Psiquiatra há 40 anos, José Gameiro abrandou recentemente o ritmo de trabalho. Só dá consultas em Lisboa um dia por semana, até porque vive em Cascais e o trânsito na A5 entope a partir das 7h15 da manhã. Madrugador desde pequeno, diz que seis horas de sono lhe bastam e que se pudesse só dormia uma ou duas.
Recebe-nos na sua casa, numa sala de estar sem televisão, com montes de livros e brinquedos antigos por todo o lado. A maioria são modelos de aviões – além de psiquiatra, Gameiro dedica-se à pilotagem e todos os fins de semana, se não estiver mau tempo, levanta voo do aeródromo de Tires com um amigo e vão tomar café a um qualquer ponto do país.
Ia começar esta entrevista de uma maneira completamente diferente, mas ao ver todos estes brinquedos…
E a maior parte não está aqui. O meu pai deu-me o primeiro comboio elétrico, da Marklin, quando eu tinha oito anos. Há uns vinte anos fizemos uma casa no Alentejo e finalmente tenho um quarto só para isso. Montei o comboio numa mesa e quando lá vou brinco com ele. Os brinquedos nesta vitrine – tirando um ou outro – eram todos meus.
Isto quer dizer que mantém uma ligação grande com a infância?
Muito, muito grande. Acho que a própria pilotagem de aviões é uma coisa lúdica. Brincar mesmo, só com o comboio elétrico, com estes não, mas gosto muito dos aspetos da brincadeira. Brinquei muito com os meus filhos e tenho um fascínio por brinquedos. A minha mãe alimentava isso, se eu me portava bem comprava-me um Dinky Toy numa loja da Baixa. A primeira viagem que viajámos em família, tinha eu 12 anos. Fomos no Sud Express até Paris e depois de camioneta à Bélgica, à Alemanha, à Suíça e voltámos a Paris para apanhar o comboio de volta. Eu levei dinheiro separado para cada país, sobretudo com a ideia de comprar comboios elétricos Marklin na Alemanha. A minha mãe dava-nos muita autonomia desde cedo e eu andei sozinho em Frankfurt à procura das lojas de comboios elétricos. Ainda hoje se tivesse espaço comprava mais aviões. Tenho muitos – no escritório aqui ao lado há imensos, aqui tenho os modelos mais estranhos.
O avião que costuma pilotar está em Tires?
Sim. Sou piloto há 35 anos. Durante muito tempo tive o avião sozinho, e há sete ou oito anos um colega meu que é cirurgião cardíaco, também tirou o brevet e tornámo-nos sócios. A não ser que esteja muito mau tempo, todos os fins de semana vamos voar pelo prazer de voar. Não vamos fazer nada, vamos tomar café. E vamos tomar café ao país inteiro. Saímos, vamos para Portimão, para Évora, para Coimbra, para Viseu, para Castelo Branco. E houve alturas em que usei muito o avião para dar formação fora de Lisboa e também quando fiz o doutoramento no Porto e ia falar com o meu orientador.
Já apanhou algum susto?
Tive uma emergência há muitos anos. O motor do trem queimou e a roda da frente, do nariz, não bloqueou. Ficou bamba. Como o motor do trem foi à vida já não podia fazer nada. Isso foi à chegada a Portimão, ia com um amigo psicólogo fazer formação. O aeroporto de Faro ofereceu-se para eu ir para lá eu disse não valia a pena, Faro só tem uma pista e se corresse mal bloqueava-lhes. Vim para Tires com o trem de fora – o avião anda muito mais lento – e depois andei aqui por cima três ou quatro horas para gastar combustível. Eles acionaram as emergências – vieram bombeiros, ambulâncias, aquela trapalhada toda. A técnica nestes casos é aterrar o mais possível com o nariz em cima, à velocidade menor possível e quando ele baixa há duas hipóteses: ou o trem recolhe e você dá cabo do hélice e do motor e sai caro; ou bloqueia. Eu tive sorte porque bloqueou.
É preciso sangue-frio para manter o controlo numa situação dessas, não?
O risco não é muito grande. Claro que aterrámos de porta aberta prontos a sair do avião, essas coisas todas. Mas nunca pensei que aquilo corresse mal em termos de a nossa vida estar em risco. Pensei no dinheiro que ia gastar! De qualquer modo fiquei ansioso, porque eu nunca fumo no avião e lembro-me de ter acendido uma cigarrilha. Só depois de aterrar é que telefonei à família. E depois peguei no carro e fui para o Algarve.
Quando diz que gosta é de voar refere-se a quê? A manobrar o avião, à vista?
É tudo. A descolagem é uma sensação muito física, muito boa, não sei explicar mais do que isto. A aterragem é aquilo que exige mais técnica: é pôr o avião num determinado sítio, a determinada velocidade e a determinada altitude. Depois a gente conhece o país de outra maneira. Não se voa muito alto, vamos a mil e tal metros, e sobretudo agora acompanhado vamos conversando, falamos sobre tudo e mais alguma coisa.
Também faz viagens maiores?
Já fui a Marrocos algumas vezes, fui a Espanha e a Paris duas vezes com a família. O avião tem sete horas de autonomia e dá para ir direto até Paris, mas é muito chato.
Demora muito tempo?
Seis horas e meia. Normalmente para-se em Biarritz ou Valladolid, enche-se o depósito para ter mais segurança, almoça-se e continua-se. Ele tem sete horas de autonomia, mas sete horas ali metido…
Uma vez que sabe pilotar aviões há quem o procure por causa de certos receios como andar de avião, por exemplo?
Há, mas eu mando quem tem fobia de voo para um programa que a TAP tem há muitos anos e que funciona muito bem. Pelo facto de ser piloto há bastante gente ligada à aviação que me procura. Desde pilotos a assistentes de bordo sempre tive bastante gente ligada a isso.
De que tipo de problemas sofrem essas pessoas? Stresse associado à profissão?
Muitas vezes têm os mesmos problemas que qualquer outra pessoa. Procuram-me porque sou piloto e posso perceber melhor algumas coisas da vida deles. Os pilotos comerciais têm uma vida familiar complicada. Sobretudo os de longo curso.
Passam muito tempo fora?
Imaginemos um piloto casado com uma pilota – conheço vários casais assim – ou um piloto casado com uma assistente. A TAP tem uma coisa que ajuda imenso, um infantário que funciona 24 sobre 24 horas. Mas não é fácil. Às vezes, o casal está a meio de uma crise e há um que tem de ir voar com a crise por resolver. E depois o stresse dos pilotos de médio curso agora no inverno é complicado.
Porquê no inverno?
Porque o tempo é pior, as aproximações são mais complicadas, às vezes com visibilidade zero. As esperas às vezes são longas, andam sempre com atraso, os aeroportos da Europa estão muito congestionados. Às vezes há situações complicadas. Uma vez tive uma situação de emergência num avião em que o comandante só me pressionava para eu lhe dizer se o avião tinha ou não de voltar para Hong Kong. ‘Se tenho de aterrar no China é uma chatice. Tenho aqui 300 pessoas que não podem sair do avião porque não têm visto’. Aquilo não é uma profissão fácil. Os pilotos de médio curso por um lado estão mais perto da família, por outro voam mais. Nas companhias como a Ryanair, durante cinco dias fazem N voos todos os dias, depois descansam quatro dias. E a pressão aí ainda é maior.
Essa situação de emergência foi o quê? Perguntaram nos altifalantes se havia um médico a bordo?
Foi. Saímos de Hong Kong num avião da Swissair e passado pouco tempo perguntaram se havia um médico a bordo. Uma situação muito interessante. Era um senhor com setenta e tal anos na económica, no meio daqueles bancos apertados. Estava pálido, muito frio, e tinha uma história de enfartes de miocárdio. A gente olhou e pensou: ‘o homem está quase a entrar em choque’, que é a diminuição da capacidade do coração de bombear o sangue. Trouxemo-lo para fora, auscultei-o e o comandante sempre a pressionar: ‘Já estou a entrar na China, veja lá se tenho de voltar’. E eu com medo que o homem estivesse a ter um enfarte. A minha mulher, que não é psiquiatra, disse: ‘Isto é um ataque de pânico, ponto final. Não é nada de preocupante. Damos-lhe um Xanax, muda para a primeira classe e isto passa’. Ri-me, porque eu é que sou psiquiatra. O que é facto é que a gente não dormiu nada toda a noite, cada um a ver se o homem estava bem, e ele dormia que nem um porco com o Xanax. E não é que o comandante nem obrigado veio dizer? A minha mulher dizia: ‘Vamos ter umas viagens de borla’. Pois, pois, nem nos agradeceram.
Vamos então falar de relações. Sabe o que é o Tinder?
Sei. É uma aplicação para aproximar pessoas. Provavelmente dá as características da pessoa que tem o Tinder e dá quem está ao pé e está interessado em conhecer. É uma coisa que ouço os meus doentes falarem que é muito usado para conhecimentos mas sobretudo para engates.
Tem de se manter atualizado para poder acompanhar os seus doentes?
Sempre me interessei por informática, do ponto de vista do utilizador, e vou sabendo dessas coisas. Às vezes há coisas que não conheço, são os doentes que me falam, e eu vou ver o que é. Alguns doentes já me falaram por exemplo num Tinder para homossexuais, não sei como se chama…
E quando é assim vai ver como funciona?
Só sei o que me dizem, porque não me inscrevo nisso. O que me explicam é que aquilo mostra quem está disponível, depois as pessoas começam a conversar em conversa privada e finalmente encontram-se, nalguns casos para se conhecerem, noutros casos para terem relações sexuais.
Nesta última edição da Web Summit houve uma sessão dedicada ao futuro das relações. Acha que por causa destas aplicações as relações vão ser diferentes?
Acho que as relações não vão ser diferentes. O que vai ser diferente – e já está a ser diferente – é usar-se este tipo de plataformas digitais para as pessoas se encontrarem e trocarem as primeiras impressões. Não sou nada contra porque até tive doentes que viviam sozinhos e agora usam as plataformas digitais para tomar um café ou para se encontrarem com outra pessoa. Facilita as coisas por exemplo a pessoas com dificuldades sociais. Algumas pessoas, passada meia hora já estão a dizer coisas que nunca diriam a ninguém face a face… Se isso é bom se é mau já não sei. Acho que não é assim tão bom como isso, acho que as pessoas se deviam conhecer pessoalmente o mais rapidamente possível porque há uma certa história na relação que é importante, e isso deve ser feito face a face. Mas para responder à sua pergunta, acho que muda a maneira de as pessoas se conhecerem, a relação acho que não muda. Quer dizer, num sentido já mudou, um dos problemas conjugais é que hoje em dia quase toda a gente é apanhada através das plataformas digitais. Quando um elemento do casal desconfia, vai bisbilhotar as coisas do outro. Hoje em dia é muito fácil ver as mensagens, os whatsapp, os mails, não é preciso sequer grandes conhecimentos.
E essas plataformas também facilitam a infidelidade?
Também. Há uma coisa que oiço que acontece muito, que é procurar antigas namoradas ou antigos namorados no Facebook. Quando as pessoas se separam e há uma ex-namorada ou namorado que também se está a separar, é frequente terem encontros. Às vezes não dão em nada – são requentados, como se costuma dizer – mas outras vezes dão.
Tem Facebook?
Tive uns tempos mas depois era complicado porque os doentes pediam amizade e eu não posso ter amizade com eles, por isso deixei de ter. Em relação a estas coisas acho que não se pode ser contra nem a favor. Elas existem, não há nada a fazer. A questão é como utilizá-las da melhor forma para cada uma das pessoas. Por exemplo, hoje em dia todos os doentes têm o meu mail e, se me pedirem, dou o telefone.
Há pacientes que o contactam em situação de emergência?
Ao contrário do que é o senso comum, as pessoas só contactam quando estão mesmo aflitas. Há muitos colegas meus que têm muito medo de dar o telefone pessoal e os psiquiatras em geral têm a mania de não dar o telefone, acham que tem de ser só na consulta. As pessoas só telefonam ou mandam mails quando estão aflitas, é muito raro haver um contacto não justificado.
Voltando ao Tinder. Há uma coisa a que em inglês se chama ‘matchmaking’. Acredita que se pode combinar pessoas – ‘este tem estas características, o outro tem aquelas, vamos juntá-los’?
Escrevi no “Expresso” acerca disso, por causa de um programa que passou na SIC e não vou comentar mais. Não há matchmaking. Para já, as avaliações de personalidade são sempre muito discutíveis. Nós não somos uma coisa formatada, a personalidade de cada um de nós tem um núcleo central mas depende muito do outro, temos plasticidade nas relações. Claro que posso dizer que sou um bocadinho rígido porque sou pontual – a minha mulher diz ‘És o gajo mais monótono do mundo porque chegas todos os dias do consultório à mesma hora’. Começo as consultas e acabo à mesma hora há 30 anos. Isso é uma característica minha, mas depois todos nós temos forma de estar diferentes consoante a pessoa com quem estamos. A personalidade, por isso, é uma coisa que acho discutível. E encaixar personalidades ainda pior. E não há regras do género ‘os opostos atraem-se’ ou ‘os parecidos atraem-se’. Não, as pessoas sabem lá porque é que se apaixonam… Apaixonam-se. Há quem diga que é pelo cheiro. Depois há uma segunda coisa que é: ‘Será que eu sou capaz de viver com a pessoa de quem gosto?’. Essa aprendizagem é feita ao longo da vida. Em nome da relação vamos tentando mudar em nós aquilo que conseguimos mudar e depois há coisas que não conseguimos mudar e a outra pessoa tem de se habituar e vice-versa. Já dou esta imagem há muitos anos, mas é a que vem à cabeça. Nós casamos com um cabaz de Natal. Tem caviar e patês bestiais à frente. E lá atrás tem sempre o atum, a sardinha em lata e aquelas coisas que não prestam. Quando se conhece muito bem uma pessoa, já se sabe onde é que está a sardinha e o atum. E portanto é muito fácil atacar a pessoa. Digo isto há muito tempo e aliás está bastante estudado: a coisa mais destrutiva numa relação conjugal é a crítica sistemática. Ao fim de um tempo a outra pessoa ou se submete a isso ou então não aguenta.
E há até quem interiorize isso e perca a autoestima, não é?
Ficam na fossa. Eu posso dizer à minha mulher, de preferência com um ar simpático: ‘Não ponhas a revista aqui que eu gosto mais dela no cantinho’. Ou não dizer nada, que é o ideal – ela põe ali e eu mudo de sítio. Pode achar que sou maluco, mas não importa. Outra coisa é dizer: ‘Tu és uma besta, estás farta de saber que eu gosto da revista no cantinho e estás sempre a fazer porcaria’. Isto repetido dezenas, centenas de vezes é o fator mais destrutivo. Depois há outros. A dificuldade com a família de origem do outro também é um fator complicado. E depois há as crises agudas, que são as melhores que há.
As melhores?!
Do ponto de vista da terapia de casal sim. Eu só quero infidelidades para tratar [risos]. São crises que implicam muito sofrimento, como é evidente, mas que se resolvem com uma certa rapidez. A maior parte das vezes mantendo o casal unido, outras vezes não, acabou a relação. Mas resolvem-se.
Para um lado ou para o outro.
A maior parte das vezes para o lado do casal. Passam um mau bocado, mesmo mau, depois depende das pessoas. No caso de ficarem deprimidas, a ‘vítima’ tem de ter ajuda medicamentosa. Mas normalmente resolve-se bem ao fim de uns meses. Os casais mais complicados são aqueles que chegam com trinta anos de discussões e chatices e críticas. Esses têm muito mau prognóstico.
Mas não é mais fácil manterem-se unidos?
Juntos sim, unidos não. E até já tive casais em que o nível de tensão é tão grande que são os filhos que exigem que vão à consulta. São pessoas que ao longo da vida se habituaram a um padrão em que à mínima coisa o outro reage de uma determinada maneira, depois o outro responde, a tensão vai subindo e às tantas eles próprios já não têm controlo sobre aquilo. Tem de se fazer um trabalho que é tentar mudar essa espécie de piloto automático negativo.
E aceitam bem as suas ‘ordens’?
Não são ordens, são sugestões. Aceitam, mas é muito difícil cumpri-las, não porque estejam de má vontade mas porque estão muito automatizadas no próprio casal. Depois há casais em que uma das pessoas é muito complicada e tem de se mandar essa pessoa tratar-se individualmente antes. Mas na maioria dos casos não. Muitas vezes são aqueles casais que achamos encantadores, mas por trás a relação é complicada. Todos os casais têm discussões completamente ridículas, eu chamo-lhes as discussões da escova de dentes. Olhe para esta sala. Livros por todo o lado. Jantamos no cantinho da mesa porque eu sirvo-me da mesa para trabalhar, tenho ali a mochila, o computador. Se eu tivesse uma mulher intolerante isto não estava assim…
Muitas vezes vemos nas revistas pessoas a dizerem que é preciso estar sempre a quebrar a rotina. É esse o segredo de uma boa relação ou, pelo contrário, é preciso encontrar maneira de a rotina ser uma coisa de que gostemos?
Uma coisa não é necessariamente incompatível com a outra. Mas acho que o mais importante é a rotina ser uma coisa de que a gente goste. Não se pode estar sempre fora da rotina, primeiro porque não há tempo, depois não há dinheiro. As rotinas podem ser muito boas. Eu, por exemplo, adoro ir tomar café com a minha mulher de manhã. Depois viajamos quando podemos. Eu tenho a mania das viagens. Viajo muito, muito, muito. Preciso de viajar. Acho que é de pequenino. Pode parecer estranho, mas se tiver de ir a Coimbra, na véspera tenho uma excitação porque vou a Coimbra. Se olho para a agenda e sei que daqui a um mês vou viajar já a vida fica com outra cor. Gosto muito de viajar e gosto muito de andar de avião.
Qual é a faixa etária dos seus pacientes?
A partir dos 18/19 até à idade que for. Gosto muito de velhinhos, não sou especializado, mas gosto muito de tratar pessoas de idade. Tenho uma ternura especial.
E os casais?
São mais jovens. Tenho um casal crónico que tem setenta e muitos anos, que já acompanho aí há dez anos ou quinze porque ela diz que se não vier de três em três meses ele não fala. São muito engraçados. Tenho outro casal crónico mais jovem. As terapias de casal não duram eternamente. Depois tenho doentes da consulta individual muito antigos. A mais antiga é minha doente há trinta e muitos anos.
Não devia já estar curada?
Há doenças psiquiátricas que não se curam – esquizofrenia, psicoses – e há pessoas com depressões recorrentes, graves, que também precisam de ajuda ao longo de quase a vida toda porque têm fases melhores e outras piores. Há pessoas que voltam passados cinco anos ou seis, seja porque estão de novo deprimidas ou ansiosas, seja porque querem falar de alguma coisa da vida delas, porque se separaram ou porque morreu a mãe ou o pai. Ainda na semana passada tive um doente que não via há 11 anos.
E ainda se lembrava dele?
Antigamente nem ficheiro tinha. A única coisa que punha na agenda era a medicação para não me esquecer. Hoje em dia já tenho um ficheiro informatizado. Se recebo uma pessoa que não vejo há dez anos, quando vejo o nome não consigo logo associar uma cara, mas quando vou à sala de espera buscá-la vejo logo quem é.
Uma das ideias que temos é que hoje as pessoas se separam muito mais facilmente. A sua experiência confirma isso?
Há mais divórcios do que havia, isso claramente. Mas os números são muito difíceis de quantificar, porque há cada vez mais uniões de facto e sobre isso não se sabe nada. O que se sabe é que a maior parte dos filhos nascem em Portugal fora do casamento, ou seja, em relações conjugais mas não formais. Não estou de acordo – mas isto é a minha experiência – que as pessoas se separam facilmente. Apesar de tudo aquilo que se tem passado na sociedade, acho que a maior parte das pessoas ainda casa com a ideia de que é para toda a vida. Quer seja pela Igreja, quer seja pelo civil, é igual. A ideia da separação, mesmo que a pessoa esteja farta da relação, nunca é confortável.
Não é uma decisão que se toma de ânimo leve?
E se tiver filhos é muito mais complicado. Algumas pessoas têm medo das consequências na sua relação com os filhos, outras têm medo que a outra parte use os filhos contra si numa separação. As pessoas separam-se mais do que se separavam, isso claramente, agora à primeira dificuldade não. Só aqueles casais que casam e separam passados poucos meses porque não deu ou aconteceu alguma coisa. Já soube tanta história tão esquisita…
Esquisita em que sentido? De pessoas que cometem adultério na lua de mel?
Coisas desse tipo ou ainda mais complicadas de que eu não quero falar porque são casos muito raros e são facilmente identificáveis. Só coisas muito graves é que levam a separações imediatas.
Às vezes pedem-lhe conselho sobre se devem ou não separar-se?
O máximo que digo, quando um casal está em grande tensão é: ‘Em vez de uma separação definitiva, se estiverem os dois de acordo e se tiverem essa possibilidade e não for desconfortável do ponto de vista emocional, estejam cada um em seu sítio, por exemplo numa casa de férias, para ver se a tensão baixa e eventualmente podem perceber melhor o que querem’. Só vou até aqui. De resto, quando me perguntam… Nem de mim sei, quanto mais dos outros!
Antigamente, há duas ou três gerações, não era raro as pessoas das classes mais altas terem amantes com casa montada, como se dizia, e era mais ou menos tolerado pelas mulheres. Hoje…
Isso acabou.
Já não é uma situação aceite?
Não só isso. Hoje as infidelidades são descobertas muito mais cedo. Às vezes só não são descobertas porque a pessoa não quer saber.
Prefere nem saber?
Ou porque também há infidelidade do outro lado. E essa ideia de que os homens são mais infiéis do que as mulheres acho que cada vez é menos verdade. Costumo dizer a brincar que os homens não são infiéis uns com os outros, não é? Nem só com mulheres solteiras, portanto… A minha ideia é que as mulheres mentem mais nas estatísticas do que os homens, são mais hábeis a esconder as coisas. Os homens são mais ‘tontos’, porque guardam mensagens, não apagam as coisas, as mulheres são muito mais eficazes. E há outra coisa. Quando um homem é apanhado, nunca é posto em causa que só andou aos beijinhos à outra senhora. Assume-se que fez tudo. Quando a mulher é apanhada conta uma história ao marido. E para o homem, se souber – ou pensar que sabe – que não houve quase nada físico, a coisa é menos grave, enquanto para a mulher, se andas a trocar mensagens com a mulher isso já é uma infidelidade.
Ao longo dos seus trinta anos de prática…
Infelizmente 40 [risos].
… deu por uma mudança de mentalidade e de atitudes nos casais?
Dei, dei. Uma coisa mudou radicalmente. Elas agora dizem: ‘Ou vais à terapia ou isto vai à vida, não pode continuar’, ou porque foram apanhados, ou porque são uns chatos, ou porque só trabalham e não pensam em mais nada. A iniciativa da separação não sei se é mais das mulheres ou dos homens, mas elas estão muito mais exigentes e eles estão muito mais numa posição defensiva… Os homens têm menos jeito para a relação conjugal, não há nada a fazer. Há exceções, mas têm menos jeito. Têm menos jeito para cultivar a relação, para mandar uma mensagem ou duas durante o dia, para telefonar, para fazer a mulher sentir que há uma cumplicidade. Têm menos paciência para a conversa das mulheres. Eu percebo que as mulheres são mais detalhadas na conversa, falam mais em discurso direto, os homens são mais sintéticos. Elas falam de coisas que às vezes não interessam nada aos homens, mas eles têm de ouvir. Não é o caso, mas se a minha mulher estiver a fazer uma conversa sobre o que se passou no trabalho dela, em discurso direto, ‘ele disse’ e ‘ela disse’, aquilo não me interessa nada, mas percebo que tenho de a ouvir. E a última coisa que se deve fazer quando alguém nos está a contar uma coisa é dizer: ‘Não tens razão nenhuma, a outra é que está certa’. Porque a pessoa está a procurar apoio e cumplicidade. Pode-lhe dizer mais tarde, mas naquela altura não. Há tipos que não entendem isto. Depois há outro problema clássico dos casais que é a parte da ternura física. Elas queixam-se de que eles só se aproximam quando querem… Quando estou com eles sozinhos digo: ‘Oiça, você não pode ser assim, a ternura física é importante, se quer uma coisa à noite tem de começar de manhã…’. Quando a mulher não está por perto falo com eles um bocadinho de homem para homem.
E eles?
Alguns conseguem interiorizar e perceber que as mulheres são diferentes. A questão do orgasmo, por exemplo, é completamente diferente. Um homem, se a mulher não tem um orgasmo, acha que foi incompetente. O orgasmo para as mulheres claro que é importante, mas não é tão importante como para os homens. Uma mulher pode estar muito bem fisicamente com um homem, não ter orgasmo, porque não acha muito importante, e ser porreiro para ela, mas para os homens ainda há muito esse pensamento ‘falhei’ ou ‘ela não está a gostar de mim’.
Acontece-lhe ficar irritado porque o paciente não está a ver o óbvio?
O meu papel é não me irritar. Estou treinado para não me irritar com as pessoas. Ao fim de uns anos a gente aprende e interioriza duas coisas. Primeiro, não estamos ali para nos zangarmos com as pessoas. Costumo dizer que não sou nada a favor da ‘terapia do ranho’.
O que é isso?
É pôr as pessoas a chorar. Não tenho lenços no consultório. As pessoas comigo não choram muito. Às vezes choram, claro que choram, até eu já me aconteceu chorar com as pessoas…
Porque se emocionou?
Porque me emocionei. Quando a minha mãe morreu, há dez anos, aconteceu-me com uma pessoa que me estava a falar da morte de alguém. Controlo-me, mas sou muito sensível e quando me falam pais que perdem filhos ou coisas do género, tenho de ter cuidado para não me descontrolar. Descontrolei-me – as lágrimas apareceram-me nos olhos – para aí duas vezes na vida e expliquei às pessoas porque é que estava a acontecer isso. Mas não tem problema nenhum. De resto somos treinados para duas coisas. Uma é não julgar as pessoas.
Isso não é difícil às vezes?
Às vezes é difícil. Mas há coisas que não trato. Sou incapaz de tratar um abusador sexual – nunca me apareceu nenhum, mas acho que tinha muita dificuldade em fazê-lo. Tenho dificuldade em trabalhar com violência conjugal. Também não tenho jeito nenhum para toxicodependentes, quer seja álcool quer sejam drogas, trabalhei em tempos nisso e não gostei. São muito mentirosos, muito manipuladores, não tenho jeito, portanto procuro não tratar. Mas ao fim de uns anos você consegue não julgar as pessoas. Pode pensar: ‘Este tipo é parvo’ ou ‘esta mulher é tonta’ mas resolve isso e tem uma relação empática com as pessoas. A outra coisa que treinamos é a neutralidade – tentar o mais possível não influenciar. Tentamos não tomar posição e limitarmo-nos a apresentar as alternativas que as pessoas têm e elas que decidam. De resto, a nossa capacidade de influenciar também não é assim tão grande.
Não há quem olhe para vocês como um oráculo?
Não tanto como se pensa. Há uma pessoa ou outra mais dependente, mas também passa por nós criar uma relação de maior ou menor dependência. Não gosto muito de relações de dependência com ninguém, muito menos com doentes.
Não há doentes que dependem de si?
Há doentes muito antigos que dependem no sentido de que um dia se eu deixar de fazer clínica sofrem com isso. Estão há muitos anos comigo, temos uma história comum muito longa.
Um dos problemas sérios do país é a baixa natalidade. Do que fala com casais consegue perceber porque é que as pessoas hoje têm tão poucos filhos?
Sei duas ou três coisas. Não é a principal razão mas há mais infertilidade. Também há mais recursos para a combater, mas o percurso da fertilização in vitro é duro e complicado. Mas não será a principal razão. Os jovens estão a juntar-se cada vez mais tarde e a sociedade está cada vez mais individualista.
Mais egoísta?
Não chamaria egoísta, porque quando é preciso ajudar os outros as pessoas ajudam. Já não é tão importante para as mulheres como era terem filhos. Antigamente uma mulher que não tinha filhos era vista um bocado como uma mulher de segunda. Hoje em dia a coisa é diferente. E há casais que decidem ter um filho – a média neste momento é 1,3 – por razões financeiras, por razões de vida… A sociologia sabe explicar isso melhor do que eu. Os casais que sigo que não têm filhos é por razões biológicas, portanto não tenho uma visão abrangente.
Falou de condições económicas, mas é nos países onde há salários mais elevados que as pessoas têm menos filhos.
A nossa vida muda quando temos o primeiro filho. É uma pessoa sobre a qual vamos ter responsabilidade para o resto da vida. Por outro lado, os filhos também são um fator de stresse. Alguns saem calminhos mas outros não. Eu tenho dois e foram experiências completamente diferentes. Muita gente não está para isso.
Há cada vez mais casamentos que acabam em divórcio e, como me disse, as uniões de facto também estão a aumentar. Acha que o casamento é uma instituição condenada?
Não. Acho que vai continuar a haver pessoas a casar-se. E também há quem decida casar-se ao fim de alguns anos em união de facto. Há um problema que tem a ver com dinheiros, não tem só a ver com questões culturais. O estado de defeito atual do casamento é a comunhão de adquiridos. No futuro acho que vai ser a separação total de bens. Hoje em dia não faz muito sentido que as pessoas comprem uma coisa e tenham de a dividir quando se divorciam. Eu vivo com a minha mulher há 22 anos e não somos casados.
Por convicção ou por conveniência?
Fomos casados os dois antes, temos um filho em comum, ela tem dois filhos [anteriores] e eu tenho uma filha, e não achámos importante, isso só ia complicar as coisas em termos de futuro. A relação não é pior nem melhor por casar. Cada um tem as suas coisas, ela não interfere naquilo que eu compro ou deixo de comprar, eu não interfiro naquilo que ela compra ou deixa de comprar.
O compromisso não é menor?
Não. Há investigações sobre isso e não há diferença nenhuma. É igual e facilita muito as coisas. Eu costumo dizer a brincar à minha mulher: ‘Tu só sabes os carros que eu compro quando eles aparecem aqui à porta’. Enquanto há amigos meus que têm de discutir com a mulher qual é o carro que vão comprar.
E de pedir licença…
Eu sou muito a favor da separação. Cada um tem a sua profissão, as suas coisas. E depois há muitos problemas patrimoniais nos divórcios, os filhos são utilizados nisso. Volta e meia faço mediações de divórcios internacionais e quando há muito dinheiro envolvido é uma chatice. E quanto mais dinheiro há, pior é.
Porquê?
Cada um puxa para seu lado, a ver quem é a pessoa que vai conseguir sacar mais ao outro. Os pobres não têm estes problemas, são problemas só de ricos.