“Como pode alguém fazer isto na cidade?” Esta é a pergunta recorrente de quem é surpreendido por intervenções urbanísticas impróprias em locais onde, supostamente, os planos municipais de ordenamento não deveriam permiti-las: vistas obstruídas, edifícios dissonantes, construção excessiva e desfiguração do espaço público são alguns dos motivos geradores de indignação. Para surpresa dos indignados, muitas dessas intervenções, afinal, até são legais – ou passíveis de serem legalizadas se os órgãos administrativos competentes assim o entenderem. Esta discricionariedade interpretativa da legalidade urbanística remete-nos para uma lacuna recorrente no debate sobre planificação urbana, a qual consiste em assumir que os planos e as regras urbanísticas conseguem abarcar todas as complexidades de um território e que a sua interpretação é consensual. Esta asserção é não só ilusória, mas redutora. Ilusória, porque os textos, números, gráficos e imagens constantes nos planos não só não conseguem capturar todas as complexidades de um território como podem também querer servir finalidades de outra ordem: por exemplo, propaganda destinada a seduzir o cidadão com modelos de desenvolvimento errados ou enganadores (os livros de Darrell Huff, “Como Mentir com Estatística”, e Mark Monmonier, “Como Mentir com Mapas”, exemplificam como tal pode ser feito). Redutora, porque os planos são documentos legais e as cidades não se reduzem exclusivamente a fatores consensuais de parametrização normativa e regulamentar: valores intangíveis relevantes que deveriam ser preservados (memória, ética, estética, etc.) são muitas vezes desvirtuados e erradamente reinterpretados. No caso da estética, por exemplo, recorrer à lei para tentar impedir a construção de um edifício horrível é missão quase impossível: em primeiro lugar, porque a própria noção de horrível assumirá contornos subjetivos de gosto; em segundo lugar, porque os juízes desse gosto não serão os cidadãos, mas sim as instituições habilitadas para o fazer: “As câmaras municipais não poderão conceder licenças para a execução de quaisquer obras sem que previamente verifiquem que elas […] não prejudicam a estética urbana” (Regulamento Geral de Edificações Urbanas, art.o 3.o). Perante o licenciamento de tantos edifícios cujas fachadas mais parecem grelhas de radiador, códigos de barras ou fatias de queijo suíço, que critérios têm as câmaras municipais utilizado para exercer essa prerrogativa de exigência estética? A participação pública e a assinatura de petições por parte da sociedade civil não têm sido suficientes para influenciar decisões institucionais? Perante as polémicas suscitadas por vários grupos e associações cívicas, a resposta parece ser negativa. Tal como um casino em que a casa ganha sempre, também as instituições públicas adotam mecanismos legais, técnicos e estéticos que permitem refrear qualquer emancipação ou vontade popular sempre que estas ameacem os seus interesses – quase sempre subjugados a critérios económico-financeiros. Sendo assim, o que poderá ser feito para introduzir maior equilíbrio nas relações de poder entre administração e administrados em matérias de decisão urbanística? Essa é uma questão que transcende em muito o âmbito deste artigo. Fica, no entanto, o desafio para que se pensem formas de participação e intervenção que não se circunscrevam apenas ao jogo viciado da auscultação inconsequente, mas atribuam aos cidadãos poderes efetivos de decisão e veto.
Mestre em Ordenamento do Território e Planeamento Ambiental
Escreve quinzenalmente