A Associação de Proteção Animal da Figueira da Foz (APAFF) esteve sete anos sem saber quem era a dona da Casal da Areia, uma cadela que tinha sido encontrada na região. Estava esterilizada e tinha microchip, mas na base de dados que consultou não constava registo dos donos. No final de outubro, na sequência de um problema de saúde, Florbela Brisida, presidente da associação, acabou por ficar a saber a idade do animal no registo do microchip e descobriu ainda os dados da dona e da cadela, que afinal se chamava Rafeira. Por que razão foram precisos anos para se descobrir o passado deste animal? O problema está nas diferenças entre as bases de dados do Ministério da Agricultura e dos veterinários.
“Quando a cadela chegou tinha microchip, mas não constava na base de dados [pública]”, explica a diretora da associação, acrescentando que na altura ligou para as autoridades competentes a questionar o porquê de não existir informação sobre este animal. A resposta dada foi “que tinham muitos papéis” e que, por isso, os dados sobre a cadela, que foi batizada como Casal da Areia, não estavam na base de dados.
Sete anos depois, por coincidência, Florbela descobriu os donos do animal. A responsável pelo abrigo levou a Casal da Areia ao veterinário quando esta apresentou problemas renais. Ao passar o detetor de microchip para identificar a idade da cadela, os veterinários perceberam que existiam mais informações sobre o seu passado – esta base de dados já incluía a identificação dos donos e o seu número de telefone. Florbela Brisida ligou para o contacto do registo e falou com Patrícia Andrade, a dona da Casal da Areia que, afinal, se chamava Rafeira.
A história desta cadela pode ser a de muitos animais perdidos. Segundo o Sindicato Nacional dos Médicos Veterinários (SNMV), ainda “hoje existem discrepâncias entre os registos” da base de dados oficial da Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) – o Sistema de Identificação de Canídeos e Felídeos (SICAFE) – e as informações recolhidas pelos veterinários e inseridas no Sistema de Identificação e Recuperação Animal (SIRA), gerido pelo SNMV.
Enquanto na base de dados dos veterinários, criada em 1992, os registos são feitos pelos médicos veterinários aquando da colocação do microchip, no SICAFE, o registo é feito pelas juntas de freguesia, um sistema que, segundo o SNMV, “sempre teve insuficiências”. A DGAV, tutelada pelo Ministério da Agricultura, não tem informações sobre o número de registos que estão por inserir no SICAFE.
E não é dada qualquer explicação oficial para este problema, mas o i sabe que em causa está o volume de registos e o facto de muitas pessoas não registarem os seus animais nas juntas de freguesia.
“Também não há onde registar o microchip [de um animal] como tendo sido encontrado”, critica Florbela Brisida, que diz ser impossível estar todos os anos a confirmar os microchips dos mais de 300 animais que a associação acolhe. Esta opção não está também prevista na base de dados pública, que apenas abrange a recolha dos animais perdidos “pelas autoridades municipais” e os encaminha para “os Centros de Recolha Oficiais”. No entanto, o SIRA garante que possui “um mecanismo de animal perdido e de animal encontrado que permite que qualquer animal com um microchip possa ser dado como perdido ou como encontrado, associando os contactos dos detentores a esse processo”.
Apesar de toda esta confusão, prevê-se uma melhoria para o futuro através da fusão do SIRA e do SICAFE. Esta junção permitirá criar uma única base de dados que agrupará tudo. A confirmação foi dada pelo SIRA, tendo a DGAV avançado ao i que a nova base única “deverá estar operacional” em 2019.
Desde que chegou a casa de Patrícia Andrade, a Rafeira sempre foi querida pela população de São Miguel de Souto, em Santa Maria da Feira. E, por isso, Patrícia teve sempre dificuldades em mantê-la presa: “Não tinha casa, era de todos”, conta.
O animal “começou a ser querido pela freguesia”, contou ao i, recordando a atitude dos vizinhos, que costumavam dar comida. “Sentava-se ao pé dos velhinhos a fazer-lhes companhia” no largo da igreja e aproximava-se muito do pároco. O padre José Carlos Teixeira recorda que a Rafeira – ou Patrícia, como lhe chamavam, porque a cadela “reagia ao nome da dona” – acompanhava todos os momentos da paróquia, como casamentos, procissões ou funerais, “fugindo” para a parte de cima do edifício, onde o coro costumava acompanhar as celebrações. Para além disso, costumava fazer companhia ao padre quando este estava no seu escritório.
Quando um dos senhores a quem a Rafeira fazia companhia morreu, a cadela acompanhou o funeral e, durante a missa, “latiu umas duas ou três vezes. Até a viúva disse que a Patrícia sentia a falta do seu marido”, conta o padre. “As pessoas choraram muito quando desapareceu”, lembra Patrícia Andrade.
Quando Florbela Brisida contactou Patrícia Andrade, a notícia de que a cadela estava viva foi recebida com muita alegria por toda a população. “Fiquei todo contente, confesso”, disse o padre ao i, depois de ter visto as fotos do animal: “Tenho a ideia de que se for lá e falar com a cadela, ainda me conhece”.
Mas Patrícia Andrade considera “um crime” retirar o animal – que já terá perto de 14 anos – da associação onde passou os últimos sete. Por isso, e apesar de muitas pessoas da aldeia sentirem a sua falta, a dona decidiu deixá-la na APAFF.