Liliana Laporte. “Nunca tive dificuldade nenhuma por ser mulher nesta indústria”

Liliana Laporte. “Nunca tive dificuldade nenhuma por ser mulher nesta indústria”


Liliana Laporte veio visitar o maior evento de videojogos do país, a Lisboa Games Week, que decorreu na FIL, onde recebeu o i 


Nos últimos dias, a FIL foi pela quarta vez o íman para uma comunidade de pessoas que não resistem aos videojogos: a Lisboa Games Week. Neste que é o maior evento de videojogos do país, a mancha humana, longe de se compor apenas por jovens, é cada vez mais ampla. Nada a estranhar: afinal, há uma geração que já cresceu de consola nas mãos – e que, entretanto, já teve filhos – e para a qual é tão comum ter em casa um destes aparelhos como, a dada altura, a televisão se tornou indispensável a qualquer família. Para manter a nostalgia do passado, a inovação é a palavra de ordem – e talvez seja esta a junção de fatores que explicam que a PlayStation, líder nestas andanças, continue a não ter rivais no pódio. Portugal é um dos países com a melhor quota de mercado do mundo, numa indústria que fatura duas vezes mais do que o cinema e a música juntos. E qual a fórmula do sucesso? Ninguém melhor para nos explicar do que o diretor-geral para 16 países – Espanha, Portugal, Grécia, Chipre, Malta, Israel, Roménia, Croácia, Albânia, Kosovo, Montenegro, Sérvia, Moldávia e Bulgária – da marca. Ou melhor, a diretora: Liliana Laporte, a portuguesa que, a partir de Madrid, está a segurar no comando da companhia e que esteve por estes dias em Lisboa.

Gostava de começar a nossa conversa a olhar para o passado. Temos visto cada vez mais marcas a relançar consolas e jogos que foram um sucesso. 

É verdade! A 3 de dezembro de 1994 saiu a PS1, que vendeu até à data 102 milhões de unidades. Agora, no fundo, o que estamos a fazer é lançar uma edição limitada, só para este ano, para agradecer e partilhar, se calhar com um público que não conheceu a PlayStation desde o início, como é que se jogava na altura.

Que leitura faz deste revivalismo?

Falando de PlayStation (PS), que é o universo a que posso referir-me, acho que sempre houve uma grande apetência e um grande carinho pela nossa marca, mas também soubemos ir evoluindo. É muito bom ver que também muitas das pessoas que estão connosco, hoje, de forma ativa começaram connosco há 25 anos, mas também gosto muito da capacidade de nos irmos reinventando, progredindo e ajustando às novas formas de comunicar e de entreter a nossa comunidade, que é o exemplo que temos aqui na Lisboa Games Week, com os novos jogos que vão ser lançados para o próximo ano e com grandes exclusivos de 2018: o Spider-Man, o Detroit, o God of War, o Concrete Genie, pelo qual tenho um gosto particular, ou o Dreams. 

Estes novos jogos apelam mais aos novos públicos ou são também eles geracionais?

Acho que conseguimos um leque de jogos e de conteúdos que servem todas as gerações e todos os tipos de públicos. O Spider-Man, por exemplo, é provavelmente um dos super-heróis mais geracionais do mundo, agrada a todos, e depois temos coisas mais específicas também de realidade virtual. Sempre conseguimos trabalhar conteúdos para um público mais alargado e acho que isso foi uma das coisas que a PS conseguiu fazer ao longo da sua vida, e que no fundo permitiu que nos transformássemos na maior e mais vibrante comunidade de gaming a nível mundial. Temos uma base instalada de 82 milhões de consolas, temos 80 milhões de utilizadores mensais ativos na PS Network e só é possível fazer isso com a nossa comunidade no coração.

Estive a ler que a rival da PS4 vai ser a PS5…

(risos)

Como é representar uma marca que tem este monopólio quase embaraçoso para as restantes?

Ai! Nós nunca pensamos em monopólio. Se estamos a pensar em 82 milhões de consolas e 80 milhões de utilizadores, ainda há um grande caminho para cativar. O nosso grande objetivo com a PS4, e como demonstrámos este ano com os grandes exclusivos que tivemos e de que já falei, assim como os que anunciámos para os próximos anos: por exemplo, o Days Gone que sai já em abril, ou o The Last of Us Part ii. E também todos os outros, como Ghost of Tsushima. Há tanta coisa bonita a acontecer em PS4…

Conhece os jogos todos de cor?

Não, é impossível. A nível mundial, são milhões. Conheço aqueles de que gosto, conheço os que vendemos – também é o meu trabalho -, mas sobretudo também tenho muita curiosidade em relação às coisas novas que vão aparecendo, com as novas experiências e novas formas de chegar ao consumidor, seja em termos de conteúdo, seja em termos de jogabilidade. 

Há jogos que se tornaram ícones, que toda a gente reconhece mesmo que não jogue. De onde vem esse magnetismo, quais são os princípios-chave que aponta?

O primeiro é termos a nossa comunidade no coração do que fazemos, e isso é uma das coisas-chave: conhecer o nosso consumidor, escutar, estar sempre atento, para poder captar e seguir as novas tendências. Depois, há muita coisa que podemos ir testando com a nossa grande comunidade online: ouvimos muito, perguntamos muito, testamos muita coisa em fase beta, em testes que podem ser abertos ou fechados, onde vamos ouvindo o feedback. 

Não gosta muito de falar da sua carreira, mas também lhe peço que compreenda a curiosidade por encontrarmos, nesta indústria, uma portuguesa a desempenhar o cargo de diretora-geral de 16 países. Qual é a sua formação-base e como foi depois o seu caminho na empresa?

Estudei gestão, sempre vivi e trabalhei em Portugal – não necessariamente na área de videojogos, também trabalhei na área de grande consumo. Tenho é a honra de fazer parte de uma grande equipa de pessoas muito apaixonadas pelo que fazem. Há até um espírito e um sentido de família. Quais são os fatores de sucesso? Trabalhar em conjunto com esse grupo de pessoas, que têm muita motivação e uma visão muito honesta das coisas. Portanto, o que eu faço é fazer parte de uma grande equipa que, independentemente do género e da formação, é feita de apaixonados, que põem muito empenho no que fazem e não desistem. Diria que, dentro das características comuns a grande parte da nossa equipa, contam-se a resiliência, a humildade e a vontade de fazer sempre mais e melhor. 

Há muitas mulheres na indústria de gaming?

Podia haver mais, e isto é uma das coisas de que internamente também falamos. Nunca tive nenhuma dificuldade por ser mulher nesta indústria, a Sandra [Sandra Páscoa, senior PR manager PlayStation Iberia], acho que também não. Já tivemos as duas esta conversa: muitas vezes só nos apercebemos de que somos mulheres neste contexto quando nos perguntam. Agora, é verdade que não temos a proporção que existe noutros mercados, e acho que temos de fazer um exercício de autocrítica, pensar o poderemos fazer para atrairmos mais mulheres com talento. O talento é a chave, não a questão de ser mulher, porque quando falamos de mulheres falamos de pessoas de todos os credos, backgrounds, tipo de educação. No fundo, a diversidade é um dos fatores- -chave que nos dão força para não estarmos estanques. Se todos pensarmos de determinada maneira, nunca vamos poder criar coisas novas e diferentes. Mas cada vez há mais mulheres, até a nível criativo. E mesmo em termos de Iberia [a sede fica em Madrid] – é de lá que gerimos os 16 países, tudo com a mesma equipa -, também tive essa consciência porque alguém comentou: já reparaste que somos 50/50? Nunca tinha reparado. 

Disse numa entrevista a um meio de comunicação espanhol que a PS é uma companhia de jogadores para jogadores. O que queria dizer com esta afirmação?

Acho que ao dedicarmo-nos com tanta paixão a uma coisa temos de sentir o que estamos a fazer. Por isso digo que nós trabalhamos mais do que um produto, é uma love brand que pensa e interage com uma comunidade muito vibrante e muito exigente. Se não percebemos e sentimos o mesmo e não soubermos partilhar esse entusiasmo e essa emoção, tudo o que entregarmos não vai ser real, não vai falar ao coração das pessoas e, portanto, não vai ter êxito. Era isso que queria dizer: não é uma questão de sermos meia dúzia de gamers encafuados numa cave escura, senão não teríamos uma base instalada de 82 milhões de consolas.

Quantas vezes viaja por mês?

No mínimo, uma vez por semana. Vou aos países com alguma regularidade. Por exemplo, tinha estado em Lisboa também na semana passada, para a semana tenho de ir a Paris, na semana a seguir vou a Viena… Mas não sou só eu, é a equipa, e temos as tarefas definidas. Às vezes é um bocadinho caótico, temos muito trabalho, somos todos humanos e emocionais, mas estamos bastante bem organizados até porque só podemos fazer as coisas crescerem e acontecerem se as conhecermos. Porque temos tido tanto êxito em Portugal? Porque a PlayStation fala português e temos uma excelente equipa que interpreta e conhece o mercado. 

De que forma é visível esse trabalho?

Lançamos os jogos 100% localizados, temos exclusivos em português e temos eventos e iniciativas totalmente ligados ao público português como o PlayStation Talents, dedicado ao apoio à criação de jogos em português. Este programa tem várias vertentes e em Portugal temos implementado duas: os prémios PS, em que, no fundo, o que fazemos é abrir candidaturas – tudo o que sejam pequenas companhias e equipas em nome individual podem candidatar-se – em que proporcionamos ao vencedor anual um prémio monetário no valor de 10 mil euros; o acompanhamento todo ao nível do desenvolvimento do próprio jogo, que é o que eu acho o mais importante. Quando acaba o período de desenvolvimento garantimos a distribuição do jogo não só para Portugal, mas a nível de PS Network com uma campanha de comunicação de marketing no valor de 50 mil euros, no mínimo. Por isso, o que garantimos é um produto de grande qualidade que pode apelar não só ao público português, mas a nível mundial.

Portugal é um país que gosta muito da PS, mas os números absolutos provavelmente não são expressivos…

São muito importantes para nós. Portugal tem uma das melhores quotas de mercado a nível mundial, e não posso dizer mais do que isto. (risos) É um mercado que também nos permite demonstrar que com apoio, com foco e com localização se consegue crescer muito e justificar a estratégia que estamos aqui a seguir a nível mundial.

Acha que é então a equipa que faz com que esses bons números se verifiquem ou os portugueses têm efetivamente um gosto intrínseco, até um carinho, pela PlayStation?

Sim, há um carinho pela marca, mas que também é fruto do carinho e amor que a marca tem dado ao país nestes 25 anos. No fundo é uma relação win-win, uma relação de amor em que ambas as partes contribuíram. A nossa companhia sempre valorizou isso e é muito bom poder demonstrar que fizeram bem, que tinham razão. Mesmo nos momentos mais difíceis, a PS nunca saiu de Portugal, sempre continuou a investir e a acreditar que era possível crescer. E é com muita alegria que vemos que os números que entregamos à nossa companhia justificam o investimento que tem sido feito ao longo dos anos, e ainda temos perspetivas de continuar a crescer.

Quantas consolas há em Portugal, tem ideia?

Tenho, mas só posso divulgar os números a nível mundial. Mas são muitas.

Relativamente ao programa PlayStation Talents, quantos concorrentes aceitam por ano?

Não há limites, já tivemos mais de 200 candidaturas. É um projeto que está a chamar cada vez mais talentos e equipas e estamos confiantes de que vamos sacar daqui um grande jogo. Ainda não os consegui ver todos, e as demos, porque faço parte do júri…

Já tem o olho treinado para isso? Consegue perceber quando um jogo tem potencial e vai chegar a muitas pessoas?

Acho que já olhamos para um jogo e conseguimos perceber. Há coisas que saem assim diretas tipo “uau”, outras que pensamos que tem de se dar ali uma volta. Obviamente que o que podemos fazer é sugerir; depois, o trabalho é dos artistas. E essa é uma das vertentes do programa PS Talents. Outra coisa que temos é a parte do programa PlayStation First em que fazemos acordos com as universidades para apoiar também a formação ao nível de criação de videojogos universitária. Em Portugal temos já acordos com três universidades: o Politécnico de Leiria, a ETIC e o IADE. E, de facto, os 11 finalistas deste ano são equipas construídas nessas escolas. 

Os jogos, no geral, continuam a ser encarados como um momento puramente lúdico ou há mais preocupações educacionais relativas ao conteúdo?

Acho que há espaço para tudo. Fazendo a relação com outras categorias no entretenimento e falando, se calhar, de uma coisa que muitas pessoas não sabem: a indústria de videojogos a nível mundial fatura mais do dobro que música e cinema juntos. Este número é sinónimo de que, no fundo, há espaço para todos os tipos de conteúdos: uns mais educativos, outros mais lúdicos. 

De tempos a tempos surgem notícias que dão conta de que há jovens e adultos viciados neste tipo de conteúdo. Isto é uma preocupação para as marcas ou um problema que cada pessoa ou cada família tem de enfrentar individualmente?

Acreditamos no entretenimento saudável, e isso só se faz com responsabilidade. Para isso acontecer temos medidas concretas que estão à disposição, por exemplo, para controlar o consumo. Temos o controlo parental, em que cada tutor pode determinar os acessos, bloqueando, por exemplo, os acessos a jogos ou a horas de jogo. Há ainda a conta-família, ou seja, cada família pode criar uma conta em que estejam vários utilizadores que podem partilhar e ver a evolução dos vários membros. Depois temos a parte da classificação dos jogos. Cada capa de um jogo tem bem clara a bolinha encarnada ou amarela, com a idade a que o jogo é destinado. E depois temos conteúdos para todas as idades. Como noutras categorias de entretenimento, o consumo responsável tem de partir de todos, dos próprios ou, se falarmos de menores, dos seus tutores. Agora, também sentimos a responsabilidade, enquanto Play Station, de darmos essas ferramentas, essa maneira de ajudar a controlar, e é o que fazemos com estas medidas que mencionei.

Essa questão das contas-família traz a hipótese de partilha. Com o avançar das gerações, há pais e filhos a jogarem em conjunto?

Cada vez mais, e isso é uma das coisas de que mais gosto. Por exemplo, temos um jogo que é o “Saber é poder: Gerações”, e só o nome já nos permite imaginar as noites de Natal com toda a gente sentada, a rir e a brincar. Mas essa partilha já acontece em jogos como o Fifa ou o Spider--Man, que são perfeitamente abrangentes e que cada vez mais permitem comunicação da comunidade, seja entre famílias ou amigos. Por exemplo, na minha: vivemos fora do país há dez anos, e o meu filho (de 16 anos) mantém ainda os amigos de Portugal através da PlayStation. Foi assim que ele manteve o contacto com amigos que deixou com seis anos.

E ainda fala português?

Sim, ele é português! (risos) Vamos ter agora, este fim de semana [que passou], as finais mundiais do GT, temos o nosso Carlos Salazar a jogar. As finais europeias foram em Madrid há três semanas e o meu filho estava lá – eu tinha de ser assim um bocadinho ibérica, como o jamón – com a camisola de Portugal a gritar pelo Carlos. É muito engraçado.

Quando foi a maior surpresa que o mundo do gaming lhe trouxe? O que aprendeu nestes anos?

Ui! Isso é perguntar à mãe de qual dos filhos gosta mais. Aprende-se todos os dias. Sinto que tem sido um privilégio, porque falamos de uma multinacional onde ainda se privilegia muito o empreendedorismo. Somos uma estrutura muito horizontal, muito informal, onde todos podem contribuir de forma muito proativa. Aprendi ao longo disto tudo que podemos mudar o mundo se tivermos vontade e que trabalho numa empresa que faz muitas pessoas felizes.