“Direita Volver”, e António-Pedro Vasconcelos explica: “Vira sempre para a direita se não te queres arrepender. É essa a ordem.” A apoteose final. “Obviamente que é crítico.” Para cumprir a ideia de um filme a celebrar o Parque Mayer que lhe apresentou o produtor Tino Navarro, o realizador e Tiago R. Santos, que assina o argumento do filme que chega hoje às salas, decidiram fixar-se num tempo que não é nem o de António-Pedro Vasconcelos num Parque Mayer de que se recorda já daquela que foi a segunda era dourada do teatro de revista português. Com nomes como Ivone Silva ou Raul Solnado.
“Íamos muito ao Parque Mayer, aliás começávamos a conviver com esses atores e autores da nossa geração lá, mas já apanhei essa segunda leva, também muito popular de meados dos anos 60 até à queda do regime.” Volver aqui é à década de 1930 então. “Tínhamos pensado inicialmente no final dos anos 20, mas depois percebeu-se que a melhor altura seria mesmo 1933”, recorda Tiago R. Santos. “Foi quando a Constituição do Estado Novo foi aprovada, a Mitra [instituição criada com o objetivo de ‘combater a mendicidade’] abriu em Lisboa. Havia uma série de elementos de pressão externa que achámos que poderiam dar uma carga dramática ao filme.”
E vamos ao filme. “Parque Mayer”, o último de António-Pedro Vasconcelos (“Call Girl”, “A Bela e o Paparazzo”, “Os Gatos Não Têm Vertigens” e “Amor Impossível”), que chega hoje às salas, com a história de Deolinda (Daniela Melchior), acabada de chegar da província a Lisboa com o sonho de se tornar atriz e rapidamente é escolhida para o papel de protagonista de uma revista no Teatro Maria Vitória – dos vários teatros que faziam o Parque Mayer, o único que continua em funcionamento. Em paralelo com todo o processo de produção de um espetáculo de revista, do casting à noite da estreia, a história de um triângulo amoroso entre ela, Mário (Francisco Froes), o encenador que está apaixonado por Eduardo (Diogo Morgado), o outro ator, arrebatado por Daniela.
Personagens originais, como as rábulas e como as canções, essas da autoria de António-Pedro Vasconcelos. “Queríamos relembrar o que era a revista, a vivacidade e a irreverência que caracterizavam a revista. Interessava-me regressar ao Parque Mayer como local privilegiado, senão único, de diversão numa altura em que não havia ainda rádio. O Parque Mayer era praticamente o único centro de diversões em Lisboa. Havia a Feira Popular, mas a Feira Popular era uma vez por ano, e o Parque Mayer tinha os tirinhos, tinha as farturas, tinha o boxe. As pessoas iam e passavam lá a tarde e a noite. Há esse lado lúdico, as pessoas riem-se imenso, mas depois há os bastidores.”
E todo o resto. Porque à história do triângulo amoroso e à dos anos dourados da revista virá juntar-se a da luta que de repente se travava contra a censura, contra a polícia política. Contra a polícia de costumes. “Sempre me impressionou a hipocrisia social e moral no Estado Novo”, comenta o realizador. “O regime não se importava que houvesse pé-descalços ou prostituição, desde que nos bordéis. Não se importava com a homossexualidade desde que não se manifestasse, que não desse escândalo. Criou-se a Mitra que naquela altura era pura e simplesmente uma espécie de caixote do lixo. Interessou-me muito mostrar como é que um lugar onde a liberdade fazia parte da tradição de repente se tornou vítima da mão pesada do fascismo.”
Da luta que se travou a partir daí na revista conheceria António-Pedro Vasconcelos a sua última fase. Para ele, este será um filme para esses – a recordar-se do que foi o Parque Mayer, “hoje em dia ruína onde sobrevive corajosamente o Maria Vitória, com o Hélder Freire Costa, que se recusou a sair” – e para os que nasceram depois desse tempo. “Para aqueles que viveram quase meio século de fascismo relembrarem o que foram a dureza e o horror da privação de liberdade a todos os níveis, mas também para os que já nasceram com a democracia e com a liberdade perceberem que não são um dado adquirido.”
Parecendo, será tudo menos um filme saudosista este “Parque Mayer”, com que António-Pedro Vasconcelos aponta também para o futuro. Hitler foi eleito, Bolsonaro foi eleito, Trump foi eleito, a Hungria e a Polónia têm ditadores eleitos. Itália não tem propriamente um ditador mas tem um nacionalismo fervoroso a reclamar um regresso ao passado e a expulsão de imigrantes. A democracia e a liberdade são coisas muito precárias que às vezes desaparecem de um dia para o outro, quase sem se dar por isso – às vezes até democraticamente.”
“Direita volver” é então ironia mas não apenas a apontar para aquele passado. Não só lá, naquele tempo para o qual Tiago R. Santos se debruçou sobre transcrições de peças, versões censuradas e as que chegaram ao público. É sobre hoje. E ao contrário de Deolinda e Eduardo e de Mário, um encenador gay ficcionados para esta história passada no Portugal de 1933, bem real.