Goa. Churchill e Vasco da Gama entram em campo e futebol torna-se um romance

Goa. Churchill e Vasco da Gama entram em campo e futebol torna-se um romance


Enquanto o FC Goa disputa a superprofissionalizada liga indiana (foi fundado com esse objetivo), o campeonato de Goa continua a viver na sua lentidão costumeira. Em Fatorda, sob 36 graus, ninguém joga depressa


COLVA – Os pescadores empurram os barcos para o mar à custa de ombros. Não dirão ala-arriba, mas gritam em uníssono para que o trabalho seja coletivo, companheiro. O areal claro estende-se a perder de vista, sombreado pelas palmeiras debruçadas nas quais os corvos se escondem do sol intenso do meio–dia. Foi aqui, em Colva, que se fundou em 1905 o primeiro clube de futebol de Goa: o Boys Social Club. Já ninguém fala nele. Mesmo o St. Anthony’s não passa por tempos bonançosos. O seu campo, ervado, no centro da vila, por entre as lojas de bricabraque, foi comido em grande parte por novos prédios que se erguem numa voracidade de turistas.

Houve um tempo em que ia com frequência, junto com o meu amigo Cajetan Borges, o Caji, ver jogos ao Estádio Fatorda. Fatorda é um subúrbio de Margão. O Estádio chama-se Jawaharlal Nehru e é o centro do futebol no Estado.

Não se confundam coisas inconfundíveis. Quando ouvem falar de um tal FC Goa, estão a ouvir falar de um clube fundado de propósito para disputar a Superliga Indiana, uma competição absolutamente profissionalizada que tenta ter em competição praticamente um clube de cada uma das 16 províncias do país.

A Liga Goesa é uma competição estadual. O vencedor da última edição foi o Churchill Brother’s, pelo que está neste momento a disputar a Liga Indiana com outros campeões estaduais. Pode muito bem ser que duas equipas de Goa, o FC Goa e o Churchill, ganhem as suas diferentes ligas nacionais. Seria sinal de que o futebol em Goa continua vivo, apesar de tudo.

Assistir a um Churchill-Vasco da Gama em Fatorda é digno de um livro de Jupa Lahiri. Representa a rivalidade entre a família de Churchill Alemão, dona do clube (e há quem diga de todo o futebol goês), e o tradicionalismo do clube mais ligado às antigas organizações de portugueses. Parece que uma profunda admiração do pai pelo velho Winston tornou Churchill em Churchill. E como o antigo primeiro-ministro do Reino Unido, este também teve tendência para exercer o poder insistentemente.

Mostrar um cartão de jornalista faz com que regresse aos meus primeiros tempos de imprensa: entrar pelas cabinas, falar com jogadores e técnicos, sentir o cheiro dos linimentos, ouvir o martelar dos pitões no chão que faz eco nos intestino do estádio. Praticamente vazio. Sim, sim, também se fazia isso na Luz e em Alvalade. Ou no Restelo e por aí fora…

Com a criação da tal nova Superliga Indiana, os patrocinadores afastaram--se do futebol regional. Cada vez tem menos visibilidade. O que não quer dizer que não tenha charme. Equipas como o Salgaocar, de Vasco da Gama, fundado em 1956 pelo presidente do grupo Salgãocar (que não tardou a deixar cair o til), o Dempo, de Pangim, fruto da vontade dos irmãos Vasantrao e Vaikuntrao Dempo, da Dempo Corporation, uma empresa de exploração mineral, ou o Sporting Clube de Goa, que durante anos nunca teve nada mais que ver com o Sporting de Portugal senão o nome, mas é agora uma base experimental de Alvalade no território, exibindo ao peito um orgulhoso leão rampante e dourado, mexem com a sensibilidade dos adeptos de uma forma bem mais íntima. Não há jogo sem rivalidade. E no que toca às aventuras absolutamente profissionalizadas do FC Goa (que já chegou a ter Zico como treinador), os goeses limitam–se a estar de acordo. É um clube recém–nascido, mas leva Goa no coração. Por isso, é o clube da malta. Que seja campeão da Índia, mas não faz parte deste pequenino campeonato goês que leva gente daqui para ali numa febre de apostas baratas.

Apesar da chegada de estrangeiros, geralmente brasileiros ou nigerianos, o futebol que podemos ver sobre a relva de Fatorda é lento demais. Pudera: estão 36 graus. E nem a lentidão evita erros primários e precipitados. O povo vai conversando nas bancadas e chamando o homem dos gelados. Rajás, como os da minha infância.

Conta-se que, uma vez, Luís xiv pediu a Nicolas Boileau, fundador da critica literária francesa, opinião sobre um poema que o próprio soberano se dignara escrever. Nicolas leu aquela porcaria e saiu-se com esta: “Sua Majestade pode mesmo fazer tudo o que quer. Quis fazer versos maus e conseguiu-o.” Era aqui que eu queria chegar: querem jogar um futebol fraquinho e conseguem-no. Enquanto Churchill e Vasco da Gama se debatem sobre a relva, mando vir mais um gelado. Estes, sim, não são nada maus…