Com a Feira Internacional do Livro de Guadalajara a glória das letras portuguesas atingiu o cume da sua consagração. A ostentação do literário, a auto-celebração das Letras, o esplendor da Literatura (com maiúscula), é de tal forma excessiva que os próprios mecanismos de produção do meio, para usar uma linguagem caída em desuso, se tornam visíveis a um ponto sem precedentes.
O diagnóstico é conhecido: a crise dos meios de legitimação na política levou, há já distantes décadas, ao desaparecimento desta e à sua substituição pela administração levada a cabo por especialistas – para usar um conhecido termo de um filósofo francês: à biopolítica. Na literatura, pelo contrário, a crise dos meios tradicionais de legitimação, a universidade e a crítica, não deu lugar a burocratas a administradores, mas à libertação de uma pequena substância que, antigamente, surgia através dos mecanismos da história, do trabalho da crítica e da sedimentação: a glória literária.
Não que a crítica literária tenha desaparecido ou que a universidade já não produza trabalhos meritórios (mesmo quando enfadonhos). O que Guadalajara demonstra, bem como toda a quantidade de festivais e encontros que pululam pelo país, é a total inutilidade dos mecanismos clássicos de legitimação e a modificação que se deu a nível da recepção da literatura. Nesta medida, a distância que existe entre um desses novos escritores, mesmo quando tenham algum mérito e sejam esforçados, e fenómenos para-literários como José Rodrigues dos Santos não é tão grande quanto se poderia supor à primeira vista. Tal como estes, também para a literatura em geral a crítica se tornou absolutamente inútil, trocada por uma relação imediata com o leitor, que já não recorre, nem precisa de recorrer, a mecanismos de mediação. Que esta relação imediata que se estabelece com o leitor penetra em todos os domínios é visível até na arquitectura da Feira do Livro de Guadalajara: os milhares de pessoas que entram na segunda maior feira mundial, a seguir a Frankfurt, passam obrigatoriamente pelo país-tema da Feira, glosando parodicamente a famosa frase de Picasso (“eu não procuro, encontro”). Aqui, havendo encontro, ele é forçado, e ninguém se pode furtar a ele.
Quanto à crítica, ela só é admitida na procissão auto-celebratória da Literatura no momento em que é arregimentada para a mesma. Pode, sem dúvida, assumir tons negativos, mas apenas na medida em que sirva para delimitar o campo literário e expulsar dele tudo quanto não cumpra os seus requisitos – como aconteceu recentemente, num exercício inútil, com Mário Santos: o leitor do Público necessita realmente de uma crítica a José Rodrigues dos Santos? Não sabe ele, à partida, que se trata de para-literatura? E o leitor de José Rodrigues dos Santos percorre os lugares maiores da crítica, Ípsilon (Público), Expresso e Colóquio-Letras?
Em última análise, a literatura chegou a um ponto em que a própria escrita se tornou supranumerária e o escritor que já nada escreve, esse horizonte onde a teoria literária do século passado via a possibilidade e o limite da escrita, transformou-se numa das figuras do meio literário contemporâneo. É claro que os livros são produzidos, que há quem os escreva, quem os edite – no melhor dos casos –, são impressos e distribuídos e alguém, com mais ou menos sorte, os lê. Mas a relação fundamental, que ia da escrita à leitura, passando por instâncias de mediação clássicas, é agora uma relação imediata, face a face. O leitor chega à feira, vê o escritor, que é mais ou menos interessante do ponto de vista físico, quer ouvi-lo a percorrer lugares clássicos do literário (o amor aos livros, a leitura como prazer desde tenra idade, múltiplas referências à infância, longas histórias sobre a vida pessoal) e decide, face a ele, comprar o livro. É toda uma nova fenomenologia, ainda não totalmente cartografada, que se instaurou e para a qual, diga-se, ainda não temos as ferramentas necessárias para a conseguir pensar.
É através deste mecanismo que a glória literária, e todo o esplendor que a acompanha, se instaura doravante: já não através de uma relação à tradição, ou através da mediação crítica, mas do reconhecimento dos próprios pares, que se celebram uns aos outros, do face a face com o leitor (nesta relação erótica haverá lugar à memória de Baudelaire?) e da assumpção de uma pose literária. Particularmente imune a qualquer crítica, esta nova configuração da literatura conhece apenas as diversas modalidades em que se celebra a si próprio. Instaura uma festa perpétua mas, desta, esquece a capacidade subversiva e entroniza-se a si mesma para a sua própria glória.