Marcado por atrasos estruturais herdados do miserabilismo do Estado Novo e por desvios ideológicos pós-Abril, que nos enlearam em perdas de tempo inconsequentes, Portugal vislumbrou nos fundos comunitários uma oportunidade para recuperar o tempo perdido e impulsionar a qualidade de vida dos portugueses e a valorização dos territórios, através da construção de infraestruturas e de equipamentos de utilização comum. Essa inapelável atração pelo novo gerou uma espécie de megalomania da inauguração. O importante era construir e inaugurar; depois, logo se via. A manutenção ou a valorização do existente raramente foram as prioridades de quem tinha dinheiro para quase tudo. Até para elefantes brancos, obras megalómanas e impulsos de edificação sem nexo com a realidade. Essa deriva gerou um quadro mental que perdurou anos a fio, com diversas expressões um pouco por todo o território nacional.
A tragédia de Borba, com o aluimento de uma estrada que tentava passar entre os buracos das pedreiras, sublinha a propensão nacional para desvalorizar o risco, por ação ou por omissão, para, depois da casa arrombada, nos desmultiplicarmos em tentativas de justificação da incúria, da entrega ao arbítrio da sorte e ao reiterado perfume do desenrasca. A verdade é que o país não leva os riscos a sério. É que não são só os decisores, os representantes ou os inteligentes que povoam as televisões com soluções para tudo, depois do leite derramado. São também os cidadãos considerados individualmente e são as comunidades. E de pouco valerá a pena olhar para o lado ou apontar o dedo ao vizinho. Onde houver uma escapatória para não fazer o que é preciso, haverá sempre um português a seguir esse contorno da lei, dos deveres ou do sentido de comunidade. Haverá sempre um decisor mais preocupado com a obra a inaugurar ou o impulso a mediatizar do que com investimentos em coisas que ninguém vê e poucos valorizam, a menos que haja desgraça.
A estrada foi nacional, passou a municipal e caiu. Significa isso que alguém fica isento de culpas ao longo de décadas de exploração? Claro que não, mas ensaiam-se os mais elaborados exercícios de sacudidela da água do capote. O drama é que o país está pejado de situações similares nos edifícios, nas infraestruturas, no espaço público e em amplos setores e áreas da sociedade portuguesa, realidades que são potenciadas pelos riscos existentes e pelos riscos emergentes. Onde se podem integrar os sucessivos desinvestimentos em setores relevantes para a vida das pessoas e para as dinâmicas dos territórios, as cativações orçamentais e outras expressões da governança que, por ação ou por omissão, contribuem para nos pormos a jeito. Vive-se em risco ou no limiar do risco, em prolixos estados de indigência que “tentaculam” nos serviços públicos, nas infraestruturas e em diversas áreas do nosso quotidiano comunitário. É claro que estas modelações da governação nos seus mais diversos níveis contam com um baixo exercício cívico, um frágil escrutínio e uma exígua exigência de transparência por parte dos cidadãos. Neste caldo de cultura gestionária, não será de estranhar a emergência de muitas situações que evidenciam o colapso de um modelo de governação dos territórios em que não se cumprem os mínimos de manutenção, de valorização do património histórico e dos serviços existentes, quando se projetam novas empreitadas, novas respostas e novos projetos. Muitas das vezes sem ter em conta o que existe, em termos do perfil das populações e dos territórios.
Daí questionarmo-nos sobre se haverá orçamento para o país que temos. Ou estamos a persistir em não salvaguardar o que já existe e devia ser mantido, para partir em renovadas empreitadas de passos maiores que as pernas, apesar da projeção internacional obtida. É que, no limite, corre-se o risco de não haver para quem está nem para quem, seguindo o engodo do apetite aguçado pelo mediatismo global, se confronta com as falhas no essencial.
A tragédia de Borba como a de Sabrosa, ambas com a perda de vidas humanas, são a expressão de um Portugal sem atenção e sem orçamento, mas também sem tempo para polémicas mais ou menos estéreis quando há tanto por fazer. É um triste certificado de falhanço coletivo como comunidade de gestão de destinos e de território, por falta de foco no essencial.
Como tantas vezes temos afirmado, enquanto o Estado não clarificar o que deve fazer e não assegurar recursos para o seu normal funcionamento, além das cativações, das mudanças paralisantes de membros do governo ou dos humores de decisores mais ou menos sintonizados com a alcatifa dos corredores do poder em Lisboa, o normal é que sejamos interpelados amiúde por acontecimentos que sublinham os falhanços das governações e das comunidades. Além da espuma dos dias e do glamour dos eventos mediáticos que procuram projetar uma modernidade sem nexo com a esmagadora maioria do território e das realidades das pessoas. Pode não haver orçamento para o país que temos, mas enquanto houver orçamento para alguns no país que temos, não haverá sobressaltos de maior. É apenas o que se pretende. Pela sobrevivência política, pelo virar da esquina e pela esperança num maior conforto parlamentar para deixar de aturar humores e passar a impor humores.
Escreve à quinta-feira