Saúde. Alguém disse que o hospital não é lugar para palhaços? | Fotogaleria

Saúde. Alguém disse que o hospital não é lugar para palhaços? | Fotogaleria


A propósito do documentário “Doutores Palhaços”, em cartaz, o i acompanhou uma visita da Operação Nariz Vermelho ao Hospital Dona Estefânia, em Lisboa. Porque se o hospital não é lugar para palhaços, também não é para crianças


Num camarim improvisado num dos edifícios do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, Marta de Carvalho e Patrícia Ubeda preparam-se para mais uma manhã junto das crianças. Ao espelho, maquilham-se com grandes bochechas encarnadas, que conjugam com penteados divertidos e roupas coloridas. “Não é boa ideia fazerem perguntas agora”, avisaram-nos antes de entrarmos; é que Marta e Patrícia estão a vestir a pele de Super Dra. Gingação e Dra. C. Lavi, duas doutoras palhaças da Operação Nariz Vermelho, “e o mais certo é terem respostas apalhaçadas”. Entre os preparativos, cantam e tocam ukulele para ensaiar aquilo que farão mais tarde, nos corredores e quartos do hospital. Marta tem na mão uma caixa de supositórios que faz um som inesperado ao agitar. Arriscamos a pergunta: “É um instrumento improvisado?” “São supositórios. Queres um?”, responde a (já) Super Dra. Ginjação, já com o nariz vermelho. Está lançado o mote para as horas seguintes e as doutoras começam então a ronda.

Primeira paragem: uma das salas de espera. Lá fora a chuva não cessa, mas para a Super Dra. Ginjação e a Dra. C. Lavi isso parece não ser um problema e é até fonte de inspiração. De repente, a sala é um oceano e as doutoras nadam como se fossem peixes, parando junto a cada criança que aguarda a sua vez de ser chamada e atribuindo-lhe um nome. “Polvo”, diz a Dra. C. Lavi junto a um rapaz moreno, para depois mover os braços, como se nadasse, entre gluglus, até à criança da cadeira seguinte. “Amêijoa”, diz de seguida para uma rapariga. A cena arranca sorrisos e risos a adultos e crianças, algumas mais envergonhadas do que outras perante a abordagem das duas palhaças.

Mas o enfoque principal da visita é a segunda paragem: o serviço de cirurgia pediátrica, casa de várias crianças que por estes dias a habitam porque a doença a isso obriga. Para chegarem até lá, as doutoras têm de passar pelo exterior. Lá fora, no entanto, a chuva insiste em cair e as doutoras, que não têm guarda chuva, levam um emprestado. Mas é então que, como boas palhaças, protagonizam uma peripécia: ao abri-lo, estragam o guarda-chuva. Não perdem, contudo, a boa disposição: riem, cantam e apontam para as poças no chão, dizendo que “são ondas”. À entrada do edifício, uma menina cumprimenta a Super Dra. Ginjação e a Dra. C. Lavi. “Tão bonita que estás hoje”, dizem elas.

Subimos no elevador até ao primeiro piso e chegamos então ao serviço. Médicos e enfermeiros sorriem às duas doutoras, que não são caras novas por ali. Mas não há tempo a perder e é preciso fazer a “transmissão”. Numa sala do pessoal, a Super Dra. Ginjação e Dra. C. Lavi reúnem-se com uma enfermeira para decidirem quem será visitado nesse dia. “Era bom que visitassem hoje esta menina, que está um bocadinho em baixo”, diz a enfermeira. Marta, que guarda a Super Dra. Ginjação por uns instantes, aponta atentamente o nome da menina e o número do quarto no seu bloco de notas, a par dos de outros.

De volta ao corredor, a música toma outra vez conta do espaço, mas por pouco tempo. É hora de visitar a primeira criança – um rapaz de oito anos. A estratégia varia de criança para criança, consoante das idades, mas a música parece estar sempre presente. “O senhor poderia ajudar a gente?”, pergunta a Dra. C. Lavi no seu sotaque brasileiro, para começo de abordagem. “Pode ouvir um pouquinho da nossa música e falar ‘olha, é mesmo fixe’ ou ‘não, é uma porcaria’”?, lança para o rapaz que, envergonhado, se limita a observar. “Se faz favor, por favor vá lá, vá lá”, diz por sua vez a Super Dra. Ginjação juntando as mãos, como que implorando. Do outro lado há pouca reação, mas desistência não está no ADN destas doutoras. “The night we met I knew I needed you so”, canta Dra. C. Lavi, que interrompe imediatamente a seguir para perguntar se “está bom para já?”. É a mãe do rapaz que responde, enquanto o filho continua a observar. De repente, a Super Dra. Ginjação não aguenta o “entusiasmo”. “Você soltou um pum, Dra. Ginjação?”, pergunta a Dra. C. Lavi. A Super Dra. Ginjação diz que sim, envergonhada. “Desculpa, eu agora não dou mais nenhum”, assegura. Mas não consegue cumprir a promessa. “Eu não controlo, eles saem sozinhos…”, desculpa-se. O menino não resiste e esboça um sorriso, tapando o nariz. A mãe ri-se da interação entre as duas palhaças e a música continua, mas de repente ouve-se de novo um som suspeito. “Agora foi a mãe”, aponta a Super Dra. Ginjação. Às tantas, o rapaz perde a vergonha e começa a participar na conversa, com gargalhadas. “O que é isto, é um coro de puns? Quem foi agora?”, pergunta a Dra. C. Lavi. “Foi outra pessoa”, diz a criança, finalmente conquistada. Acaba a tirar uma fotografia com as doutoras.

De volta ao corredor, uma boa notícia: uma das meninas que ia receber a visita dos narizes vermelhos teve alta. Mas  não há tempo a perder e passamos rapidamente a outra criança: um rapaz, com oito meses. A idade determina a uma mudança de dinâmica, apesar de mais uma vez a música ser protagonista. Mas em vez de uma letra normal de canção, as doutoras substituem as palavras por uma onomatopeia – “miau” -, mantendo a melodia da canção anterior. Sentado na cama, rodeado de brinquedos, o bebé observa atentamente; está ali, como explica a mãe, porque tem uma infeção. “Não é grave”, assinala, enquanto o filho, empolgado pela música, balança, ao mesmo tempo que mexe a boca e agita as mãos, com os olhos a brilhar na direção das doutoras palhaças. A Super Dra. Ginjação serve-se de um fantoche de gato em cima da cama e começa a brincar, movendo-o no ar e na cama, arrancando sorrisos ao bebé. A música transporta quem ali está para outro lado, abafando o som contínuo do monitor cardíaco de outra criança do quarto. Quando passamos ao quarto seguinte, volta a ser tudo o que ali se ouve.

Para última paragem, um rapaz de dez anos. Está ali porque “foi operado ao apêndice de urgência”, explica a mãe. Deitado na cama, não tira os olhos do smartphone. Mas as doutoras estão empenhadas em mudar isso e colocam uma carta de amor por baixo da porta do quarto. “Olha, recebeste uma carta de amor da tua namorada!”, dizem, entusiasmadas. O rapaz não quer dar parte fraca e continua com os olhos colados no ecrã, mas é possível vê-lo a espreitar as doutoras palhaças de quando em vez, esboçando um sorriso que não quer admitir, mas que também não consegue evitar. Afinal, tem 10 anos e já não tem idade para palhaços. Lança alguns olhares às doutoras enquanto lhe leem a carta, recheada de versos como “I love you”. “Esta é a carta de amor mais linda que já vi”, lança a Dra. C. Lavi. O menino finge que nada vê, mas percebe-se que curiosidade não lhe falta. A Super Dra. Ginjação e a Dra. C. Lavi acabam mesmo a descrever o casamento com a namorada,  enquanto o rapaz tenta disfarçar que não é com ele. Antes de irem embora, desejam “parabéns pelo casamento!”. E conseguem enfim arrancar-lhe um sorriso.