Assinalaram-se ontem 38 anos sobre o atentado que matou Francisco Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa e demais comitiva. Trinta e oito longos anos sobre esse fatídico dia 4 de dezembro, a três dias de umas eleições presidenciais. Morreram o primeiro-ministro de Portugal, o ministro da Defesa e mais cinco pessoas que seguiam num maldito Cessna que nunca chegou ao Porto.
Embora muitos continuem a julgar inconveniente dizê-lo, e outros não tenham sequer a coragem para o pensar, houve no Portugal democrático um assassinato político. Para alguns, o silêncio é o preço de uma (má) consciência. Que não esconde o óbvio: é uma vergonha nacional que sobre o “Caso Camarate” nunca se tenham apurado os factos, nunca se tenham julgado os culpados. Uma sociedade que teme a verdade nunca terá a justiça.
Portugal não pode continuar a ser complacente com quem atentou contra a normalidade democrática, contra a soberania nacional e contra o povo português.
Não podemos reescrever o passado. Mas podemos assumir, retrospetivamente, que Portugal seria um país diferente – e diferente para melhor – se o mandato que Sá Carneiro recebeu dos portugueses não tivesse sido brutal e criminosamente interrompido.
Basta fazermos um simples exercício de revisitação dos seus textos políticos. Neles é clara uma série de princípios políticos. A ambição de normalidade democrática e modernidade europeia para Portugal. A tentativa de sobressaltar civicamente os portugueses. A necessidade de mudar, de reformar profundamente o país. A luta pela liberdade e pelos direitos fundamentais, pilar do novo país que nascia à frente de todos.
Politicamente, Sá Carneiro foi rápido a intuir duas coisas: (1) depois de ter deposto uma ditadura, o povo corria o sério risco de ver as forças extremistas de esquerda implementar em Portugal uma ditadura de sinal contrário; (2) a afirmação da democracia no nosso país não se podia fazer com os velhos partidos da velha República; pelo contrário, eram necessários novos partidos cujo foco estivesse não no Estado, não na ideologia, mas sim nas pessoas.
É esta necessidade radial do personalismo político, num contexto específico de supressão dos direitos individuais perante o Estado, que está na génese do PPD (mais tarde, PSD) e explica o meteórico sucesso do partido junto da classe trabalhadora, dos profissionais liberais e da burguesia.
Tinha 19 anos quando Sá Carneiro morreu. Por ser filho de sociais-democratas da primeira hora, tive oportunidade de conhecer pessoalmente o então líder do PPD. Encontros ocasionais e em contextos partidários que, apesar de fugazes, permitiam sentir o magnetismo incrível daquele homem.
Sá Carneiro era homem de boa cepa. Português, patriota, de convicções rijas e visão moderna para o país. Num país polarizado, Sá Carneiro não procurava agradar à maioria. Era genuíno nos princípios e prático na ação. Era um líder. Não por impor a sua vontade, o que acontecia frequentemente, mas porque a sua vontade estava frequentemente certa. Lembro o episódio de 1969. Na companhia de Francisco Pinto Balsemão e Magalhães Mota, Sá Carneiro teve a ousadia de formar a Ala Liberal numa Assembleia Nacional hostil.
Nos três anos seguintes, Sá Carneiro desafiaria a ditadura. Olhos nos olhos. Ele acreditava que podia mudar o regime por dentro. “Era um deputado a sério num parlamento a fingir”, disse um dia sobre ele Almeida Santos. Sá Carneiro não conseguiu mudar a natureza do regime. Mas conseguiu provar que a primavera marcelista era uma farsa.
Há dias, nesse mesmo parlamento, PSD e CDS propuseram um voto alusivo ao 25 de Novembro. No texto, reconhecia-se o óbvio: Mário Soares, Freitas do Amaral e Sá Carneiro tinham sido figuras cruciais no curso da democratização, ancorando o país num modelo pluralista e democrático. BE e PCP opuseram-se. Sem surpresa. O PS absteve–se. Um sinal perturbador da perda de memória ou, ainda mais preocupante, das novas noções de democracia que hoje presidem ao PS.
A coragem de Sá Carneiro, os seus valores e o sentido de sonho em direção a um futuro melhor parecem hoje lugares distantes.
A política nos nossos dias não tem convicções, tem plasticidade. Não tem coragem, tem tática. Não tem futuro, tem momento.
Não tem líderes, tem rebanhos da opinião pública, das redes sociais e do lixo politicamente correto.
Com a exceção do Presidente da República, que foi contemporâneo de Sá Carneiro, os portugueses não encontram uma referência mobilizadora, patriótica e corajosa na política ativa.
Até quando aguentará a democracia?
Escreve à quarta-feira