TV. As relações passaram a “jogo descartável” para ver no sofá

TV. As relações passaram a “jogo descartável” para ver no sofá


Chamam-lhes “experiências sociais” e há para todos os gostos. Há nudez, casamentos e até encontros que se fazem pela primeira vez, mas acontecem numa cama. Abriu-se a caixa de Pandora e muitos querem saber para onde se caminha em nome das audiências


O amor, o sexo e até a amizade têm vindo a seguir novas dinâmicas. Tudo o que possa ser pensado em torno disso, também. Os negócios que começaram a surgir e a multiplicar-se abrangem as mais diversas áreas. Há aplicações para juntar casais, as redes sociais convidam ao match, apareceram várias empresas que prometem, através de ADN, dar garantias de compatibilidade e as televisões começaram a apostar em formatos para juntar casais. Mas há quem diga que se abriu a caixa de Pandora. Há várias versões polémicas, a aposta no nu está a crescer e há quem se questione sobre o caminho que será feito e quais serão os limites: onde vamos parar?

Provavelmente, já ouviu falar de todo o género de formatos com nudez, sistemas de dating ou tudo o que for “experiência social”. A promessa é mostrar pessoas comuns em papéis que não estamos habitados a ver ou dar acesso à forma como as pessoas lidam com a intimidade, sentimentos e até com a imagem que têm de si e dos outros. Muitas vezes, são tão polémicos que somam queixas nos órgãos reguladores e chegam ao top dos tópicos mais comentados nas redes sociais e espaços de comentário televisivo. No entanto, nem só de queixas é feito o impacto destes formatos. 

Se, para alguns, estar nu na televisão é passar os limites, para as estações de televisão é a estratégia para alavancar as audiências. E é neste sentido que a TVI está a preparar uma das suas grandes apostas para o próximo ano. Depois do sucesso de “Casados à Primeira Vista”, da SIC, a estação de Queluz de Baixo escolheu não perder o jogo e, numa tentativa de lutar pelas audiências, vai criar “O Contentor”. De acordo com fontes ligadas ao setor, é uma adaptação do formato “Stripper”, que foi produzido originalmente pela norte-americana Bravo TV. À semelhança do que se tem passado nos últimos tempos, também aqui se fala em experiência social. 

Este formato televisivo vai colocar todos os concorrentes sem qualquer peça de roupa e objetos dentro de casa. Os concorrentes têm múltiplos desafios e para terem acesso a alguns dos pertences têm de vencer as provas. 

Além deste programa, a TVI tem ainda um outro reality show para estrear. Chama-se “First Date” e pretende ajudar a encontrar o amor. É, na verdade, uma adaptação da versão original do Reino Unido. Em cada programa, um grupo de pessoas vai viver um primeiro encontro, num restaurante. Procuram a alma gémea. Esta é a ideia vendida pela produção do formato. No final, terão de decidir se pretendem continuar a encontrar-se ou não.

Ambos são formatos que prometem dar que falar porque é o que acontece com a generalidade destes programas – e é também, muitas vezes, esta mesma polémica que os torna tão mediáticos. Um dos casos que mais têm merecido comentários nos últimos tempos é o “Casados à Primeira Vista”, da SIC, que já existia noutros países, onde sempre fez sucesso. 

A produção cria casais (através de testes de compatibilidade, por exemplo) que parecem ter tudo para resultar. No entanto, apenas se conhecem no dia do casamento e nada sabem sobre o parceiro. Depois de um tempo a viver a dinâmica de casal, chega a hora de decidir se aquela pessoa é mesmo a ideal e se estão dispostos a mudar alguns aspetos das suas vidas para que seja possível o casamento continuar. Há quem diga que há pessoas que vão para se divertir, mas há quem vá porque se sente sozinho. E é aqui que o verniz tem estalado. José Gameiro lançou, numa crónica recente do “Expresso”, a polémica em torno do tema. “A relação conjugal começa numa relação de conhecimento emocional, físico e intelectual que não se coaduna com entrevistas feitas por outrem ou testes de matching (sem nenhuma credibilidade científica) que os levam a decidir quem casa com quem. É na vida comum que se constrói, ou não, a possibilidade de viver uma relação amorosa. Acontece gostar-se muito de alguém e não se conseguir viver com essa pessoa”, explica o psiquiatra. Mas José Gameiro vai mais longe e garante ainda que há vários motivos para que as pessoas queiram participar. “Algumas para se divertirem e, não sei, para ganharem uns dinheiros, outras porque vivem numa enorme solidão, com ou sem relações anteriores falhadas. E aproveitou-se o sofrimento humano, sei que com consentimento, para explorar o voyeurismo dos espetadores”, diz, deixando um ponto final no assunto: “Não vale tudo para ter audiências”, até porque falamos de uma “vigarice” e de falta de ética profissional dos técnicos do programa. 

Mas há quem diga que tem valido a pena fazer tudo em nome da conquista de espetadores e quem já não saiba bem qual será o limite. Em todos os países se multiplicam estratégias para criar formatos em torno de casais, do amor, das relações e até do sexo ou da exploração do nu em televisão. Exemplos não faltam. Há programas pensados para milionários que procuram o amor e contam com uma agência de dating para o efeito. Não, aqui não é amor e uma cabana. Há sempre jatos privados e ilhas privadas; existem versões em que os participantes procuram encontrar o par ideal e, para isso, despem-se e têm a primeira conversa de sempre numa cama e há uma aposta crescente em formatos que envolvem um aproveitamento da nudez. Um exemplo é o “Naked Attraction”, que já tanta polémica levantou. O original britânico chegou a Portugal pelas mãos dos responsáveis da SIC Radical, em cujo site se explica: “Naked Attraction é um reality show de dating britânico, em que um/a participante seleciona dois concorrentes entre outros seis, com um twist: os seis participantes estão nus. Tanto o corpo como as faces irão ser revelados, em etapas, dos pés à cabeça. A pessoa que decide, em seguida, aparece nua também e terá de selecionar, desses seis, uma delas para um jantar romântico.” No Reino Unido, o Channel 4, responsável pela criação deste conteúdo, somou queixas contra o formato, mas a verdade é que compensou e o canal começou a preparar uma nova temporada com celebridades. 

Colocando o foco no que se passa em Portugal, pode dizer-se que o dating mantinha, até aqui, as pessoas vestidas, o que não era possível noutras versões internacionais. Agora bateu à porta nacional. Mas será que ver um programa como o “Naked Attraction” seria possível em 2000? E ter uma versão portuguesa? Eduardo Cintra Torres, crítico de televisão, já tinha feito esta reflexão no mês passado: “Esses conteúdos já não surpreendem, já não chocam devido à sua normalização no panorama audiovisual e ao relaxamento da nudez, das relações sociais e da sexualidade.” 

Mas, se esta é a opinião que o crítico tem sobre formatos baseados na nudez, a que tem sobre sistemas de dating não é mais favorável. Numa crónica recente, “O casamento como jogo descartável”, Eduardo Cintra Torres explica que “o romantismo democratizou o amor. A literatura, mas também o cinema e a TV, distribuem o amor com happy end. (…) É preciso ou uma grande superficialidade e infantilidade ou um grande desespero interior para alguém entregar a sua vida privada e íntima ao país inteiro e embarcar num casamento às cegas”.

Ao i, Eduardo Cintra Torres explica que “é impossível prever o futuro e saber para onde vamos. Os limites vão-se testando. A nudez, por exemplo, não é limite, o que é novo é a nudez em pessoas comuns e fazer disso um show”. Para o cronista, “a exploração do sofrimento humano também não é uma novidade. Aqui, o que é novo é o consentimento das pessoas que participam”. Já sobre o caminho que temos estado a fazer, Cintra Torres sublinha que “a sociedade tem limites e normas consensuais, que vão mudando com o tempo, e os média vão aproveitando isso. Querem audiência e vão testar até perceber onde é a fronteira”. No entanto, nem todos os casos são de sucesso e, muitas vezes, a sociedade muda de posição. “A Globo experimentou começar uma novela com uma mulher mais velha a tomar o pequeno-almoço e a dar um beijo na boca de uma outra mulher, com quem vivia. Foi um choque. A Globo não tinha percebido que a sociedade estava mais conservadora em relação a isso e sofreu muito com o erro que cometeu.”

Ainda assim, a verdade é que, com mais ou menos choque, as audiências são, em muitos casos, tão aliciantes que parecem compensar o risco. Opiniões e polémicas à parte, ao domingo, o programa “Casados à Primeira Vista” consegue atingir uma média de 1 182 600 telespetadores. Nos diários, atinge os 884 500. Isto significa que a SIC passou a liderar durante a semana o horário das 19h00 às 20h00, depois de muitos anos a perder para a RTP1 e TVI. Agora, em muitos dias, vence “O Preço Certo” e o “Apanha Se Puderes”, que lideraram nos últimos anos. Aos domingos não ganha, mas tem alcançado resultados interessantes frente a “Pesadelo na Cozinha”. A única exceção foi o último domingo, em que o “Casados à Primeira Vista” ganhou, mas a TVI não emitiu o programa com Ljubomir Stanisic.

Tecnologia alimenta mudança Por que motivo há sempre público e interesse em participar nestes programas? Não falta quem aponte a solidão e a dificuldade de gerir relações. Num contexto geral, vários afirmam que, em parte, foi a tecnologia que nos mudou. Há quem diga que veio revolucionar a forma como nos relacionamos e, verdade seja dita, veio sem dúvida facilitar o acesso que temos uns aos outros. Mas a lógica de termos as pessoas à distância de um clique tem facilitado ou complicado as relações? De acordo com Jorge Gravanita, presidente da Sociedade Portuguesa de Psicologia Clínica, “aparentemente, tudo é mais fácil. Criou-se uma ilusão de grande facilidade, mas não passa de ilusão. Com a internet, parece que temos dados que nos permitem saltar uma data de passos, mas as pessoas continuam a ter dificuldades de entendimento, até mesmo com as pessoas mais próximas. Além disso, não podemos olhar para isto com a lógica dos supermercados”. Também Maria do Carmo Cordeiro, psicóloga clínica, diz que com as “apps de encontros/engate ganhou-se, porventura, mais possibilidade de encontros e perdeu-se a tolerância à frustração e a necessidade de se elaborarem convenientemente separações e lutos. É muito fácil ter encontros, mas tal não significa que sejam relações duradouras. Pode acontecer, mas frequentemente funcionam mais como ansiolíticos ou antidepressivos”, explica, acrescentando: “As pessoas, hoje, têm muita dificuldade em estarem sós, bem consigo mesmas, antes de partilharem a sua intimidade. Partem para encontros para não estarem sós ou para terem experiências sexuais.”

Mas será que todas as facilidades que a tecnologia trouxe têm feito com que haja mais frustração quando alguém não arranja companheiro/a? Para Jorge Gravanita, “a partir do momento em que introduzimos a ideia de facilidade, é normal que apareça a frustração quando não funciona. Mas é importante não esquecer o que está na base de tudo”. 

E porque funcionam todas as apostas em programas, aplicações e até empresas que prometem “ajudar a encontrar o amor”? De acordo com Maria do Carmo Cordeiro, falamos sobretudo de “um bom negócio. Se se encontra ou não”, será sempre uma outra questão. Ainda que seja inquestionável, de acordo com a psicóloga, que se possa sempre encontrar “eventuais parceiros”. E há um bom motivo para tanta procura: “Há mais receio da solidão.” Também Jorge Gravanita defende que “há uma falta de amor enorme e isso faz com que cada um procure com os recursos que tem”. “A emoção é a nossa forma de comunicar e, havendo uma grande dificuldade em lidar com sentimentos, temos uma crise de inteligência emocional. As pessoas não sabem comunicar umas com as outras”, defende ainda o psicólogo.