O Portugal das importações


A questão é cultural, de um certo desprovimento cívico, que faz com que, na ausência de ação própria, seja preferível que as ideias e as realidades de outros se projetem no nosso território


Faz alguma confusão que uma nação com as fronteiras estabilizadas há tanto tempo, com um povo que forjou algumas das maiores empreitadas da humanidade e que apresenta traços de ADN cultural, gastronómico e identitários tão ricos, despenda tanto tempo em sustentados exercícios de importação. Não se trata apenas da dimensão económica, em que a capacidade produtiva esboroada nos passados tarda em ser substituída por uma diversidade de atividades que invertam as tendências quando o consumo aumenta ou quando os humores dos mercados internacionais estremecem em sentido negativo. A questão é cultural, de um certo desprovimento cívico, que faz com que, na ausência de ação própria, seja preferível que as ideias, os fenómenos e as realidades de outros se projetem no nosso território para preencher os espaços em branco dos egos inoperativos. É o Portugal das importações.

Uns, ardentes em desejos negativos, anseiam pela importação de realidades externas que observam no espetro noticioso europeu e mundial. É assim que o marasmo do desejo e da ação cívica nacional dá lugar à ânsia de que o movimento dos coletes amarelos calcorreie as estradas e ruas de Portugal em luta por combustíveis mais baixos, ou que outras expressões de contestação aos poderes se ergam para fazer o trabalho que a oposição política à direita e a esquerda pseudocrítica não fazem. É este âmbito de construção de realidades, por oposição, que mobiliza a ocorrência de coligações negativas. Para construir, nada, mas se for para obstaculizar ou deitar abaixo, lá despem as vestes das convicções táticas para convergir qualquer coisinha.

Outros, ardentes em desejos positivos que ampliem as suas pretensões, mais ou menos em incubação, anseiam a energia inspiradora exterior que não conseguem gerar por impulso próprio. É assim com os populistas, reais e digitais – os das redes sociais sem filtros –, que desejam que fenómenos de outras latitudes tenham expressão em Portugal. Ei-los sobressaltados com os resultados dos populistas de extrema-direita nas eleições autonómicas da Andaluzia, alicerçados na saturação dos eleitores com os partidos tradicionais, na falta de respostas para os fenómenos sociais e na falta de perspetivas na existência de políticas razoáveis, sustentadas e eficazes, centradas nas pessoas e nos territórios. Não, o populismo não está à porta da fronteira portuguesa, ele está cá dentro. Está presente na leviandade do discurso e da ação política, na leviandade com que se verbalizam proclamações nas redes digitais ou na inusitada proliferação de notícias falsas de sinais contrários. Perante o quadro de saturação dos cidadãos, parece mesmo que a coerência deixou de ter qualquer relevância. O percurso de vida pessoal e política do líder do Vox, que se agigantou na Andaluzia, é um chorrilho de contradições que foram desvalorizadas pelos eleitores perante a assertividade populista do discurso. Um sinal inequívoco da mudança dos tempos. É esta a deriva que viabiliza a ligeireza em se afirmar que a cultura tem uma dotação orçamental de mais de 1%, dependendo da perspetiva. Perspetivas há muitas, mas senso, respeito pela inteligência das pessoas e coerência há cada vez menos.

Neste quadro, de profunda consagração de uma geometria variável no discurso e na ação política, da dinâmica da gestão corrente, das ocorrências excecionais e da aproximação de atos eleitorais para o Parlamento Europeu, para a Assembleia Legislativa Regional da Madeira e para a Assembleia da República em 2019, impõe-se a ativação de ecrãs cívicos de filtro, de exigência e de escrutínio que assegurem a configuração própria das convicções e o rechaço das inusitadas importações.

Num país em que, por regra, não somos educados para pensar, mas para replicar, em que a participação cívica e política continua mais próxima do Estado Novo do que de uma democracia pujante, este será um enorme desafio individual e comunitário. O quase generalizado estado de atrofia dos média e dos contrapoderes, alguns com perigosos comportamentos desviantes para um Estado de direito democrático, no contexto europeu e com o propalado nível civilizacional do burgo, não ajudará muito a combater a persistente deriva.

Entre anseios, medos e persistentes faltas de vergonha na cara no que concerne ao nível de inteligência, senso e razoabilidade dos cidadãos, o desafio será o de afirmar as convicções próprias, devidamente buriladas, em vez de importar os sopros alheios, sem filtros.

NOTAS FINAIS

Défice. A leviandade com que a gula orçamental lançou o parlamento português na órbita do ato médico, através da aprovação de um conjunto de vacinas obrigatórias, levanta as maiores dúvidas sobre a ponderação dos interesses em presença.

Transfronteiriço. O enleado de contradições da realidade nacional é sublinhado pelo pedido do presidente do Eurogrupo, Mário Centeno, para que o ministro das Finanças português, Mário Centeno, adote medidas adicionais para cumprir o Pacto de Estabilidade.

Superávite. Antecipar os pagamentos ao FMI é uma boa notícia para o país, só possível porque não se foi tão longe quanto alguns queriam e se ficou aquém de muito do que foi dito.

Contrabando. A exigência da transparência e do escrutínio não devia ser um exclusivo dos políticos, mas de todos os setores e respetivos profissionais que, no exercício de funções, podem dar expressão a interesses que não sejam os do designado bem comum ou interesse público. Nisto incluiria os jornalistas, em especial os das matérias económicas.

 

Escreve à quinta-feira