem na emissão de vozearias e em autênticas peixeiradas. 

Por vezes, até se trata de programas que visam a discussão de questões importantes para a formação da opinião pública, podendo algumas dessas questões serem até fraturantes. Mas isso traduz–se em maior responsabilidade dos canais emissores já que, até por isso, deveriam colocar mais cuidado na maneira como são conduzidas e moderadas as discussões/intervenções.

Lembro-me da discussão de assuntos de natureza mais política, mas também de outras matérias, umas mais pacíficas que outras, como a eutanásia e a morte assistida, a violência familiar, a igualdade de género e, mais recentemente, o IVA das touradas. Excluo, naturalmente, os programas que versam as questões futebolísticas, que classifico num nicho à parte e dos quais, muito honestamente, não costumo ser espetador.

Parece que em nome de discussões abertas, dinâmicas e plurais se deixam abertos os microfones de todos os convidados, ao ponto de, a partir de certa altura, nem se conseguir perceber quem fala e de que se fala, ficando a dúvida de que se pretenda verdadeiramente esclarecer os assuntos em discussão, tal a confusão instalada.

Para quem vem de escolas onde cada um fala no seu tempo, remetendo-se depois ao silêncio para escutar os outros, é uma verdadeira tortura, e profundamente irritante, assistir a debates conduzidos assim. Não há paciência! Percebo que quem escuta tem bom remédio, que é o de mudar de canal. E muitos o fazem com pena, porque os assuntos até são interessantes. Eu incluído.

É nestas alturas que me vem à memória um livro escrito em parceria por John Condry e Karl Popper (com posfácio por Jean Baodouim) com o nome “Televisão: Um Perigo para a Democracia”. Lembro-me de, na altura (1993/1994), ter adquirido o livro por ter ficado surpreendido com o título que, no meu entendimento, pouco ou nada se identificava com Karl Popper, o filósofo da sociedade aberta.

A tese dos autores baseia-se na degenerescência dos conteúdos televisivos, nos maus exemplos que são transmitidos pelas cadeias televisivas e que, a partir de certa altura, são interiorizados como normais, especialmente pelos mais jovens. Um dos exemplos relatados e que recordo é o facto de, na grande maioria dos filmes e das séries televisivas, nunca se associar o sucesso dos protagonistas a um trabalho sério e honesto. Quase sempre se apresenta o sucesso material ligado à criminalidade, e quase nunca ao contexto de uma profissão exercida honestamente. Quase sempre, a astúcia é colocada acima da honestidade e, deste modo, concluem os autores que a televisão sem regras é inimiga da democracia.

É certo que é muito complexa a regulação destas situações, especialmente quando as regras de mercado se impõem. Parece que a democracia, que Popper não vislumbra que possa ser conseguida fora da economia de mercado, a isso conduz. Os crentes nas virtudes incomensuráveis do mercado sempre defendem que o remédio para essas mazelas é entregar tudo à autorregulação, essa mão tão invisível que nem se vê, como alguém dizia. Mas parece que o primeiro setor verdadeiramente autorregulado que tivemos foi, exatamente, o do futebol. O futebol que, convenhamos, não será um bom exemplo de regulação para ninguém. E julgo não ser necessário explicar porquê.

Trazendo o assunto para os debates televisivos, o que perturba é que os mais novos pensem que é assim que os assuntos devem ser debatidos, sem respeitar nem ouvir o que os outros dizem, falando por cima e agredindo verbalmente aqueles que têm opiniões diferentes. Assim se instala na sociedade uma cultura de intolerância, na qual os argumentos alheios não são ponderados e se recusa tudo o que é diferente.

O drama é que não se vê no que isso seja conveniente para a afirmação dos valores da democracia e da civilidade, precisamente os mesmos em nome dos quais esses programas são muitas vezes emitidos.


Vozearias e peixeiradas


Para quem vem de escolas onde cada um fala no seu tempo, remetendo-se depois ao silêncio para escutar os outros, é uma verdadeira tortura, e profundamente irritante, assistir a debates conduzidos assim


”Mas então será tarde demais”

Karl Popper

 

É cada vez maior o número de pessoas com as quais falo e que demonstram falta de paciência para aturar programas televisivos que, às vezes até versando assuntos importantes, se traduzem na emissão de vozearias e em autênticas peixeiradas. 

Por vezes, até se trata de programas que visam a discussão de questões importantes para a formação da opinião pública, podendo algumas dessas questões serem até fraturantes. Mas isso traduz–se em maior responsabilidade dos canais emissores já que, até por isso, deveriam colocar mais cuidado na maneira como são conduzidas e moderadas as discussões/intervenções.

Lembro-me da discussão de assuntos de natureza mais política, mas também de outras matérias, umas mais pacíficas que outras, como a eutanásia e a morte assistida, a violência familiar, a igualdade de género e, mais recentemente, o IVA das touradas. Excluo, naturalmente, os programas que versam as questões futebolísticas, que classifico num nicho à parte e dos quais, muito honestamente, não costumo ser espetador.

Parece que em nome de discussões abertas, dinâmicas e plurais se deixam abertos os microfones de todos os convidados, ao ponto de, a partir de certa altura, nem se conseguir perceber quem fala e de que se fala, ficando a dúvida de que se pretenda verdadeiramente esclarecer os assuntos em discussão, tal a confusão instalada.

Para quem vem de escolas onde cada um fala no seu tempo, remetendo-se depois ao silêncio para escutar os outros, é uma verdadeira tortura, e profundamente irritante, assistir a debates conduzidos assim. Não há paciência! Percebo que quem escuta tem bom remédio, que é o de mudar de canal. E muitos o fazem com pena, porque os assuntos até são interessantes. Eu incluído.

É nestas alturas que me vem à memória um livro escrito em parceria por John Condry e Karl Popper (com posfácio por Jean Baodouim) com o nome “Televisão: Um Perigo para a Democracia”. Lembro-me de, na altura (1993/1994), ter adquirido o livro por ter ficado surpreendido com o título que, no meu entendimento, pouco ou nada se identificava com Karl Popper, o filósofo da sociedade aberta.

A tese dos autores baseia-se na degenerescência dos conteúdos televisivos, nos maus exemplos que são transmitidos pelas cadeias televisivas e que, a partir de certa altura, são interiorizados como normais, especialmente pelos mais jovens. Um dos exemplos relatados e que recordo é o facto de, na grande maioria dos filmes e das séries televisivas, nunca se associar o sucesso dos protagonistas a um trabalho sério e honesto. Quase sempre se apresenta o sucesso material ligado à criminalidade, e quase nunca ao contexto de uma profissão exercida honestamente. Quase sempre, a astúcia é colocada acima da honestidade e, deste modo, concluem os autores que a televisão sem regras é inimiga da democracia.

É certo que é muito complexa a regulação destas situações, especialmente quando as regras de mercado se impõem. Parece que a democracia, que Popper não vislumbra que possa ser conseguida fora da economia de mercado, a isso conduz. Os crentes nas virtudes incomensuráveis do mercado sempre defendem que o remédio para essas mazelas é entregar tudo à autorregulação, essa mão tão invisível que nem se vê, como alguém dizia. Mas parece que o primeiro setor verdadeiramente autorregulado que tivemos foi, exatamente, o do futebol. O futebol que, convenhamos, não será um bom exemplo de regulação para ninguém. E julgo não ser necessário explicar porquê.

Trazendo o assunto para os debates televisivos, o que perturba é que os mais novos pensem que é assim que os assuntos devem ser debatidos, sem respeitar nem ouvir o que os outros dizem, falando por cima e agredindo verbalmente aqueles que têm opiniões diferentes. Assim se instala na sociedade uma cultura de intolerância, na qual os argumentos alheios não são ponderados e se recusa tudo o que é diferente.

O drama é que não se vê no que isso seja conveniente para a afirmação dos valores da democracia e da civilidade, precisamente os mesmos em nome dos quais esses programas são muitas vezes emitidos.